A escola “de excelência” e a escola-gueto

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 17/05/2016)

Autor

                              Daniel Oliveira

Apesar de no espaço mediático quase todos os debates aparecerem como se fossem novos, o que se faz sobre o papel do Estado na Educação é velho de dois séculos. Como já escrevi várias vezes, não é isso que está em debate quando falamos de uma gestão racional de recursos na relação com os privados: ter escolas públicas a meio gás, que inflacionam o custo médio por aluno, enquanto se financiam escolas privadas ao lado, é criticável à luz de qualquer posição ideológica. Mas essa velha tensão não é indiferente para os que tentam usar os contratos de associação para impor uma política de facto consumado, criando uma rede privada paralela à pública, financiada pelo Estado. E também não é indiferente para os que compreendem os perigos desta caminhada.

O reforço do papel do Estado na educação foi, em Portugal, paralelo ao reforço da democracia. Depois de alguma separação entre o Estado e a Igreja, em que o primeiro retirou à segunda o quase monopólio da Educação, a assunção da necessidade do Estado reforçar o seu papel na Educação coincidiu com a ascensão do Estado Liberal, teve um impulso na I República e ganhou uma grande dimensão depois do 25 de Abril, com uma verdadeira democratização do ensino público.

Os sucessivos e positivos alargamentos da escolaridade obrigatória implicaram, é bom recordar, que o Estado teria de garantir a provisão pública a todos desse direito. Onde não o conseguia fazer, e apenas enquanto não o conseguisse, contratou a subsidiação de turmas com o ensino privado, a partir do início da década de 80, nas zonas onde havia carência na rede pública e por períodos específicos. Esta subsidiação não pretendia construir um sistema paralelo e concorrencial ao público.

A verdade é que, graças à capacidade de influência de interesses privados no Estado, muito comum em Portugal, o raciocínio inverteu-se: no início de cada ano, quando se decidia o número de turmas a contratar, assumia-se que as do privado se mantinham e o Estado tratava do resto. Esta opção não nasceu, ao contrário da ideia instalada, da preferência dos pais, mas duma escolha do Estado. À medida que a demografia fazia desaparecer alunos, as escolas públicas perdiam turmas, enquanto as privadas mantinham o número de turmas subsidiadas, como se de um direito adquirido se tratasse, numa total subversão da lei. Até chegarmos ao ponto em que o anterior ministro da Educação, com uma agenda ideológica quase tão marcada como a sua incompetência técnica, decidiu aprovar um Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo que contrariava a Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo e fazia desaparecer a carência de rede pública como condição para se celebrar um contrato de associação. O sinal político estava dado: era para continuar a erguer uma rede privada subsidiada pelo Estado até impor uma rede pública e privada, toda garantida pelo Estado, em competição. No caso atual, não há qualquer liberdade de escolha, já que é o Estado que escolhe. Mas, pelo menos no discurso que tenta legitimar uma subsidiação absurda do ponto de vista da gestão de recursos públicos, este debate ideológico tem estado presente.

Mesmo não sendo este o debate, no momento, é importante não deixar que se instale a ideia de que esse modelo é melhor para o país, para as crianças e para os pais. Quando as escolas entram em competição umas com as outras quem ganha liberdade de escolha é a escola, não são os pais. Porquê? Porque, ao contrário do que acontece com outros mercados, a qualidade do consumidor é o que mais determina a qualidade da oferta. Uma escola cheia de crianças oriundas de meios socialmente mais carenciados ou que tenha muitos alunos com problemas disciplinares e com necessidades educativas especiais pode ter o melhor sistema de ensino do mundo, excelentes condições e ótimos professores. Terá sempre piores resultados do que uma escola que pode selecionar os alunos, afastar os que criam problemas, não ter um alguém que, com as suas dificuldades, atrase a aprendizagem dos outros. A escola que possa selecionar os seus alunos, garantindo um ambiente sem problemas e um ritmo de aprendizagem que não é atrasado por miúdos mais lentos, terá cada vez mais procura e com isso poderá selecionar cada vez mais. A do lado, onde ficam todos os problemas, tenderá a piorar.

Dirão que são as leis do mercado. Acontece que essas leis, aplicadas à Educação, impedem que a escola cumpra um dos seus principais papéis: a de garantir a igualdade de oportunidades. A escola pública foi e continua a ser o mais poderoso instrumento em prol da igualdade na nossa democracia. A lógica do cheque-ensino (o Estado paga à família e ela escolhe a escola privada onde quer o seu filho), que está na cabeça de quem viu nestes contratos de associação um expediente para lá chegar, aniquila esta função da escola.

Dirão: isso é tudo muito bonito, mas temos de ser pragmáticos e este sistema revela-se mais eficaz. Mesmo para quem ache que não é grave deixar muitas crianças pelo caminho, em escolas que são o refugo onde todos os problemas se concentram, isso não é verdade. Temos um bom exemplo, porque adotou, apenas no final dos anos 90, o sistema sonhado por alguns: a Suécia.

Desde que aplicou um sistema de competição interna, por via de uma modalidade de cheque-ensino e do apoio crescente do Estado a escolas independentes, os resultados da Suécia no PISA (principal relatório internacional para avaliar a evolução dos sistemas educativos) não pararam de cair. Em 2000, os resultados dos alunos suecos eram, em leitura, matemática e ciências, respetivamente, 516, 510 e 512. Os portugueses tinham, nesse mesmo ano, e pela mesma ordem, 470, 454 e 459. Nos 12 anos seguintes, enquanto os resultados portugueses melhoravam, os dos suecos não pararam de piorar. Eram, em 2012, de 483, 478 e 485. Os portugueses aproximavam-se dos 490. Ou seja, Portugal, muito mais atrasado e com menos recursos, ultrapassou a Suécia, que então decidiu repensar o seu sistema. Porque este sistema, ao criar escolas socialmente segregadas, acaba por degradar as condições de aprendizagem da maioria das crianças e jovens, apenas salvando uma pequena minoria, num processo de seleção precoce com péssimos resultados para o conjunto da sociedade.

Minha rica escola

(João Quadros, in Jornal de Negócios, 13/05/2016)

quadros

João Quadros

Aos poucos foi crescendo a polémica das escolas privadas com contratos de associação. Fazem favor de sublinhar – contratos de associação. Já sublinharam?


Isso não é sublinhar, é riscar. Escrevam, todos juntos em coro e a dar a mão: “Os contratos de associação são mecanismos do Estado para suprir dificuldades na rede pública.” Agora, escrevam a bold: “Como todos esses mecanismos temporários, devem cessar quando a necessidade que lhe deu origem também cessar.” Pronto, está feito. Podem pegar no que acabaram de escrever e enviar para aquelas escolas com contratos de associação (e pais) que puseram crianças nas aulas a escrever cartas a políticos para que não acabem com subsídios. Espero que não tenham dado muitos erros.

Para a nossa direita liberal as empresas privadas vão à falência, porque deixam de ter clientes, e é bem feito, é o mercado a funcionar. Já escolas privadas irem à falência porque o Estado vai deixar de ir lá gastar é um ai valha-nos o Cristo que é uma infâmia!

Posto isto, exijo subsídio estatal porque quero tomar banho de imersão em água Castelo. Quero poder optar pelo privado na esfrega das partes privadas. Quero ser um cidadão com direitos especiais apenas porque não me sinto satisfeito com a água do serviço público à minha disposição; para mim tem pouco gás e a outra é melhor. Paguem, se faz favor.

A ideia do PSD/CDS é pagar duas vezes a educação dos miúdos: investimos na escola pública e depois ainda pagamos a outra para esvaziar a que pagámos. Quando isto passar, a direita nunca mais vai poder dizer mal de subsídios – é o fim de 90% do discurso.

Para os deputados do PSD e CDS, trata-se “de uma questão de liberdade de escolha, mas acima de tudo, de garantir que as promessas (com pais, alunos e escolas) são cumpridas. Ou seja, de que o Governo honra a sua palavra”. É assim mesmo deputados da ex-maioria, acima de tudo a palavra do Estado é sagrada!

Vamos regressar ao ano 2011, directamente (sem passar pelas notícias em que a palavra honrada do Estado corta unilateralmente os salários aos funcionários e abocanha os contratos com os pensionistas) para as capas de jornais de 28 Setembro: “O Estado vai faltar ao prometido e não vai pagar os prémios aos melhores alunos do secundário”; “Melhores alunos ficam sem prémio de 500 euros”; “A poucos dias da cerimónia de entrega, o ministro Crato suspende os prémios pecuniários de mérito”.

Em 2011, quando ficou com o dinheiro dos miúdos (e as promessas a pais, alunos e escolas não foram cumpridas), o ministro da Educação justificou-se dizendo: “O reconhecimento do mérito não pode ser só distribuir dinheiro. Mesmo sem receberem os 500 euros, o reconhecimento do mérito dos alunos fica.”

Resumindo, se fôssemos segundo a lógica do ex-Governo de Passos, agora o Ministério da Educação reconhecia o mérito das escolas privadas, que é uma coisa que fica, e cortava-lhes já a massa toda e siga. Pumba, sem dar cavaco! À Crato.