O dia “fofinho” e o rastro das vidas comuns

(Pacheco Pereira, in Público, 29/01/2022)

Pacheco Pereira

Como hoje só se pode falar de passarinhos, libelinhas, gatinhos (se calhar não…) e demais coisas “fofinhas” (nem acredito que estou a usar esta palavra…) terminadas em “inho”, vou falar de outras coisas de mais difícil classificação, de interesses bizarros, de presenças e sombras, de esquecimentos e memórias. Vou falar de traços, restos, rastros de vidas reais, ou seja, das coisas menos “fofinhas” que há. Coisas duras, árduas, complexas, cheias de vergonha ou orgulho, mais vergonha do que orgulho, felizes por instantes e infelizes quase toda a vida, agitadas e pacíficas, com alguma curiosidade e algum medo, com muito sexo imaginado (“amor”, dizem elas) e pouco realizado, quase sempre mais de gente pobre e remediada, não tocando sequer na riqueza, que, nalgum momento, uma adolescente, um jogador de futebol amador, um poeta escondido, uma dona de casa que quer ao mesmo tempo ser boa dona de casa e deixar de ser dona de casa, um soldado na guerra, uma madrinha de guerra deixaram.

Em todos estes casos está a presença da história, nas posturas, nos gestos, nos escritos, na maneira de vestir, na coreografia dos grupos, e… nas datas. Houve um dia, em que alguém resolveu guardar umas lembranças, escrever umas cartas, anotar num diário, intercalar num livro, deixando assim uma extensão física da sua vida em objectos materiais que, depois da morte – sim, a morte é a presença invisível em tudo isto –, a família normalmente deita fora como se fosse “lixo”. A verdade é que nem sempre isto acontece e, às vezes, por milagre, vão parar ao Arquivo Ephemera, onde temos a memória do poema de Brecht que lembra que há César e há o cozinheiro. Nós queremos as coisas de César e do cozinheiro.

Aprendemos muito com estes fragmentos de vidas – por exemplo, com este caderno escolar de 1959, onde uma rapariga colou recortes dos seus artistas preferidos, ou esta fotografia de má qualidade tirada no Quartel da Graça em 1942, em vésperas de estes soldados seguirem num batalhão expedicionário para Moçambique. E, sim, fizeram uma festa ao passar o Equador, debaixo do tridente de Neptuno e com uns ademanes ridículos de pano e papelão.

Ou este diário escrito numa pequena agenda, onde a mulher que o escreve desejava que acontecesse muito e não acontece nada, e, quando acontece pouco, faz imensa festa. Ou este álbum rudimentar feito artesanalmente por um alentejano que jogava voleibol em 1936. Ou esta fotografia tirada nos confins de Angola, junto da fronteira com o Congo, de um concurso de “rainha da festa” nos anos 60. Nesse mesmo álbum de fotografias familiares, onde negros e brancos quase nunca aparecem na mesma fotografia, e que começa nos anos 40, e vai até 1974, a história de Angola está bem marcada: até aos anos 60 quase não há homens fardados nas fotografias e, a partir daí, não há fotografias sem fardas. Estávamos no tempo dos Grupos Especiais, retratado num cartaz do Exército. E, como todos os dias há mais destes rastros da vida comum, este cartaz numa parede do Porto, em 2021, teve o acrescento de um nome e de uma seta atravessando o coração, como para gerações foi o reclame e a imagem nas latas da Solarine Coração. Imagino nalguns leitores, mas que é isso da “solarine”, ou “quem é que hoje limpa metais”? É assim que funciona o tempo, também ele a coisa menos “fofinha” que há.

Bom, de regresso à terra, descansem, eleitores, do ruído da campanha e vão votar. Tirem uma fotografia trivial à fila, façam uma aposta com os amigos sobre quem vai ganhar e anotem num papelinho, guardem o papelinho, olhem para as paredes à volta da mesa de voto, onde há sempre grafitos, registem num diário as caras fechadas ou abertas por detrás das máscaras, e, ao fim da tarde, há uma manifestação negacionista sob a capa da defesa da Constituição, fotos e papéis são bem-vindos. Depois verão como o mais perecível de tudo é o que vai aparecer na televisão.

É que o dia seguinte não vai ser “fofinho”.

O autor é colunista do PÚBLICO


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