Os ricos nunca pagam a crise nem quando lhes convém

(Ana Sá Lopes, in Público, 28/11/2021)

A quebra das patentes das vacinas foi defendida em Portugal pelo Bloco e PCP e no resto do mundo por perigosos comunistas como o presidente americano Joe Biden, o secretário-geral das Nações Unidas António Guterres, o ex-presidente da Comissão Europeia Durão Barroso e a Organização Mundial de Saúde.

A Europa comportou-se como habitualmente: primeiro, o desgraçado Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, anunciou entusiasmado que na cimeira social do Porto da Presidência portuguesa a matéria da quebra de patentes iria ser discutida. Ursula von der Leyen, presidente da Comissão, escreveu no Twitter qualquer coisa que dava para todos os lados, sem se comprometer muito com nada ao certo. A Espanha queria a quebra das patentes, Portugal estava a ver para onde o vento soprava.

Charles Michel, passadas poucas horas, foi obrigado a recuar em toda a linha. Angela Merkel, que tanto tem sido festejada por estes dias – é da natureza humana que na altura das despedidas os erros sejam sobrelevados e as qualidades estratosfericamente abençoadas – veio dizer que estava contra. E na Europa, como toda a gente sabe, quem “manda” é a Alemanha – vai ser interessante assistir agora ao debate iniciado sobre as mudanças em torno das regras europeias do défice e da dívida, agora que é um socialista a ocupar agora a chancelaria, mas o Ministério das Finanças está nas mãos de um liberal. Depois da Alemanha dizer não à quebra das patentes das vacinas, os líderes europeus reuniram-se no Porto, não para apoiar a quebra das patentes como previa Michel, mas para se juntarem à Alemanha.

O resultado da miséria moral do mundo rico sobre as vacinas é a criação de novas variantes, incluindo a mais recente Ómicron, identificada por cientistas da África do Sul fazendo com que o país que a identificou seja agora penalizado, como aqui explicou a Clara Barata. Mas ninguém ainda se lembrou de proibir voos para a Bélgica ou o Reino Unido, onde a variante também já foi identificada.

No mundo rico, discute-se se crianças de cinco anos saudáveis – em que a doença não causa qualquer risco – devem ser vacinadas. No mundo rico, só há um problema: a quantidade de pessoas, felizmente diminuta em Portugal mas elevada na Alemanha, entre outros países, que se recusam a vacinar-se contra a covid. Enquanto o mundo rico vive com estes dilemas, os médicos e os velhos do mundo pobre pura e simplesmente não são vacinados. Vejamos os números: em toda a África, apenas 7,2 por cento dos cidadãos têm as duas doses da vacina. No Egipto, aqui ao lado, só 13% da população está totalmente vacinada. A África do Sul tem 24% dos habitantes com as duas doses, enquanto a Somália tem 3,5%. Os nossos “irmãos” Angola e Moçambique têm respectivamente 8,1% e 11%. A baixa vacinação estimula a fábrica de variantes.

Os ricos nunca pagam nenhuma crise, já sabemos. Mas que se recusem a pagar a crise covid, um atentado contra os seus próprios interesses económicos, é razoavelmente irracional para o futuro dos seus rendimentos.


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Nem o Papa comove os empedernidos dirigentes europeus

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 11/05/2021)

Diz o Papa Francisco que há várias “variantes do vírus”: a primeira será o “nacionalismo fechado, que impede, por exemplo, uma internacionalização das vacinas”, vem depois a “outra variante, quando colocamos as leis do mercado ou da propriedade intelectual acima das leis do amor, da saúde e da humanidade”, e ainda uma terceira, “quando criamos e promovemos uma economia doentia, que permite que uns poucos muito ricos possuam mais do que todo o resto da humanidade, e que os modelos de produção e consumo destruam o planeta, nossa casa comum”.

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Ao ouvir estas palavras, percebe-se a razão para os frémitos de indignação que sacodem as administrações de algumas das principais farmacêuticas e tantos governantes europeus, sentiram-se ameaçados na carteira. Por isso, a recusa à proposta da Administração Biden para o levantamento das patentes tardou poucos dias e foi categórica, como se viu na Cimeira do Porto, e o pedido do Papa foi ignorado: num ápice, Merkel, mesmo à distância, alinhou as declarações de Von der Leyen e de António Costa, calou Macron e deixou Sanchez a falar sozinho.

A ministra portuguesa já tinha antecipado o argumento e, em fevereiro, afirmava que o seu governo recusa a quebra de patentes, mesmo considerando que esse conhecimento é “um bem público universal”, mas que deve continuar a ser gerido pelos gigantes privados. Em março, voltou a garantir que a medida proposta por duas das suas antecessoras no ministério, junto com o ex-bastonário da Ordem dos Farmacêuticos e ex-diretor do Infarmed, “não resolve a capacidade industrial”. Esta convicção foi abalada pela surpresa da nova posição do governo norte-americano, que forçou as autoridades portuguesas a declarar que a proposta já merecia atenção, até serem obedientemente reconduzidas ao redil de Merkel. Não foi caso único. Macron, que a 6 de maio dizia entusiasticamente que era “completamente a favor da abertura da propriedade intelectual”, passou a repetir que isso nem importa. E a União Europeia fechou a porta a um acordo, mantendo o bloqueio na Organização Mundial do Comércio (OMC), que impede que a África do Sul e a Índia possam ampliar a sua produção, mas também recusando o pedido de empresas de outros países, do Canadá ao Bangladesh.

Esta fronda em nome da Big Pharma garante que é irresponsável reduzir os lucros das farmacêuticas, porque isso diminui o seu incentivo para investigação científica sobre novas estirpes. O termo “irresponsabilidade” tem aqui uma conotação curiosa. Talvez alguém se lembre que uma das maiores empresas mundiais, a Gilead, tentou convencer o mundo a usar o Remdesivir, um medicamento para a ébola, como solução para a pandemia, ou que uma turba de governantes lançou a cloroquina, sem que os seus produtores avisassem que era uma fraude. Seriam atos de dedicada responsabilidade, como se entende. Por outro lado, quem pede o levantamento das patentes não são só dirigentes políticos (Biden) ou religiosos (o Papa Francisco). Antes de todos, foi a Organização Mundial de Saúde e António Guterres, secretário-geral da ONU, que pediram a partilha voluntária do conhecimento para que a vacinação mundial não se arraste até 2024. Se querem usar o termo “irresponsável”, apontem-no para a OMS e para a ONU e deixem o Papa em paz.

Acresce que a ameaça de parar a investigação se os lucros não se multiplicarem não é para levar a sério, dado que a investigação de base nem depende da Big Pharma. Todas estas empresas dependem da ciência produzida em universidades e laboratórios nacionais. A vacina da Moderna resulta de uma parceria com o National Institute of Health dos EUA, aproveitando a sua investigação sobre a proteína spike, que permite o ataque ao coronavírus. Foi o NIH que realizou o primeiro ensaio clínico desta vacina. A BioNTech, como a Moderna, usa as descobertas da cientista húngara Katalin Karikó, que trabalhava na Universidade da Pensilvânia (e é hoje vice-presidente da empresa). A vacina da AstraZeneca depende do trabalho de Sarah Gilbert e do Jenner Institute da Universidade de Oxford, que aplicou os resultados do seu combate a outro coronavírus, o MERS.

Além disso, o levantamento do direito de patentes, provisório que seja, já foi testado no passado. Quando Nelson Mandela enfrentou a Administração norte-americana de Clinton para conseguir produzir genéricos dos antirretrovirais para o HIV, chocou com a barreira dos interesses económicos e só quando Al Gore, o vice-presidente, cedeu, é que foi possível disponibilizar o tratamento na África do Sul. O que se verificou, e não podia ser de outro modo, foi que, quanto mais difundido está o conhecimento essencial de um medicamento, maior é a capacidade de inovação incremental.

Ao contrário do que hoje afirmam as grandes farmacêuticas, a partilha do conhecimento entre mais instituições de investigação de ponta multiplica o êxito científico. Assim, no contexto desse conflito, foram definidos novos procedimentos legais para suspender os direitos de propriedade intelectual no caso de medicamentos essenciais, através de licenças compulsórias. A OMC aceitou essa regra no acordo sobre Trips (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights) e está na letra da lei. Foi nesse sentido que, em 20 de abril do ano passado, uma declaração conjunta de Azevedo, então diretor da OMC, e de Ghebreyesum, diretor da OMS, pediu a “partilha dos direitos de propriedade intelectual”. Bem sabiam que a proposta estava bloqueada pelos EUA e pela UE. Agora só a UE a impede.

Antes de sugerir esta nova posição para um acordo mundial sobre levantamento das patentes, Biden já tinha forçado um acordo entre a Johnson & Johnson e a maior farmacêutica mundial, a Merck, para que esta passasse a produzir em larga escala a vacina da primeira. A Moderna, entretanto, anunciou que não processará judicialmente quem reproduzir a sua vacina, embora alguns dos procedimentos associados ao uso da produção de vacinas na base do RNA mensageiro (mRNA) estejam patenteados por outras instituições. Deste modo, a ameaça de suspensão das patentes pode pelo menos ter um efeito imediato, obrigando as empresas a licenciarem a produção e estendendo o sistema produtivo para usar a capacidade tecnológica disponível, e é muita. Se, como tudo leva a crer, a produção das vacinas se vier a basear predominantemente na tecnologia do mRNA, que usa recursos mais facilmente acessíveis, será possível cobrir a população mundial.

Que o governo alemão instrua a Europa a recusar o acesso universal ao conhecimento sobre as vacinas tem uma mesquinha justificação: Merkel quer criar um campeão industrial nacional nesta área, a BioNtech, que está associada à Pfizer. Que a Pfizer, que anunciou para 2021 sete mil milhões de dólares em lucros com a vacina, ou outras farmacêuticas não aplaudam o aumento da produção mundial, também se compreende. Mas que os líderes europeus aceitem estas chantagens diz muito sobre a mentira que é a prometida cooperação na saúde e a solidariedade contra a doença. Tem razão o Papa Francisco, estes vírus já contaminaram muito fundo a nossa vida social, é “uma economia doentia” em que a lei do mercado está acima do respeito pela humanidade.


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