(Pedro Tadeu, in Diário de Notícias, 03/03/2021)

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Um dos anúncios está titulado assim: “Procuro ENTREVISTADOR/REPÓRTER”. A seguir, vem o texto: “Assegurar a elaboração de reportagens, entrevistas, num tema específico relacionado com saúde, desenvolvendo investigação, reportagens e entrevistas.” São pedidas: carteira profissional de jornalista, licenciatura ou mestrado na área, competências vídeo, capacidade de análise e comentário e, ainda, “seleção, revisão e preparo definitivo das matérias jornalísticas a serem divulgadas”.
Um amigo meu (juro que não fui eu) que está a ver se melhora de vida viu isto na rede social LinkedIn, clicou no link para responder e acabou por ver agendada uma entrevista por computador, através da aplicação de videoconferência Zoom.
Mais tarde encontrou mais dois anúncios parecidos e voltou a inscrever-se para as respetivas entrevistas.
Chegado o momento das três entrevistas, e após as três conversas por Zoom, todas semelhantes na essência, o meu amigo ficou a saber várias coisas que não vinham nos anúncios. Passo a listar:
1 – as matérias que se pretendiam elaborar eram relativas à pandemia provocada pela covid-19;
2 – o jornalista deveria focar os seus trabalhos na contabilização de números de mortos, número de infetados e níveis de contágio;
3 – esses trabalhos também poderiam abarcar os números relativos a contágios em lares, procurar “mortes inexplicadas” e evolução das taxas de mortalidade;
4 – também era possível focar os trabalhos no papel dos hospitais privados na covid-19, o número de hospitais envolvidos, os custos do combate à pandemia para os privados;
5 – era importante que esse meu amigo trabalhasse numa redação de um órgão de comunicação social de difusão nacional e tivesse poder para publicar propostas de trabalho suas;
6 – quando tivesse a reportagem específica combinada com o recrutador, o jornalista deveria propor esse trabalho na sua redação como sendo uma ideia sua. Caso conseguisse publicar, nos moldes combinados, seria remunerado por isso;
7 – quantas mais reportagens conseguisse publicar, melhor.
Quando o meu amigo perguntou pelo cliente – os entrevistadores eram de agências de “caça-talentos” -, as respostas foram evasivas, embora um deles deixasse escapar um vago “um grupo privado do norte”…
Quando, finalmente, o meu amigo argumentou que aquilo que eles estavam a propor era capaz de ser ilegal, recebeu em resposta algo como isto: “A sério?! Olhe que há muitos colegas seus que o fazem!…”
Portanto, ao que parece, está montado um sistema de contratação, por entidades estranhas ao jornalismo, de jornalistas que estejam a trabalhar em redações para impingir nos seus jornais, rádios ou televisões matérias que, embora sejam baseadas na realidade (ninguém pediu para mentir), fossem capazes de alterar a linha editorial desses órgãos de informação.
Quem decide os destaques, os alinhamentos e as dimensões dessas peças, os editores e diretores de cada uma dessas marcas, e recebe propostas desses colegas “comprados” pensa que essas ideias para artigos resultam da pura investigação jornalística, não de “encomendas” de interesses estranhos ao jornalismo, e terá tendência a valorizá-las segundo um critério jornalístico.
Nada me espantaria que, dessa forma, muitas destas “encomendas” acabassem por ser manchete ou abertura de noticiário, causassem impacto público relevante, fossem comentadas e analisadas por líderes de opinião e, portanto, acabassem por distorcer na opinião pública a visão dessa realidade.
Desde que esse meu amigo me contou o que se passou com ele, sempre que vejo uma notícia sobre a covid-19 fico desconfiado: “Será mesmo assim ou isto foi uma encomenda?” E quando constato a grande quantidade de peças que estão dentro da área de interesses destes “recrutadores de jornalistas”, quando vejo que essas peças se repetem no foco e na mensagem, exageradamente, nos últimos meses, fico espantado com a minha ingenuidade estúpida: “Como é possível eu ter achado que isto era, apenas, um exercício editorial insensato e incompetente, mas genuíno?” A seguir vem o desgosto: “Como é que a minha profissão chegou a este ponto!?”
Esse meu amigo pede-me anonimato… OK.
Mesmo assim, correndo o risco de ficar a protestar sozinho como os malucos, acho que vale a pena denunciar isto.
Jornalista
Pensando bem ,e tentando juntar as peças , acredito no que lhe disse o seu amigo ; na verdade o que se ouve e lê . é difícil que seja tudo resultante da incompetência !
Vou partilhar, porque acho importante. É assustador como, umas mais do eu outras , profissões são alvo de manipulação constante. Agora é a pressão nos média em que se exige uma data precisa para o desconfinamento, daqui a um tempo será qualquer outra. Gosto de jornalismo, profissão respeitável, que espero que continue a sê-lo, apesar dos apelos em contrário.