As negras previsões do humor britânico

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 16/10/2022)

Apesar da seráfica figura de Carlos, que faz parecer um cirio um clarão de fogo-de-artifício, a situação em Inglaterra está a tal ponto após os governos de Cameron, Theresa May, Boris Johnson e agora Liz Truss, que o editorialista do «The Guardian», David Mitchell já escreve: “Talvez devêssemos considerar o regresso à monarquia absoluta!”

O humor britânico é um excelente boletim meteorológico para prever tempestades políticas e sociais. Quando os ingleses se riem de si, os outros europeus deviam pensar na tempestade que se aproxima.

Carlos III tomou uma decisão que podia inspirar Marcelo Rebelo de Sousa: Reduziu o seu horário de trabalho em duas horas. A medida motivou o comentário de The Guardian: É como um ator que esperou longos meses pelo papel e cuja primeira pergunta quando chega ao primeiro ensaio é: A que horas é o almoço.

Mas acontece que Sua Majestade quer poupar tempo aos súbditos. Propôs diminuir em duas horas a cerimónia da coroação (Maio 2023) — mais simples e mais barata. Não é apenas a duração do evento que vai ser cortada. Algumas tradições antigas provavelmente serão removidas, por exemplo, o “tribunal de reivindicações” onde se finge que as decisões são tomadas. Também é provável que a apresentação de lingotes de ouro ao novo monarca seja eliminada.

A lista de convidados também será reduzida, dos 8.000 que foram amontoados na Abadia de Westminster da última vez, com a ajuda de enormes pórticos de madeira para uns 2.000 (que, ainda assim, incluirão Marcelo Rebelo de Sousa, estou certo).

Também está a ser pensado refazer o código da vestimenta e dispensar os nobres de usar “roupões” de coroação. Um pena, pois roupas loucas parecem ser um divertimento importante neste tipo de eventos: todos de uniforme, mas sem uniformidade de uniforme. Uniformes em enorme variedade, esse é um paradoxo do cerimonial real e que se sente adequado às circunstâncias em que a figura de topo de uma economia G7 deve ser apresentada com um símbolo sagrado, coroada com um capacete de metal nobre, antes que todos nos possamos curvar sempre que o Rei entra numa sala.

Obviamente é tudo um pouco bizarro, mas parece relativamente inofensivo e pode ser divertido. A arqueologia viva é interessante. Encurtar a coroação é bom, desde que se mantenham os atores vestidos carnavalisticamente e que se mantenham as regras. Todos devem sentar-se, a menos que devam ficar de pé. Todos devem usar preto, a menos que usem vermelho. Todos devem estar quietos, exceto um homem que grita incrivelmente alto.

O jornal Daily Mail rejeitou a ideia dos ambientalistas de que na coroação de 2023 fossem proibidos os toques de sinos e as sirenes, para não assustar pássaros e outros animais, e orquestrou um inquérito para provar a aprovação do público. Setenta por cento dos entrevistados declararam que “pompa é o que a Grã-Bretanha faz melhor”. Apoiaram os ruídos metálicos. Pode-se argumentar que nenhum país representa a pompa melhor do que a Grã-Bretanha, mas é surpreendente a noção de que a principal reivindicação à excelência deste país que produziu o segundo maior número de vencedores do Nobel se centra na arcaica coreografia militar e religiosa!

Parece ser boa medida encurtar a coroação e perder algumas cenas de que ninguém ouviu falar, desde que ainda seja um grande evento com todos vestidos de forma extravagante. A cerimónia apenas necessita de ser insana e ser apresentada como se fosse a coisa mais surpreendente do mundo!

É sensato da monarquia reconhecer os tempos difíceis e de apertos e não colocar muitos lingotes nas fotografias de Charles III. A economia está a afundar-se, milhões de pessoas estão assustadas, os pobres a ficar mais pobres e o Rei está a demonstrar que se importa com eles, algo que o governo parece surpreendentemente incapaz de fazer.

Isso faz-me suspeitar que nossa situação (a da Grã Bretanha, mas aplica-se a toa a Europa, e Marcelo Rebelo de Sousa é monárquico) poderia melhorar se restaurássemos a monarquia absoluta. Nas presentes circunstâncias é evidente que a monarquia é mais funcional do que o governo parlamentar.

Na última eleição, nosso sistema de votação deu ao público uma escolha entre um mentiroso e um socialista e acabamos não sendo governados por nenhum deles. Em vez disso, temos um líder votado apenas por um punhado de membros de direita do clube conservador, que manifestamente não tem a confiança do público.

Democracia e meritocracia são, naturalmente, muito preferíveis à autocracia real, mas a administração de Truss não tem mandato democrático e não demonstra mérito. Carlos III parece ter tanto direito de nos dizer o que fazer quanto ela e dificilmente poderia fazer pior.

Fim de elementos retirados do artigo. https://www.theguardian.com/commentisfree/2022/oct/16/i-know-which-of-our-unelected-leaders-i-prefer-king-charles-liz-truss

Já agora, Ursula Van Der Leyen, Borrel, Charles Mitchel, o secretário da Nato, a presidente do Banco Central Europeu também não têm, tal como Liz Truss, mandato democrático. E não será problema arranjar um rei para a União Europeia, até temos especialistas em casas reais que vão à televisão e, tal como Carlos de Inglaterra, um Carlos de qualquer ponto da Europa poderia fazer pior do que os atuais ocupantes dos cargos reais de Bruxelas.

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A Rainha e os súbditos

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 17/09/2022)

Miguel Sousa Tavares

A Rainha deu posse a Liz Truss como primeira-ministra na terça-feira da semana passada e dois dias depois morreu. Aparentemente, estava de perfeita saúde, apenas fraca, nessa terça-feira, mas, quando viu quem era a 14ª chefe de um Governo seu que lhe cabia nomear, ficou para morrer… e morreu mesmo. Essa era a fatalidade constitucional de Isabel II, a qual lhe coube arrastar em silêncio durante 70 longos anos: guardar para si os sinais evidentes de desconforto ou de desastre que a sua perspicácia lhe permitia ver mas obrigava a silenciar. Ao ponto de ir ao Parlamento ler um Discurso do Trono, integralmente escrito pelo primeiro-ministro Boris Johnson, em que prometia que “o meu Governo tudo fará para consumar rapidamente o ‘Brexit’” — a que ela, e outrora o próprio Boris Johnson (tal como Liz Truss), eram avessos.

Da edição semanal do Expresso para o formato podcast. A opinião de Miguel Sousa Tavares, de viva voz, todas as sextas-feiras. Com um tema extra, improvisado, para descobrir na parte final de cada episódio

Entre as várias coisas interessantes e as imensas banalidades e disparates que esta semana vi escritas ou ditas sobre Isabel II, li uma análise primária de uma nossa republicana facção histérica a proclamar que a Rainha fora uma privilegiada, que vivera uma vida inteira entre o luxo e a ociosidade. Como se o luxo fosse ter um séquito de empregados sempre em cima, ou ter 11 castelos ou palá­cios Tudor onde viver, ou ter de passar férias de Verão à chuva na Escócia. Ou como se a ociosidade, a falta de privacidade e a condenação pública ao silêncio para a vida fossem um privilégio. Há, seguramente, muitas razões válidas para se recusar a monarquia como sistema constitucional ou, simplesmente, para achar que não faz sentido considerá-la em países onde ela deixou há muito de estar institucionalizada, como é o caso de Portugal. Mas o argumento populista sobre os privilégios reais é o mais fraco de todos. É o argumento ditado pela inveja de rua, o mesmo que a rua aplica ao vencimento dos políticos, o argumento dos que defendem que toda a representação política deve ser exercida em estilo de sacerdócio — o caminho mais rápido para a corrupção e para a selecção de medíocres.

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ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

No caso da família real inglesa — que é, de facto, riquíssima —, parte dessa riqueza é do Estado e parte é da própria família Windsor: Balmoral, por exemplo, onde a Rainha morreu, é propriedade deles. Mas se a lista de despesas da família real, autorizada e votada pelo Parlamento, e que já foi bem maior, é, ainda assim, enorme aos olhos de um inglês comum, é porque as instituições e o povo entendem que é esse o nível de representação adequado para a Casa Real. Todavia, e como é bem sabido, toda essa panache de símbolos, cerimónias e parafernália ligada à Casa Real inglesa traduz-se num volume incomparavelmente maior de receitas que ela proporciona, ligadas ao turismo, hotelaria, comércio, venda de jornais e revistas. A Rai­nha (e agora Carlos III), a respectiva família e o que eles fazem ou deixam de fazer são uma constante e inestimável contribuição para o PIB do Reino Unido. E não só: basta ter visto, entre nós, as doses maciças de cobertura televisiva dos intermináveis funerais da Rainha.

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Mas, sim: 14 dias de funeral, mesmo para uma Rainha de Inglaterra, mesmo para Isabel II, que reinou ao longo da vida de quase três gerações, é demasiado. Desde Tutankhamon que não se via nada assim. Dizem-nos que tal se ficou a dever ao respeito que ela inspirou no mundo inteiro, ao exemplo excepcional que foi de servidora pública, das convicções firmes que sempre manteve (todavia silenciosas ou apenas presumidas), do rigor e do sacrifício com que exerceu funções. Bem, a avaliar pela indigência dos discursos com que foi homenageada nos Comuns por Boris Johnson, Theresa May, Liz Truss ou o próprio filho Carlos, não custa acreditar que, ao pé deles, ela tenha sido excepcional. Mas quem, dos grandes do mundo da geração de Isabel II, não é hoje excepcional comparado com o que temos à vista? Comparado com estas marionetas escravas das opiniões públicas instantâneas, do politicamente correcto e das redes sociais? Reparem na nova primeira-ministra inglesa, esse cata-vento que muda de opinião mais depressa do que muda o vento no Canal da Mancha, que não foi capaz de dizer se a França é um amigo ou um inimigo de Inglaterra, mas que, logo após ter tomado posse perante a Rainha, correu a telefonar e prestar vassalagem a Zelensky para ficar bem-vista do lado de onde sopra o vento nos dias de hoje. Seria muito curioso saber o que terá pensado a Rainha, mesmo antes de morrer, se foi informada desse telefonema. Terá concordado com ele, tê-lo-á achado uma prioridade de um PM inglês acabado de ser empossado? Aliás, com toda a sua experiência do mundo e das guerras a que assistiu, ela, que começou a aprender política com o verdadeiro Churchill, o que pensaria da guerra da Ucrânia e da posição do seu Governo perante ela?

Quem, dos grandes do mundo da geração de Isabel II, não é hoje excepcional comparado com o que temos à vista?

Mas, para efeitos de política interna, Liz Truss fez bem em apressar-se a telefonar a Zelensky. Pouco depois, o “Churchill do Leste” começou manifestamente a ficar nervoso com o protagonismo que o interminável funeral da Rainha lhe estava a roubar e justamente no momento em que ele tinha triunfos sólidos no campo de batalha e motivos de escárnio dos soldados russos para anunciar ao mundo. Juntamente com novo pedido de mais armas do inesgotável armazém do Pentágono, prontamente acudido por Washington. Como a guerra é um vaivém, os russos dizem-se agora prontos para negociar, mas Zelensky não: quer a vitória total, com as armas americanas, o apoio da NATO e as sanções europeias, pagas com a respectiva crise económica. E a vitória total inclui já a Crimeia e, no ime­diato, a anunciada retoma da central nuclear da Zaporíjia — o que implica atacar a central, mesmo com o pessoal da ONU lá dentro (aquilo que os ucranianos acusavam os russos de fazer mas que estranhamente cessou assim que os observadores da Agência Internacional de Energia Atómica lá entraram).

Assim, a menos que Putin se disponha a sair da Ucrânia dando-se por vencido e humilhado — o que não é exactamente provável —, temos guerra para durar sem fim à vista. E com a dita “chantagem do gás” posta em prática por Putin, e que mais não é do que a resposta previsível e natural às sanções sobre a Rússia, avizinha-se um Inverno negro em toda a Europa e um futuro que poderá ser bastante pior do que apenas o fim do “tempo da abundância” de que falou Macron. Mas que trará consigo também novas franjas de pobreza e desespero, campo fértil para a radicalização e o populismo, que a extrema-direita saberá aproveitar, como já vimos na Suécia e em breve veremos em Itália. Na Primavera, passado um ano sobre o início de uma guerra que ninguém quis evitar, acordaremos para uma Europa em ruína económica, que terá retrocedido em todas as metas climáticas, que terá recuado na sua paisagem democrática e vacilado em alguns dos seus princípios essenciais e que, provavelmente, terá rompido a sua tão propalada solidariedade. E depois perguntaremos como foi possível, como é que ninguém viu o desastre a acontecer debaixo dos nossos olhos. Tarde demais.

Vivemos num tempo em que os Reis estão reduzidos ao silêncio por imperativo constitucional e os príncipes ou princesas de que o povo gosta chamam-se Diana ou Stéfanie e só abrem a boca para falar de si próprias e dizer baboseiras. E os outros, os príncipes de carácter, são corpos estranhos a abater. Se fosse vivo hoje, o velho Winston Churchill não teria lugar na política.

Um homem que tinha uma visão imperial de Inglaterra, que bebia demais e fumava charutos cubanos em público, que gostava de caçar animais selvagens em África, que acordava às duas da tarde e ditava discursos à secretária todo nu na banheira, enquanto tomava um pequeno-almoço pornográfico, não sobreviveria um mês exposto à opi­nião pública. É verdade que também tinha uma coragem absurda e que dizia rigorosamente o que pensava na cara de amigos e inimigos: mais uma razão para ser trucidado.

E talvez Isabel II também fosse trucidada se alguém se lembrasse de resgatar, a propósito da guerra da Ucrânia, uma sua frase de referência: “A busca da paz é talvez a mais difícil forma de liderança.”

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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When Harry Met Meghan

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 12/03/2021)

Clara Ferreira Alves

(Excelente Clara! É por este e outros textos que a Estátua te desculpa quando “metes a pata na poça”… 🙂 ).


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Em 1989, uma comédia romântica destinada ao esquecimento fez história. Por vezes, acontecimentos triviais abanam a árvore do conformismo e conservadorismo e tornam-se, sem intenção, revolucionários. O filme “When Harry Met Sally…”, quando Harry encontrou Sally (“Um Amor Inevitável”), tinha Meg Ryan, a ingénua da época, e o comediante Billy Crystal como amigos que se tornam amantes, ao cabo de peripécias que descrevem a relação entre homens e mulheres. Escrito pela grande Nora Ephron, a comédia tornou-se revolucionária por causa da cena do orgasmo. Na Katz’s Delicatessen, em Manhattan, o casal mastiga um pastrami enquanto Sally explica a Harry que as mulheres fingem orgasmos. Ele, a típica resposta masculina, diz “comigo não”. E Sally demonstra como fingir um orgasmo. A cena é embaraçosa, para a época, e remata com uma mulher noutra mesa a dizer ao empregado, “quero comer o que ela comeu”.

Quando Harry, o príncipe inglês, encontrou Meghan, fez história. A entrevista a Oprah cristalizou num momento, como o da Katz, um propósito revolucionário. A monarquia inglesa é uma instituição tão datada e anacrónica como os asilos para mulheres “histéricas” do século XIX ou os conventos para mulheres desobedientes ou pobres. Em vez da Katz, tivemos a plataforma mediática de Oprah, a maior do mundo. Oprah é uma formidável máquina de comunicação, uma expressão modulada para a audiência global daquilo que a América pratica melhor do que ninguém, a confissão. As revelações da entrevista não surpreenderiam, a forma importa. Uma americana de classe baixa, sem meios nem fortuna, uma atriz de segunda ordem, enfrentou a maior e mais poderosa instituição inglesa, a Coroa. Meghan, com a beleza exótica que irrita os menos dotados, comandou o jogo. Vestida de Armani, com um desenhado lótus de renascimento, escreveu o jornalismo pedestre.

No Dia Internacional da Mulher, assistimos ao dilúvio de ódio e misoginia que galgou as redes e os comentários e inundou os media, incluindo os encostados à superioridade moral e financeira. Os comentadores do “FT” e do “New York Times” não resistiram à malícia. Só não puderam dizer que era um privilégio branco. Parafraseando Macbeth, quem diria que as pessoas tinham dentro delas tanto ódio, ou tanto sangue. Se as palavras fossem vitríolo estavam todos mortos ou corroídos por chagas. Ser queimada na fogueira foi, desde o primeiro momento, o fim reservado a Meghan.

Como ousava ela casar com o príncipe? Os contos de fadas não existem exceto na imaginação de mulheres nutridas por contos de fadas e colidem com o instinto de sobrevivência da classe possidente inglesa, a upper class.

Não se pode compreender essa entidade nacional chamada Reino Unido, feita da supremacia da inglesa sobre as outras, a galesa, a escocesa e a irlandesa, sem compreender o poder absoluto da monarquia e da aristocracia sobre uma sociedade assente em classes com o pretexto da tradição secular. Nada mudou, nem com os anos do trabalhismo, desde o domínio imperial. Tudo, incluindo o sentido de humor, o pessimismo inteligente e a autodepreciação, é formatado pela autopreservação e a rigorosa divisão social.

Marx escreveu ali o seu “Capital”, fornecia-lhe os elementos de que precisava para a teoria da luta de classes. Escusado será dizer que o marxismo no Reino Unido nunca teve nem terá hipótese e a monarquia, a supremacia de uma monarquia pensada e adaptada à democracia para ser um bastião do privilégio de classe, é a primeira linha de defesa contra veleidades coletivistas. Está fora de causa a destruição das classes, como está fora de causa, e acima das classes, a destruição da Coroa.

Repare-se no anacronismo. Uma monarquia riquíssima, dona de tesouros, sem escrutínio, destituída de poder político e sem qualquer utilidade social que não seja simbólica ou representativa de uma falsa proximidade entre o alto e o baixo no instante de cortar a fita. A rainha Vitória punha as joias para visitar os pobres. A monarquia é uma firma que funciona segundo os princípios de opacidade e mistério das poderosas multinacionais, as farmacêuticas e petrolíferas que os políticos temem. Uma firma que concretiza milhares de postos de emprego para leais súbditos e servidores, próximos do privilégio e fazendo-o render, dispostos a dar a vida pela instituição. Ou de simpatizantes e adeptos, ciosos da realeza como uma claque de futebol. Fora os empregos nos media, jornais e televisão, que a monarquia propicia e autoriza. E nem falemos da indústria turística.

Foi isto que matou Diana, esta máquina diabólica de lucro, a parte tabloide nas garras de Murdoch, que não autoriza desvio da norma. A monarquia é sagrada, mais do que um direito divino a reinar, é uma fonte de receitas e de regras imutáveis e intocáveis, a fundação de um sistema de autoridade que não tem religião. A monarquia é. Ou, como escreveu Christopher Hitchens, é uma falha da razão.

Para um jovem do século XXI, a monarquia parece um filme de terror pintado de cor de rosa. Uma família disfuncional com uma rainha nonagenária, um príncipe suspeito de abuso sexual de menores, Andrew, uma mulher assassinada pela personalidade, Diana, um velho herdeiro com uma amante, Carlos, e um príncipe-consorte centenário, Philip, cujo estado de saúde suscita mais compaixão do que os milhares de mortos de covid da responsabilidade de um primeiro-ministro que sem ser da aristocracia tem boas relações com a aristocracia e andou nas escolas da aristocracia, Eton e Oxford. E tem uma vaga ligação genealógica ao rei Jorge II, sendo assim parente de David Cameron.

Nesta construção caiu Meghan, cheia de ilusões americanas sobre a família e fazer o bem. Um filme do casamento mostra a cara assarapantada dos aristocratas, os primos, quando viram o pastor preto oficiar e cantar. O racismo existe. Mais do que o racismo da cor da pele, o que instiga a repulsa visceral por Meghan são as origens sociais. Trash. Um pai e uma meia família que vendem histórias aos tabloides, e que nem classe média conseguem ser. Vulgar é o pior insulto inglês. Gentalha que nunca deveria pisar um tapete palaciano ou contemplar um Rembrandt. E uma mãe preta. A frase mixed race confere à mestiçagem a vantagem do pingo de sangue branco. Mãe preta, antepassados pretos, claro que nas cabeças reais a pergunta jazia como um cadáver enterrado na cave. E se a criança sai preta?

Harry, um déclassé dentro da família repressiva acolitada pelos reptilianos tabloides que não hesitaram em dizer que seria um bastardo, filho de um amante de Diana, encontrou em Meghan a tal alma gémea. O conto de fadas do século XXI, com confissão e holofotes. Nem a morte de Diana abalou tanto a monarquia. Para os rentistas, rendeiros e admiradores da Coroa, a claque possessiva, a entrevista é a tomada da Bastilha. Nesta guerra entre Hollywood e a máquina mediática americana contra um austeniano orgulho e preconceito servidos pela máquina tabloide inglesa, ganha a América. Os ingleses nunca ganharam contra os americanos. Cheers.