(António Guerreiro, in Público, 11/06/2021)

Uma regra de prudência e de reflexão auto-crítica convida-me a uma prévia advertência: este texto cai na armadilha que ele próprio pretende nomear e analisar. O objecto armadilhado é um livro do jornalista José Gomes Ferreira intitulado Factos Escondidos da História de Portugal. Nem precisamos de avançar para além do título — igual a tantos outros animados pela mesma intenção — para percebermos que se trata de matéria fraudulenta. Noutro tempo, não muito afastado do nosso, este livro existiria apenas no seu lugar próprio, não conseguiria transpor o seu território e suscitar qualquer olhar — muito menos um discurso crítico de denúncia — por parte de historiadores e gente da ciência e da crítica. Ainda mais: à sua volta, os colegas do autor ergueriam à volta do livro um cerco para defenderem o seu capital mais preciso, o prestígio e a credibilidade. Ora, hoje, tal livro consegue mobilizar os esforços críticos de historiadores (neste jornal, Rui Tavares dedicou-lhe uma crónica no dia 2 de Junho), mobiliza notas de divulgação crítica nas páginas dos jornais “de referência” (como se diz actualmente), e aqui estou eu, em flagrante contradição, a dissertar sobre as suas manifestações sintomáticas e de tudo o que o rodeia.
Trata-se de um exemplo eloquente dos mecanismos culturais e dos efeitos dos actos mediáticos, para os quais não há nenhuma resposta crítica eficaz: se os historiadores sentiram necessidade de descer ao mundo demasiado profano desse livro é porque sentiram que são fracas as defesas que temos contra este objecto (como demonstra a velocidade e a eficácia com que se difundem hoje as teorias da conspiração), que tem as características viscosas que permitem a sua irradiação. Uma dessas características, a principal, é a sua matéria esotérica, as ideias e os factos que não precisam de verificação para suscitar a adesão de círculos de adeptos. O seu discurso é o das superstições, das verdades ocultas e ocultadas por poderosos complots (assim se alimenta um neo-fascismo esotérico). O ocultismo, escreveu Adorno com muita pertinência num dos fragmentos de Minima Moralia, é a metafísica dos imbecis.
Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.
Mas porque é que é hoje tão difícil lidar com objectos como este? Porque num tempo de completo hibridismo cultural, quando a cultura de massas se tornou detentora dos mais poderosos mecanismos de difusão, declarar a falsidade ou apostar na inexistência de um dos seus produtos tem sempre como resultado confirmá-lo. Não há saída para isto: um livro chamado Factos Escondidos da História de Portugal, da autoria de um jornalista que tem ao seu serviço a máquina mediática que, por sua vez, se serve dele, tem um enorme poder de difusão. Não se confronta com o silêncio nem tem de se preocupar com a autenticidade das suas teses. Está sempre a ganhar, quer se diga que elas são falsas ou verdadeiras. Basta-lhes estarem impregnadas de uma visão da história para crentes e satisfazer preconceitos que reenviam para a dimensão do segredo. Quem acredita nos Protocolos dos sábios de Sião também não quer saber de questões de verdade e falsidade. Os complots não precisam de ser confirmados, só têm de ser colocados numa perspectiva que os torna uma eventualidade plausível para um público sempre em construção. Eis a prova de que vivemos, em geral, sob um regime mediático que, nas suas características fundamentais, tem um funcionamento que o aproxima das sociedades mafiosas.
Funcionamento semelhante, no sentido em que também não há defesas eficazes que permitam neutralizá-la, é o da estupidez. É muito difícil combatê-la porque tem a resistência das duras protuberâncias. Declarar-lhe guerra, como já Flaubert percebeu, é chocar contra uma pedra dura de onde não saímos ilesos. Ou cheios de sangue, ou impregnados de estupidez — aquela, precisamente, que queremos combater.
Tal como acaba por ser estúpido denunciar a estupidez, também se presta um bom serviço aos Factos Escondidos da História de Portugal dizendo que é uma fraude. Expor o funcionamento desta máquina fraudulenta que não conseguimos deter, apreendê-la em flagrante delito nas suas várias extensões e cumplicidades, é o máximo que podemos fazer.

Obrigada pela crónica. Como diz no último parágrafo lutar contra a estupidez faz mossa mas é inevitável que não nos revoltemos contra esta ataque serrado a cultura, ao bom senso, a honestidade. Cuidado estamos a chocar um ovo de serpente.
Não vi o livro nem conheço a argumentação do mesmo.
Mas no outro dia vi o José Gomes Ferreira a denunciar uma “conspiração” dos americanos conluiados com as outras potências para alterar as cores das fotos de Marte. Dando a impressão que o planeta é vermelho, quando teria as mesmas cores da Terra. O objectivo seria esconder as potencialidades de Marte.
Isto faz rir e é triste ao mesmo tempo, por mostrar o avanço do movimento anti-ciência.
Por outro lado é bom, muito bom.
O homem é um dos pesos pesados da propaganda direitista, controlador da informação da SIC, apresentado como uma luminária económica que defende os valores “tecnocráticos” da direita.
Revelar-se como um maluco defensor de teorias da conspiração dá uma boa machadada no discurso da direita que se tenta apresentar como “científico” no campo da economia.