Acabar com a chantagem

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 24/11/2016)

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                         Daniel Oliveira

A escolha das primárias da direita francesa poderia ter sido pior. Podiam ter escolhido Sarkozy, que hoje tem um discurso quase igual ao de Le Pen, somando a ele algumas suspeitas de corrupção. Com uma abstenção da esquerda, que dificilmente conseguirá, com a atual oferta, ir a uma segunda volta, a vitória da líder da Frente Nacional seria bem mais fácil. Mas a escolha poderia ter sido muito melhor: se Juppé fosse o candidato a esquerda votaria nele sem qualquer dificuldade. É um homem da direita centrista tradicional e seria visto como uma concessão da para liderar uma frente democrata contra Marine Le Pen. Ao que tudo indica, não será esse o caminho escolhido.

Os partidos de esquerda podem ser responsabilizados por tudo (e tem quase todas as culpas pelo vazio político que deixou), não podem ser responsabilizados pela escolha de François Fillon. Se uma segunda volta nas presidenciais for entre Fillon e Le Pen, como tudo parece indicar, os eleitores de esquerda, que podem ser fundamentais para saber quem vence, não estarão entre uma tragédia e um mal menor. Terão de escolher entre um candidato com uma agenda neoliberal como a França nunca conheceu, alcunhado como uma Thatcher de calças, que se propõe partir a espinha aos sindicatos, aumentar o horário de trabalho, privatizar e desregular a economia, e uma candidata com um discurso xenófobo, uma agenda autoritária mas um piscar de olho a algumas preocupações sociais, que, não por acaso, vale mais de metade da intenção de votos dos operários.

Não será difícil imaginar que, neste cenário, Le Pen fará o que fez Trump, dirigindo-se a todos os que recusam a derradeira fase da contrarreforma social que é proposta por Fillon. Como deve votar a esquerda? Em tudo o que recusa ou em tudo o que também recusa?

Um debate semelhante está a acontecer no Partido Democrata. Congressistas e senadores da linha que se identifica com Bernie Sanders debatem se devem exigir de Donald Trump o cumprimento de algumas das suas promessas para restabelecer o nível de vida dos trabalhadores e se devem apoiar uma política de investimento em infraestruturas públicas. O mainstream democrata, já esquecido das suas responsabilidades neste resultado eleitoral, diz-lhes, horrorizado, que isso seria legitimar Trump. Como se essa legitimação não viesse com o voto. Devem as correntes mais à esquerda da política americana aliar-se aos responsáveis pela derrota dos democratas, demitindo-se de qualquer debate económico, ou devem ter a sua própria agenda, confrontando Trump com as suas contradições em matéria económica, e assim tentando resgatar o voto que deveria ser seu? Devem criar um cordão sanitário ou entrar no confronto pelo voto dos desencantados? Acho que a resposta é evidente.

Em França e nos Estados Unidos as forças mais progressistas não se devem limitar a aceitar a chantagem do mal menor. Até porque ela não faz mais do que adiar o mal maior. Devem negociar esse mal menor, mantendo uma postura totalmente autónoma da direita liberal e cobrando o seu voto com reais alterações programáticas. Da mesma forma que Clinton teve de ceder ao programa de Sanders para contar com o seu apoio, Fillon deverá ser obrigado a abandonar a sua agenda de liberalização para ter o voto da esquerda numa segunda volta. Ou então assumir as responsabilidades da sua própria derrota. A esquerda só sairá do buraco em que está quando deixar de ser um atrelado de agendas alheias. Foi essa secundarização ideológica, até quando governa, que levou os socialistas franceses à sua atual irrelevância

Claro que nada disto seria assunto se a estratégia tivesse sido outra. Se o centro-esquerda, em vez de ser executora de uma agenda que deveria ter combatido, tivesse optado por impor uma mudança política, liderando o conjunto das forças que lhe são politicamente próximas. Para que toda a gente compreenda: tudo seria diferente se os socialistas franceses ou espanhóis tivessem aprendido com a solução portuguesa.

Não é por acaso que o PS português é dos poucos partidos socialistas ou social-democratas europeus que, estando a governar, cresce nas intenções de voto. Porque lidera o conjunto da esquerda com base num programa que corresponde à sua tradição política em vez de se contentar em ser uma cópia derrotada de tradições que lhe são alheias. E é por isso que fenómenos eleitorais contra a democracia não estão a crescer por aqui. Por uma vez, somos uma boa ilha na Europa. Se não houvesse outra razão, esta seria mais do que suficiente para aplaudir a geringonça.

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