Gomes Ferreira, o canivete suiço

(Por Jovem Conservador de Direita, in Facebook, 12/08/2021)

Esta semana saiu um relatório segundo o qual as provas das alterações climáticas causadas pelo Homem são inequívocas. Felizmente, o grande especialista em tudo Dr. José Gomes Ferreira saiu em defesa da honra do Homem no seu programa. Chamou um conjunto de especialistas para os poder confrontar com factos que leu na internet que mostram que afinal não estamos assim tão mal.

Ele está a prestar um serviço excelente à economia. Da mesma forma que garantiu que o BES não ia cair, está a tranquilizar-nos em relação ao apocalipse. Isto liberta a consciência dos nossos CEOs que podem focar-se completamente na criação de riqueza sem terem essa preocupação acrescida com o apocalipse. Tal como no caso do BES, vai correr bem.

O Dr. José Gomes Ferreira, um conhecido céptico da cor de Marte, disse que, por causa da acção humana e da agricultura intensiva, o planeta está a ficar mais verde. Não importa o desgaste do solo, o consumo de água ou o impacto que a agricultura intensiva tem nos ecossistemas, o que importa é que de lá de cima se veja tudo verdinho. É como as contas do BES. Se o buraco está bem escondido nos relatórios e contas ou em Angola dá para ir dizer bem na televisão. Deus, que é quem dá a palavra final sobre o apocalipse está lá em cima. Se Ele olhar cá para baixo e vir que está tudo verdinho nunca vai carregar no botão do apocalipse. Se queremos salvar o planeta temos de o pintar de verde e construir campos de golfe no deserto.

Outra coisa que ele disse foi que os as alterações climáticas podem não ser só responsabilidade do Homem, mas também da deslocação dos pólos do planeta. E usou dados da NASA, essa organização que nos anda a ocultar a verdadeira cor de Marte, para o provar. Eu não sabia que isto estava a acontecer e fiquei mais descansado. Se os pólos do planeta estão a emigrar penso que o governo português deveria fazer como fez com a Web Summit e atrair o pólo Norte para o Algarve. Transformávamos os resorts em estâncias de ski e aproveitávamos a presença do Dr. Pai Natal para atrair investimento no Natal. Seria excelente para a economia se nos tornássemos num país nórdico.

Relembro que o Dr. José Gomes Ferreira foi um dos tudólogos homenageados na Le Docteur especial tudólogos. Já restam poucas edições. Poderão encomendar através de reservas@odoutor.pt e, quem sabe, tornarem-se tudólogos.


Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

Objectos destinados a vencer

(António Guerreiro, in Público, 11/06/2021)

António Guerreiro

Uma regra de prudência e de reflexão auto-crítica convida-me a uma prévia advertência: este texto cai na armadilha que ele próprio pretende nomear e analisar. O objecto armadilhado é um livro do jornalista José Gomes Ferreira intitulado Factos Escondidos da História de Portugal. Nem precisamos de avançar para além do título — igual a tantos outros animados pela mesma intenção — para percebermos que se trata de matéria fraudulenta. Noutro tempo, não muito afastado do nosso, este livro existiria apenas no seu lugar próprio, não conseguiria transpor o seu território e suscitar qualquer olhar — muito menos um discurso crítico de denúncia — por parte de historiadores e gente da ciência e da crítica. Ainda mais: à sua volta, os colegas do autor ergueriam à volta do livro um cerco para defenderem o seu capital mais preciso, o prestígio e a credibilidade. Ora, hoje, tal livro consegue mobilizar os esforços críticos de historiadores (neste jornal, Rui Tavares dedicou-lhe uma crónica no dia 2 de Junho), mobiliza notas de divulgação crítica nas páginas dos jornais “de referência” (como se diz actualmente), e aqui estou eu, em flagrante contradição, a dissertar sobre as suas manifestações sintomáticas e de tudo o que o rodeia.

Assine já

Trata-se de um exemplo eloquente dos mecanismos culturais e dos efeitos dos actos mediáticos, para os quais não há nenhuma resposta crítica eficaz: se os historiadores sentiram necessidade de descer ao mundo demasiado profano desse livro é porque sentiram que são fracas as defesas que temos contra este objecto (como demonstra a velocidade e a eficácia com que se difundem hoje as teorias da conspiração), que tem as características viscosas que permitem a sua irradiação. Uma dessas características, a principal, é a sua matéria esotérica, as ideias e os factos que não precisam de verificação para suscitar a adesão de círculos de adeptos. O seu discurso é o das superstições, das verdades ocultas e ocultadas por poderosos complots (assim se alimenta um neo-fascismo esotérico). O ocultismo, escreveu Adorno com muita pertinência num dos fragmentos de Minima Moralia, é a metafísica dos imbecis.

Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

Mas porque é que é hoje tão difícil lidar com objectos como este? Porque num tempo de completo hibridismo cultural, quando a cultura de massas se tornou detentora dos mais poderosos mecanismos de difusão, declarar a falsidade ou apostar na inexistência de um dos seus produtos tem sempre como resultado confirmá-lo. Não há saída para isto: um livro chamado Factos Escondidos da História de Portugal, da autoria de um jornalista que tem ao seu serviço a máquina mediática que, por sua vez, se serve dele, tem um enorme poder de difusão. Não se confronta com o silêncio nem tem de se preocupar com a autenticidade das suas teses. Está sempre a ganhar, quer se diga que elas são falsas ou verdadeiras. Basta-lhes estarem impregnadas de uma visão da história para crentes e satisfazer preconceitos que reenviam para a dimensão do segredo. Quem acredita nos Protocolos dos sábios de Sião também não quer saber de questões de verdade e falsidade. Os complots não precisam de ser confirmados, só têm de ser colocados numa perspectiva que os torna uma eventualidade plausível para um público sempre em construção. Eis a prova de que vivemos, em geral, sob um regime mediático que, nas suas características fundamentais, tem um funcionamento que o aproxima das sociedades mafiosas.

Funcionamento semelhante, no sentido em que também não há defesas eficazes que permitam neutralizá-la, é o da estupidez. É muito difícil combatê-la porque tem a resistência das duras protuberâncias. Declarar-lhe guerra, como já Flaubert percebeu, é chocar contra uma pedra dura de onde não saímos ilesos. Ou cheios de sangue, ou impregnados de estupidez — aquela, precisamente, que queremos combater.

Tal como acaba por ser estúpido denunciar a estupidez, também se presta um bom serviço aos Factos Escondidos da História de Portugal dizendo que é uma fraude. Expor o funcionamento desta máquina fraudulenta que não conseguimos deter, apreendê-la em flagrante delito nas suas várias extensões e cumplicidades, é o máximo que podemos fazer.



O último enciclopedista

(Por Estátua de Sal, 18/08/2018)

Homem enciplodédia

Imagem in Blog 77 Colinas

Dizem os Evangelhos que a inveja é um pecado mortal, muito feio, sendo por isso apanágio das consciências mal formadas. Mas que seja. Eu, Estátua, pecador me confesso e, como também rezam os Evangelhos, a confissão é meio caminho andado para alcançar o perdão.

Mas, afinal de quem é que eu tenho tanta inveja, tanta que me farto de pecar quase diariamente? Pois bem, aqui fica a minha confissão. Tenho uma inveja danada do Dr. Balsemão. E qual a razão? Podem avançar com palpites, digo eu. E perguntarão os meus leitores:

— Será por ele ser rico e dono de um empório de comunicação? Nada disso. Até dizem que a Impresa está meia afogada em dívidas e já viu melhores dias.

— Será por ele aparecer – ainda que cada vez menos -, nas revistas sociais, sempre no meio de gente fina, e morar nesse recanto selecto que é a Quinta da Marinha? Nada disso, cada vez mais frio, estou-me nas tintas para essas manifestações de vacuidade social.

— Será por a SIC e o Expresso continuarem a ser, ainda hoje, potentes instrumentos  de formatação da opinião pública, o que torna o Dr. Balsemão um homem poderoso, respeitado e, ao mesmo tempo, temido por tudo quanto é político no activo, à esquerda e à direita? Também não, nada disso, nunca quis ser missionário de qualquer ideologia ou crença, pelo que nunca me quereria colocar no papel de grande educador do povo.

Pronto. Como não acertaram eu deslindo o caso: invejo a vocação inata do Dr. Balsemão enquanto gestor de recursos humanos. Só um grande patrão, de fina e arguta sensibilidade na escolha do pessoal, poderia alguma vez ter contratado esse notável comentador que é o José Gomes Ferreira! Eu explico, então, a razão da minha inveja, mesclada de admiração, ainda assim.

Contratar alguém que nem sequer é licenciado em economia ou finanças para comentar assuntos de economia e finanças numa televisão, não é para qualquer gestor de recursos humanos. Mas, o Dr. Balsemão, conseguiu ver para lá dessas mesquinhas evidências curriculares. E que viu ele? Que o Gomes Ferreira era uma espécie de canivete suíço do comentário.

Ele perora sobre economia, sim, mas também sobre incêndios, pontes, electricidade, Direito, Justiça, política nacional e internacional, animais de estimação e, se preciso for, sobre os anéis de Saturno ou sobre a vida sexual das baratas. Consta até que lê mais rápido que o Professor Marcelo, conseguindo decorar diariamente 100 páginas da Wikipédia.

Já viram a poupança que o Dr. Balsemão já fez estes anos todos? Em vez de contratar dez comentadores, só tem que pagar ao Gomes Ferreira! Ele dá conta do recado, na hora e ao vivo, cobre todos os directos sem pestanejar, e explica aos espectadores tudo o que se está a passar com uma surpreendente e prolixa erudição.

É daí que vem a minha inveja. O Dr. Balsemão é um predestinado para a gestão. É que essas coisas não se aprendem. Nascem com as pessoas. Herdam-se das linhagens. Vem lá dos Palmelas, dos Fronteira, dos Alfarrobeira, que sei eu.

Ora, como eu nunca contrataria o Gomes Ferreira – reconheço que por falta da visão empresarial e de gestão do Dr. Balsemão -, não posso almejar a ter um império de comunicação social, e limito-me a ter um blog.