Os que “amam” muito os touros e os torturam e matam

(Pacheco Pereira, in Público, 17/11/2018)

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A ideia de que ser a favor ou contra as touradas é uma questão de liberdade de expressão é um absurdo. Ser a favor ou contra as touradas é uma questão de civilização e, por muito que a palavra esteja gasta, nós sabemos muito bem o que é. É o mundo frágil que nos faz viver melhor, mais tempo, com menos violência do que no passado. É completamente frágil e contraditório, muitas vezes anda para trás e poucas vezes anda para a frente, mas representa o melhor da vida possível, feito por um olhar humanista sobre as coisas, que inclui condenar, limitar, punir a violência.

É o mundo em que há direitos humanos, em que os homens e as mulheres são iguais, é o mundo em que as mulheres e as crianças são protegidas da violência doméstica, é o mundo em que o direito de viver de forma livre o sexo é garantido, é o mundo em que a tortura, a pena de morte, o genocídio são condenados, é o mundo em que há liberdade religiosa, de opinião, política, etc., etc. Sim, é verdade que é também o mundo em que tudo isto não existe, mas escolham. Pode não ser o mundo que temos, mas é o mundo que desejamos.

Os animais não podem ter “direitos” equiparados aos direitos humanos, mas faz parte de uma sociedade humana que valorize a ética e combata todas as formas de violência olhar para os animais com um sentimento de especial proximidade que está para além da domesticidade.

Os movimentos a favor dos animais, ou melhor, os movimentos contra a crueldade com os animais, fazem parte da tradição humanista dos séculos XIX e XX. A ideia central era que o modo como tratamos os animais era um sinal de como tratávamos os homens, a crueldade contra os animais era um sinal de uma violência institucionalizada que não se limitava aos animais, mas se estendia aos homens, mulheres e crianças.

Não me estou a referir a nenhuma das variantes radicais modernas dos direitos dos animais que fazem parte da moda dos nossos dias. Não é isso, não tem que ver com aviários, nem com matadouros, nem com as mil e uma formas de industrialização da produção de alimentos, algumas das quais ganhavam em ser menos cruéis. Nem com a caça. A caça tem um valor económico, e tem um papel no controlo das espécies, e é cada vez mais moldada pela lei de modo a que o seu carácter lúdico seja subordinado a estas necessidades.

Tem que ver com as touradas. Podem dar as voltas que quiserem, mas as touradas são a exibição pública da tortura de um animal, que é esfaqueado para enfraquecer e depois, no caso das touradas de morte — que todos os defensores das touradas desejavam poder ter sem limitações —, ser morto. As touradas vivem do sangue, da dilaceração da carne, do cansaço até ao limite e da morte. Podem ter todos os rituais possíveis, ter toda a “arte” de saracotear à volta de um bicho, mas as touradas não são uma arte, são a exibição circense de um combate desigual entre homens e animais, cuja essência é a sua tortura para gáudio colectivo.

Não é um combate de iguais. Na verdade, os combates de cães e de galos — proibidos não se sabe porquê à luz da permissão das touradas — são muito mais um combate entre iguais do que o homem de faca e o touro sem armas a não ser os chifres, que muitas vezes são embolados. Mas é o sangue e a morte que fazem o espectáculo e, ao serem um espectáculo, são um sinal de barbárie.

O argumento da tradição também não é argumento. Se há coisas que a tradição encobre é um vasto conjunto de práticas que felizmente hoje são consideradas inaceitáveis, desde a violência doméstica à discriminação dos homossexuais, à excisão feminina, à pena de morte, à legitimação da tortura. Se aceitamos que a “tradição” por si só legitima a violência e crueldade, então podemos voltar ao “cá em casa manda ela e quem manda nela sou eu” e toca de lhe bater.

Os argumentos dos defensores das touradas são a versão portuguesa dos argumentos da National Rifle Association nos EUA, que também se identifica como uma “associação de direitos civis” e usa o argumento da tradição para justificar uma sociedade banhada de armas e em que a violência dos massacres é sempre culpa de outra coisa que não sejam as armas.

As histórias ridículas de como os defensores das touradas “amam os touros” (sic), de como prezam a valentia dos animais, de como o “touro bravo” enobrece os campos do Ribatejo, para depois ser trazido à arena de tortura e morte como se esse fosse o seu destino teleológico, a cultura machista da “coragem” perante os mais fracos (o touro é o mais fraco dentro da praça), devem pouco a pouco envelhecer no passado. É isso mesmo que chamamos civilização.

O mundo em que vivemos é duro, desigual, injusto, violento. Quem saiba história sabe que não há maneira de o tornar limpinho, higiénico, pacífico, nem em séculos, quanto mais numa geração. Mas acabar com as touradas, com a tortura dos touros para satisfação sádica das massas, é um passo no bom sentido. Porque senão vivemos na pior das hipocrisias em que matar ou tratar mal um cão e um gato pode levar à prisão — e bem —, mas em que no meio de cidades e vilas de uma parte do país podemos aplaudir a tortura, o sangue e a morte.

O teu nome, Liberdade

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 17/11/2018)

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“Aproveitando a tranquilidade de um voo para Berlim” (que chique que soa!), António Costa lá arranjou um tempinho para responder à carta aberta de Manuel Alegre onde este desabafava “basta do politicamente correcto”! O tom paternalista e condescendente da resposta de António Costa seria apenas deselegante e mesmo cruel, não se desse o caso, mais grave, de a sua argumentação e posterior confronto dos registos de Costa com o assunto tauromáquico revelarem antes uma arrogante superioridade que é o chão onde ele tropeça e se atasca sem bóia de salvação. Comecemos pela argumentação.

Quando se solidarizara com a sua ministra da Cultura na perseguição fiscal às touradas, invocando também a sua aversão pessoal a elas, o primeiro-ministro finge não perceber que o que está em causa na discussão é justamente a legitimidade que um governante não tem de decidir em função dos seus gostos pessoais.

Que o deputado do PAN, que foi eleito com esse programa, o queira levar avante, é inteiramente legítimo; que um ministro da Cultura invoque os seus gostos pessoais para taxar mais ou menos os espectáculos de que gosta ou não gosta ou que acha civilizados ou não, tem um nome: chama-se abuso de poder. E eu, sinceramente, não vejo aqui qualquer diferença entre esta situação e aquela em que um patético ex-secretário de Estado da Cultura excluiu um livro de Saramago de um concurso literário europeu por entender, no seu gosto pessoal, que ele ofenderia os valores civilizacionais dos portugueses. É nestas alturas que se vê como o poder pode ser perigoso… Também não pode passar em vão a sibilina ameaça que Costa deixou implícita à administração da RTP: “repugna-lhe” ver a transmissão de touradas pela empresa pública de televisão (hoje em dia creio que reduzida apenas a uma única transmissão, a da própria “Corrida RTP”, com enorme audiência — e daí o perigo que os seus opositores vêem nela). É verdade que o PM acrescentou que, apesar dessa repugnância, não lhe passa pela cabeça proibi-la, mas o simples facto de admitir que, em querendo, poderia proibi-la, leva a que alguém como eu, que já assistiu a vários “recados” destes no passado e viu as respectivas consequências acontecerem, não possa presumir a completa inocência desta frase, aparentemente inócua. Enfim, e o principal quanto à argumentação de António Costa: diz ele que “rejeita a tourada como manifestação pública de violência ou de desfrute do sofrimento animal”. E peço desculpa: esta afirmação é de má-fé intelectual, não há outra forma de a classificar. O que leva António Costa a concluir com tal segurança que o público que vai às touradas ou as vê na televisão o faz porque gosta de ver violência ou sofrimento dos animais? Eu não sou aficionado, mas há coisas nas touradas, enquanto espectáculo, que acho maravilhosas e, entre elas, não está nem a violência nem o sofrimento dos animais. Ainda há dias, António Costa foi à Luz ver o seu Benfica jogar contra o Ajax. Como seria de prever e frequentemente acontece, houve desacatos entre a claque dos holandeses e os “grupos organizados de adeptos”, a que no Benfica não se podem chamar claques, para contornar a lei em vigor — e de que, aliás, o senhor primeiro-ministro deveria ser, em última instância, o garante do respectivo cumprimento. No final, até os “grupos organizados de adeptos” do Benfica prosseguiram as cenas de violência no hotel onde estavam os holandeses. Poderei eu dizer também, aplicando a mesma regra de pensamento, que António Costa foi à Luz, não porque gosta de futebol, mas porque gosta de violência?

E, finalmente, o que tramou a eficácia da prosa produzida por António Costa, na tranquilidade do seu voo para Berlim, foi a divulgação posterior do registo histórico do seu pensamento tauromáquico. O passado, já o sabemos, raramente é tranquilo, e o dos políticos menos ainda: António Costa devia sabê-lo. Antes de se proclamar tão definitivamente repugnado pelo espectáculo taurino, o actual António Costa, primeiro-ministro, deveria ter feito um esforço de memória para se lembrar do que fizera ou dissera sobre o mesmo assunto o mesmo António Costa, presidente da Câmara de Lisboa, uma dúzia de anos atrás. Eu sei, foi tudo por inerência de funções. Foi por inerência de funções que ele frequentou o Campo Pequeno, por inerência de funções que condecorou um forcado em final de carreira, louvando-o por escrito como figura que engrandeceu a cidade de Lisboa, e por inerência de funções que teceu tão rasgados elogios de gratidão ao contributo da “arte” (sim, da “arte”!) tauromáquica para a cidade de Lisboa. Concedo até que terá assinado de cruz o louvor sem sequer o ler, que terá engolido as touradas com bem disfarçada repugnância: ossos do ofício. Pois, seja. O poder é perigoso e a política é um jogo de espelhos: “Aqui estou eu agora, ocultando o que sinto, dizendo o que não penso, condecorando quem não respeito. Mas um dia serei livre para dizer e fazer tudo o que penso”. A minha legítima pergunta é: e como é que distinguiremos esse dia do dia de ontem? E do dia de amanhã?


2 Escrevi as vezes que entendi necessárias sobre a investigação do caso Sócrates e os atropelos que, no meu entender, ela cometeu sobre direitos e garantias processuais de quem é investigado em processo-crime. Em nenhum momento o que escrevi — e frisei-o sempre — implicava qualquer juízo de valor sobre a culpabilidade ou inocência dos acusados (para o que me faltavam, e continuam a faltar ainda, elementos de conhecimento determinantes), mas apenas sobre aquilo que é essencial garantir num Estado de direito. Tal, porém, não evitou que para alguns Torquemadas de trazer por casa, eu fosse imediatamente classificado numa lista de “amigos de Sócrates” — logo completada pelo habitual rol de calúnias e ofensas nessas escolas de crime impune que são as redes sociais.

Pois bem, volto ao assunto para dizer que as circunstâncias em que, mais uma vez, o Ministério Público, com o aval de um juiz de Instrução, procedeu à detenção prévia para interrogatório de Bruno de Carvalho e do chefe da claque Juve Leo é inadmissível, intolerável e um espectáculo degradante para a nossa Justiça. Independentemente da questão de fundo que está em investigação, que é séria e suficientemente grave para ser levada até onde for necessário.

Mas que alguém possa estar quatro dias e quatro noites preso numa esquadra de polícia (e sem condições de detenção sequer aceitáveis) à espera que um juiz tenha tempo para o ouvir — e até à espera que tenha fim uma greve de funcionários de Justiça — é de um abuso e de um arbítrio que os magistrados verdadeiramente só entenderiam no dia que lhes coubesse o mesmo em sorte. O que, como é óbvio, jamais acontecerá.

A figura da “detenção prévia” para interrogatório não existe na lei: existe, sim, a convocatória e só se alguém se furtar a ela é que o juiz pode determinar a sua detenção para vir a interrogatório. Agora, isto que vemos é uma invenção, sem cabimento legal e, sobretudo, sem cabimento num sistema penal civilizado. Da mesma forma que é inaceitável que onde a lei diz que um detido deve ser presente em 48 horas a um juiz para que a sua detenção seja ou não validada, essa validação não pode ser substituída pela simples identificação do detido pelo juiz (para se certificar que não prenderam a pessoa errada?), após o que o mesmo regressa à cela, continuando à espera que o juiz tenha uma aberta na agenda para o ouvir. É que, além de ilegal e abusiva, esta espécie de pré-prisão preventiva tem tendência a acarretar uma consequência posterior: que é a de o juiz se ver tentado a decretar a prisão preventiva como forma de justificar a posteriori os dias que o suspeito já passou na prisão à espera de ser ouvido — muito embora não tenha sido esse o desfecho aqui. Estamos no terreno dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos face ao poder penal do Estado. É aqui que o grau de saúde democrática de um país se começa a conhecer. Mas há sempre razões muito ponderosas e necessidades de investigação muito atendíveis para ir facilitando. E, de facilidade em facilidade, vamo-nos habituando a ver como normal o que é inaceitável.


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia