Temos o Trump que merecemos?

(Francisco Louçã, in Público, 14/01/2017)

louca

Francisco Louçã

Depois de Soares, não há mais espaço para a política. A frase, de um amigo emocionado com a morte de Mário Soares e seu admirador próximo, deixou-me a reflectir. Arrogância? Não, só imensa tristeza, pensei primeiro. Certamente que não é o desaparecimento de uma grande figura do nosso tempo recente que, por si, altera a geografia da política, como não foi a morte de Álvaro Cunhal que fez desaparecer a política da contradição ou a de José Afonso que fez desvanecer a força mobilizadora da cultura popular. Admiti portanto que se tratasse simplesmente uma confissão de solidão.

Mas será só isso? Não haverá também, nos últimos combates de Soares contra a troika, pelos direitos constitucionais que a austeridade estava a sabotar, contra o império financeiro e contra a dívida, um sentimento de desespero, de fim do tempo, de perigo abissal? Sozinho, sem o seu partido que então lhe virava as costas, satisfeito com as companhias mais militantes à esquerda, não estaria Soares a desafiar o afundamento que temia? Após uma vida da “Europa connosco”, como não reconhecer que ele sabia que estava a confrontar as instituições e as regras europeias em que ainda acreditava e a fincar o pé numa trincheira de resistência?

Portanto, o desespero do meu amigo seria talvez uma confissão de perplexidade perante um mundo que muda sem sabermos para onde vai, onde o aliado passou a ser o inimigo, onde tudo o que é sólido se está a desvanecer no ar, para lembrar a frase de Marx sobre o fulgor da modernização industrial de Oitocentos: desvanecendo-se, a política mudou de espaço e de tempo.

Ora, então o que é que se desvanece e o que é que mudou? Para nós todos, mudou a condição em que a democracia é a nossa condição — ou seja, a sistémica transferência de soberania para a União Europeia, consagrada a um projecto de divergência que prossegue como um rolo compressor, impôs a deformação da política, provocando uma contradição insanável entre quem tem a legitimidade, mas não o poder (as autoridades nacionais) e quem tem o poder, mas não a legitimidade (as autoridades europeias).

Ou seja, a democracia, a que vota, a que devia decidir, a que responsabiliza os poderes, passou a ser cerimonial. Essa é a explicação para a implosão de partidos outrora dominantes, para o ascenso de populismos, para a emergência de bonapartismos, para a fragilização de regimes, que pouco têm a oferecer e menos a garantir. A União está a dizer aos cidadãos que, façam o que fizerem e votem o que votem, a sua política punitiva é inalterável.

4 pensamentos sobre “Temos o Trump que merecemos?

  1. O amigo de Mário Soares tinha razão, porque o que é hoje a política ? Nada ou menos que nada, os políticos não decidem mais coisa nenhuma e Soares apercebeu-se disso antes de morrer, aposto.
    Vejo a UE mal encaminhada porque só tema em dizer “amen” aos poderes financeiros, e as populações só têm que votar e calar, mas desta vez pode haver muitas surpresa, a começar por meu pais de origem, a Marine Lepen está aquecendo os motores… e eu, fico com a mesma pena deste amigo de Soaes, chorei a sério no dia do enterro pensando nisso tudo…
    (peço desculpa por escrever ao sabor do pensamento, num português assim assim)

  2. Meu caro Francisco,
    Já lá vai o tempo em que te aplaudida, e quase sempre te apoiava, quando, por exemplo, sobre uma mesa do refeitório do ISE, tentavas mediar as lutas políticas entre a UEC e a auto-proclamada “Vanguarda da Classe Operária” então liderada pelo que viria a ser mais tarde “O Grande Educador” dessa mesma Classe (do que o astuto Saldanha se haveria de lembrar, e com que eficácia, desse modo, conseguiu ridicularizar o seu camarada Arnaldo que, acreditando na boa-fé, aceitou o cognome, sem se aperceber do enorme declive da rampa, cuja descida então iniciou, a caminho da derrota interna pela liderança do então só MRPP!?!?…)! Nesse tempo, e lá entre nós, estudantes, salientava-se o Leopoldo, que, com as suas “leopoldinas” (como eu as costumava anunciar, em voz alta antes dele as iniciar), porque o mais acutilante e aguerrido orador do referido movimento reorganizativo, lá ía tentando espalhar, à sua maneira, o anti-comunismo, se bem que não de forma tão primária como o fazia, por exemplo, o agora finado Mário, que tu tanto enalteces como homem político contemporâneo mas que para mim foi só o maior charlatão da política que eu conheci ao longo da minha já um pouco longa vida, pois nasci em 1944, e que, por ser o que foi, não vai ficar na História pois o “soarismo” não vingou, como não vingou o “eanismo”, nem, sequer, o “cavaquismo” que foi o maior no tempo e o mais desastroso (se bem que não foi vendido, ao Zépovinho luso, gato por lebre, como no tempo do referido charlatão que logo que viu o seu sempre ambicionado poder a fugir-lhe, meteu a lebre na gaveta, muito embora tivéssemos uma Constituição em vigor, porventura a mais progressista do mundo e que tinha sido o corolário de uma votação expressiva onde mais de 92% dos eleitores com direito a voto foram exercê-lo e a mesma CR foi aprovada apenas com 15 votos contra do CDS), mas, ouso supor, e tenho esperanças, de que os nossos netos, um dia, irão estudar o “Gonçalvismo” porque, neste período, sim, eu vi claramente visto, profundas alterações sociais, e tenho para mim que só aqueles que tal desiderato lideram, se vão da lei da morte libertando, para citar o nosso saudoso Luís Vaz…
    E o fascismo caiu, embora, pouco tempo antes da queda, ainda tivesse conseguido, pela mão sinistra de um miserável pide à paisana (sim, porque gorilas fardados lá no nosso ISE não entravam) tirar a vida ao jovem Ribeiro Santos, lá no nosso oásis que, em toda a Academia lusa, constituía o então ISE! Que saudades do nosso “Chico” Moura (lembras-te, meu caro Francisco, quando o Celso Furtado, a convite do nosso “Chico”, veio falar-nos sobre a sua “Teoria do Eucalipto”? O Anfiteatro I estava a abarrotar e cá fora estavam dezenas de colegas e alguns professores. Então o Pereira de Moura, apercebendo-se da injustiça, interrompeu os trabalhos para mandar abrir a biblioteca e mudar para lá, porque todos deveríamos assistir à conferência do Celso?…”à ganda Chico, assim mesmo é que é a democracia”, ouviu-se então cá fora!… E a biblioteca ficou a abarrotar, mas todos estivemos presentes e, em condições adequadas, pudemos então escutar o Ilustre Professor Celso Furtado!!!!… belos tempos, mas também pela saudade, claro!..
    Lembrei-me disto agora, depois de ler mais este teu artigo, meu caro Professor Doutor Francisco Louçã, pois sou leitor assíduo da Estatuadesal!
    E vem isto a propósito do título do teu artigo: «Temos o Trump que merecemos?»
    Começo por te responder que, eu, felizmente, não me pesa a consciência de ter contribuído para que tivesse surgido agora este Trump, nem para quaisquer outras tantas “trumpices” que por aí vegetam, nesses diversos oceanos da “democracia” a que te referes (mas sem a adjectivares de burguesa, ou capitalista, como eu acho que devias, por uma questão de pedagogia, mais que não fosse, mas…) e, ouso supor, continuas a defender, a navegar e te sentes mais ou menos bem, se bem que, agora, como escreves neste teu artigo, já vais reconhecendo que «São tempos de desespero»: uma “democracia” onde o teu voto (e tu és um Ilustre Professor Catedrático, de mérito reconhecido, não tenho dúvidas, embora nessas ditas “democracias”, assim “democraticamente”, tu continuas a ser tratado pelo Louçã e ou, às vezes, pelo Francisco Louçã, mas o “sr. Silva” é tratado, pelos mesmos “democratas” pelo Professor Cavaco Silva, ou o actual PR pelo Professor Marcelo, ou o Professor Freitas do Amaral, só para referir alguns exemplos) é igual, ou tem o mesmo valor, que tinha o voto do meu saudoso pai, nascido em 1900, provinciano, analfabeto e sem qualquer cultura ou instrução políticas. E, como sabes, a Política está considerada como uma ciência, tal como a Matemática, por exemplo. E será que, a quem não é ensinada a matemática, tais pessoas poderão, por exemplo, demonstrar que a raiz quadrada de 4, é 2?…
    Eu sei, e tu sabes também, que é porque 2 é o único número que elevado ao quadrado é igual a 4, naturalmente!!!… assim como também sabemos que isto só é válido para a “base dez” em que assenta a nossa numeração.
    E como pretender, ou exigir, que o meu pai, por exemplo, soubesse demonstrar o que era a democracia? E o que era o “socialismo em liberdade”, e o que era a “social-democracia”, e o que era o “democracia liberal”, e o que era o “socialismo humanista”, para fazer as suas escolhas quando fosse chamado a votar???…
    Mas ele votava, ou pelo menos votou algumas vezes, mais que não fosse para satisfazer os meus pedidos de que todos deveríamos votar, pois como eu, imensos democratas nos batemos para que todos pudéssemos votar e escolher os nossos governantes em liberdade. Até que, coitado, um dia, me disse, triste, lamentando-se e sob a forma de desabafo: «olha, filho, se isto é o socialismo, então que venha o Marcelo Caetano que me deu 500 escudos de reforma». Era, então, ao tempo, o referido charlatão PM de um GC, o último a que presidiu…
    Pois é, meu caro Francisco, o Celso Furtado explicou muito bem porque “estas coisas” acontecem. Mas não foi só ele, porque, cento e tal anos antes dele ter enunciado a sua “Teoria do Eucalipto”, já um prussiano que, nascido em 1818, aos 23 anos defendeu a sua tese de doutoramento (num tempo em que só os filhos de gente rica tinham acesso à Universidade, e ele frequentou a universidade nas cidades de Bona e de Berlim, tendo cursado Filosofia, História e Direito, e, entretanto, fez sócio de uma sociedade, criada pelo grande Mestre Bruno Bauer, onde aprendeu que «…os evangelhos são narrativas fantásticas, criadas por necessidades psicológicas.»), aos 25 casou com uma mulher, também ela filha de gente rica lá da terra, mas decidiu emigrar com ela para Paris onde, ao tempo, já lhe “cheiravam” as ideias socialistas que bebia sofregamente e com elas alimentava o seu ego, escreveu em jornais e revistas, dirigiu um jornal de protesto, conspirava contra o sistema instituído (tal como o fez há cerca de 2.000 anos o Jesus de Nazaré e que por ser como era foi condenado à morte na cruz), foi expulso de Paris, radicou-se em Bruxelas onde conheceu e fez amizade com outro grande vulto da teoria da História socialista, com ele escreveu e publicou importantes obras, fez parte de diversas organizações clandestinas com operários e após participar do movimento revolucionário de 1848 na Alemanha, mudou-se definitivamente para Londres, onde passou “as passas do Algarve”, passou fome ou foi subalimentado, ele e a família, onde viu morrer dos seus filhos por falta de assistência, passou mais de 15 anos a investigar nas principais bibliotecas de Londres, tendo lido e analisada exaustivamente todos os livros então publicados sobre a problemática do sistema económico-social vigente, a partir de 1852 continuou a publicar as suas obras, até que em 1867, senhor de um conhecimento teórico como ninguém sobre o capitalismo e o seu funcionamento, publicou o primeiro volume de O Capital.
    Está lá tudo descrito e demonstrado, como tão bem sabes, meu caro Francisco. Assim como as formas de actuar se quisermos pôr termo a tão nefasto quanto hediondo sistema que já leva mais de 400 anos a invadir, explorar, ocupar, explorar, roubar, escravizar, deportar, matar, dizimar, dividir países contra a vontade dos Povos, que fez duas guerras mundiais e tantas outras regionais, que, mais recentemente, idolatrou o deus dinheiro, tendo também esta sua última actuação se caracterizado por descartar os idosos, os que não têm alternativa a viver senão do trabalho, os jovens e até as crianças, ao ponto de conseguir que os tais 1% já detenham tanta riqueza quanta possuem os outros 99% da população do planeta.
    E, meu caro Francisco, a “Teoria do Eucalipto”, que aqui me trouxe a comentar este teu artigo, dizia, como bem te lembrarás, estou certo, e diz, pois ainda está actual, que, tal como um eucalipto quando plantado, vai crescendo à custa do sacrifício das outras plantas em seu redor, secando todo o território aonde as suas raízes chegam, o capitalismo cresce e se desenvolve do mesmo jeito, pelo que, pobres dos agricultores, ou se cortam os eucaliptos de uma vez por todas, e pela raiz pois que do tronco, que fica se só cortado, ainda se desenvolvem rebentos, ou não terão mais milho, trigo, batatas, etc., etc., em seu redor.
    Então, meu caro Francisco, e o capitalismo, de que falava o Celso Furtado já nos primeiros anos de 1970, na sua citada teoria? Cortou-se pela raiz? … ou, sequer, apenas se cortou à superfície permitindo que os rebentos surgissem e, enquanto se desenvolvessem, permitissem uma certa trégua no secar do terreno em volta?…
    Não, meu caro Francisco, antes pelo contrário, e agora, desde a globalização, até se tem refinado e regado o “eucaliptal existente” e já imposto em quase todo o planeta, permitindo, por um lado, os referidos 1% e 99%, enquanto, por outro, se em 1974 morriam, por minuto, já algumas crianças, na Terra, por fome e subnutrição, não seriam, por certo, as 17 que já morrem de há uns tempos a esta parte, infelizmente com tendências crescentes.
    Mas, meu caro Francisco, curiosamente, também tu não falas do capitalismo uma só vez em todo este teu artigo. Será que também já o consideras uma “coisa natural” e, portanto, uma coisa eterna? Será que não é a existência do capitalismo que está a tornar a “coisa” que aqui designaste como «São tempos de desespero»?…
    E o que é que está na origem de tudo o que descreveste também agora nesta parte do teu artigo:
    «Ou seja, a democracia, a que vota, a que devia decidir, a que responsabiliza os poderes, passou a ser cerimonial. Essa é a explicação para a implosão de partidos outrora dominantes, para o ascenso de populismos, para a emergência de bonapartismos, para a fragilização de regimes, que pouco têm a oferecer e menos a garantir. A União está a dizer aos cidadãos que, façam o que fizerem e votem o que votem, a sua política punitiva é inalterável.»
    Capitalismo, nada! Não existe tal termo, também no teu léxico tão apródigo em democracia!…
    É pena, meu caro Francisco! Digo eu. Mas, quem sou eu, se não um humilde aprendiz que não quer esquecer aquele outro ensinamento de «Aprender, aprender, aprender, sempre!…»
    Também citas Álvaro Cunhal e José Afonso. Mas o que, com as suas presença e práticas contínuas, ensinaram eles, a este respeito?… no neste teu texto, nada de importante, pois até pretendes induzir que o seu desaparecimento físico, o daquele «fez desaparecer a política da contradição» e o do saudoso Zeca (que viveu sempre de cu virado para o poder capitalista) «fez desvanecer a força mobilizadora da cultura popular», como se os ensinamentos que ambos nos legaram fossem assim tão frágeis.
    Também aprendi, e não esquecerei nunca que:
    “A história da sociedade, até aos nossos dias, é a história da luta de classes.”
    “As revoluções são a locomotiva da história.” (o que faz com que eu apenas veja na luta de classes o eterno, ou perpétuo).
    “Uma ideia torna-se uma força material, quando ganha as massas organizadas.”
    “Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; mas o que importa é modificá-lo.”
    “O caminho do inferno está pavimentado de boas intenções.”
    “As ideias dominantes numa época, nunca passaram das ideias da classe dominante.”
    “O trabalhador só se sente a vontade no seu tempo de folga, porque o seu trabalho não é voluntário, é imposto, é trabalho forçado.”
    “Se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a Ciência não seria necessária.”
    “Os homens fazem a sua própria história, mas não o fazem como querem… A tradição de todas as gerações mortas oprime, como um pesadelo, o cérebro dos vivos.”
    “Os trabalhadores não têm nada a perder em uma revolução comunista, a não ser suas correntes.”
    “Socialismo ou barbárie”
    E por tudo isto que aprendi, e muito mais que haveria para lembrar, acredito, meu caro Francisco que, sem a alteração/substituição do capitalismo, pelo sistema que, historicamente, lhe há-de suceder, não vislumbro como vais deixar de considerar mais vezes que os tempos que aí vêm «São tempos de desespero». Mas, infelizmente, não só para os yankees, acrescento eu.
    Deixo-te um abraço fraterno, envolto na muita admiração que me habituei a nutrir por ti desde os nossos tempos de faculdade, mas cumpre-me reafirmar-te que em nada contribuí para estes tempos que vivemos e os que aí estão à porta, antes pelo contrário, tudo tenho feito, do que está ao meu modesto alcance, para pormos termo, de vez, ao capitalismo. Tenho para mim, que, nesta vertente, as nossas práticas não são coincidentes.
    aci

  3. Sobre as ‘virtudes’ do Socialismo, não é preciso mais do que apontar para este belo texto da Helena Araújo (http://conversa2.blogspot.pt/2017/01/em-nome-de-que.html) que, claro, será sempre despachado com a racionalização de que é propaganda anti-comunista. O Muro era afinal uma proteção contra o imperialismo, já se sabe…Como Kennedy disse num famoso discurso, as nossas sociedades são imperfeitas, mas não precisamos de fechar as fronteiras para impedir que os nossos cidadãos vão viver para onde quiserem, eventualmente para um qualquer paraíso socialista, que eu francamente não sei onde será. Enfim, a negação de todas as evidências para a proteção do ego ferido é afinal uma característica humana e não apenas dos Marxistas encartados. Mas mesmo assim, já que o anónimo se atreve a insultar a memória do líder histórico do PS, só para chatear, que viva Mário Soares e abaixo o Marxismo-Leninismo, em versão estalinista, trotskista ou maoísta, pim!

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