Comemorar 50 anos de democracia

(José Vítor Malheiros, in Facebook, 09/06/2021)

José Vítor Malheiros

Os comentários críticos vindos da direita e da extrema-direita (é cada vez mais difícil distingui-las) sobre a nomeação de Pedro Adão e Silva para comissário executivo das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril apresentam duas ordens de “razões”: 1) Trata-se de um socialista 2) Vai ser pago (e bem pago) por esse trabalho.

A primeira “razão” deveria morrer de vergonha antes de sair da boca de Rui Rio, Rodrigues dos Santos ou Ventura se algum tivesse uma réstia de honestidade intelectual. A direita nomeou correligionários aos magotes, uns com competência e muitos sem ela, para todos os lugares imagináveis sem que estes recentes arautos da independência partidária emitisse um ai. Nesses casos, o facto de serem uma escolha partidária pareceu-lhes uma qualidade. O comentador João Miguel Tavares foi nomeado presidente da Comissão Organizadora das Comemorações do 10 de Junho do ano passado sem que esta direita se inquietasse minimamente com o despautério da nomeação ou com as tolices do seu discurso. Que esta mesma direita critique Adão e Silva é, por isso, ridículo. Adão e Silva é de facto socialista mas é, além disso, um profissional cuja competência, inteligência e rigor são reconhecidos por todos os que não estejam afectados pela cegueira ideológica – a começar pelo Presidente da República. E é, o que convém nestes casos, alguém cujo apego à democracia que nasceu do 25 de Abril não é susceptível de dúvidas e cujo conhecimento do país que nasceu dessa democracia é de uma particular solidez. Por outras palavras, não é um João Miguel Tavares. Sabemos que isso custa à direita, mas ter uma direita tão avessa à cultura e ao pensamento não devia ser motivo de orgulho para ninguém.

A segunda “razão” tem ainda menos racionalidade.

Penso, e sempre defendi, que o trabalho deve ser pago. Defendi isso quando se tratava do meu trabalho e quando se tratava do trabalho dos outros. Penso que toda a gente está de acordo com a frase tal como a enunciei, mas penso que o problema não está aqui. O problema está no facto de que, para a direita populista (hoje é toda a direita) o trabalho intelectual não é trabalho e, por isso, não merece pagamento e os intelectuais e académicos, como Adão e Silva, são elites a abater.

Goering puxava da pistola quando ouvia falar de cultura. Milán-Astray pedia a morte da inteligência. A direita portuguesa ainda não está aí mas para lá caminha. A criada de Alexandre Herculano dizia que o escritor era boa pessoa mas muito preguiçoso, passava os dias a ler e a escrever. Rui Rio, que acha que os debates parlamentares não deixam os políticos trabalhar, acha que as comemorações de 50 anos de democracia devem ser um dia e que organizar comemorações não é trabalho. Daria vontade de rir se não fosse trágico.


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Um duelo de traquitanas

(Pedro Adão e Silva, in Expresso, 07/05/2016)

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                  Pedro Adão e Silva

A geringonça não aconteceu por acaso nem foi fruto de idiossincrasias dos líderes e o mesmo é válido em relação à recomposição da direita, sob a forma de caranguejola

De um lado, uma geringonça, de outro, uma caranguejola. Duas metáforas que sugerem que, à esquerda e à direita, estamos perante entendimentos políticos frágeis. Não foi por acaso que as expressões se popularizaram — são exatas. Mas talvez seja um equívoco assumir que, sendo os equilíbrios frágeis, são de curta duração. A geringonça e a caranguejola, duas traquitanas que se podem desconjuntar a qualquer momento, estão aí para durar.

A formação da geringonça não aconteceu por acaso nem foi fruto de idiossincrasias dos líderes e o mesmo é válido em relação à recomposição da direita, sob a forma de caranguejola. Há alterações estruturais que explicam o contexto político que vivemos e as lideranças atuais têm o perfil adequado aos novos tempos. É verdade para António Costa e para Passos Coelho.

Apesar disso, não passa um dia sem que se escutem lamentos pelo fim dos compromissos moderados e alguma nostalgia por um tempo em que PSD e PS eram partidos ancorados ao centro. Estes lamentos tendem a responsabilizar a má vontade das lideranças pelo fim de uma cultura de compromisso (aliás, ela própria mitificada). Nada de mais errado. Os partidos limitam-se a refletir a recomposição eleitoral da sociedade portuguesa.

Ora, o centro político está em lenta erosão. E se pensarmos no processo de implosão que ocorre um pouco por toda a Europa, por cá o cenário até não é dos mais radicais. A combinação de crise económica e social e o agudizar do combate cultural levaram a que, à direita, a democracia cristã se tenha transformado em direita neoliberal, enquanto o eleitorado, para se manter fiel à social-democracia, se deslocou para a esquerda (em importante medida porque os partidos socialistas alinharam com a ortodoxia neoliberal).

O que é singular no caso português é que, apesar de tudo, os socialistas vão resistindo eleitoralmente e a esquerda radical moderou a sua agenda. Provavelmente por razões táticas: a perceção de que os custos eleitorais de um não-entendimento eram insustentáveis e, depois, algum entrincheiramento, que valoriza (re)conquistas sociais e a reversão de medidas do Governo anterior. Talvez assim se perceba melhor como uma geringonça pode ser instável e duradoura.

É esta durabilidade da geringonça que cria dificuldades a uma caranguejola, com um processo de gestação longo e bem anterior a Passos Coelho. Desde a liderança de Durão Barroso que se assiste a uma recomposição política da direita portuguesa, que, tal como as suas congéneres europeias, se foi afastando do centro. A crise foi uma oportunidade para os protagonistas certos porem em marcha um plano já arquitetado.

Para a direita, o problema agora é outro. Com um entendimento à esquerda que resiste contra as expectativas iniciais, e sem margem para reconversão programática, o que resta à caranguejola é ficar “sossegada”, à espera que a geringonça se desconjunte, empurrada pela Europa.

Que estabilidade?

(Pedro Adão e Silva, In Expresso, 26/09/2015)

Pedro Adão e Silva

               Pedro Adão e Silva

Os portugueses desejam uma solução política que garanta estabilidade e que seja capaz de promover compromissos. Resta saber quem é que será capaz de assegurar estes objetivos.

Neste momento, o retrato que nos é dado pelo conjunto das sondagens permite afirmar quatro coisas com clareza: estamos perante eleições muito disputadas; há uma ligeira vantagem da coligação; persiste um número significativo de indecisos e das eleições sairá uma maioria parlamentar robusta que rejeita o atual Governo. Se este cenário se confirmar, devíamos durante esta campanha estar a discutir mais o dia 5 de outubro do que qualquer outra coisa.

Com um parlamento com uma maioria de esquerda fragmentada e, se se vier a verificar, uma ligeira vantagem em número de deputados para a coligação, que tipo de estabilidade política poderá ser garantida? A pergunta não tem resposta fácil e pode bem empurrar o país para um beco político.

Na semana passada, o Expresso colocava uma questão: se um partido tiver mais votos expressos e outro (no caso, uma coligação — o que não é despiciendo) tiver mais deputados eleitos, o que fará o Presidente? A discussão é meramente académica, quem tiver mais votos acabará por ter quase de certeza mais mandatos. Contudo, é uma discussão que serve para iludir uma outra, que se vai colocar de forma aguda no dia 5 de outubro.

Façamos, a este propósito e tomando como boas as sondagens, o seguinte exercício. O Presidente ouve os partidos, que lhe dizem o seguinte: à esquerda, do PS ao PCP, passando pelo Bloco, garantem que não viabilizarão um Governo minoritário PSD/CDS, que entretanto se disponibilizaram a coligar-se.

Perante este quadro, vai o Presidente empossar um Governo condenado a chumbar no Parlamento? E se o fizer, como é que governará uma coligação liderada por Passos Coelho e Portas, em minoria, quando tem atrás de si um legado de conflitualidade institucional (com o Tribunal Constitucional, com a concertação social) e política e social com todos? Não se percebe bem que tipo de estabilidade política pode a coligação PàF oferecer.

À esquerda o desafio não é menor. Todas as sondagens indicam uma maioria parlamentar de esquerda. A questão é que, como sabemos há demasiados anos, a maioria social de esquerda não se traduz nunca numa maioria política de esquerda. Desta feita o desafio será diferente. Se a esquerda não viabilizar um Governo de direita (o que parece uma inevitabilidade), poderão BE e PCP inviabilizar no Parlamento um Governo minoritário do PS? Caso o façam, ficarão numa situação insustentável e que ninguém compreenderá.

Uma coisa é possível também garantir com certeza hoje. Os portugueses desejam, revelando, aliás, um grande bom senso, uma solução política que garanta estabilidade e que seja capaz de promover compromissos. Resta saber quem é que, apesar de todos os constrangimentos, será capaz de assegurar estes objetivos a partir de dia 5 de outubro, um governo minoritário e incoligável PSD/CDS ou um governo minoritário, mas capaz de alcançar entendimentos parlamentares do PS?