Votos que valem menos

(Afonso Camões, in Diário de Notícias, 18/01/2022)

Há quase seis anos, António Costa levou a quase totalidade dos seus ministros a Idanha-a-Nova, Espanha à vista, para assinalar os cem dias de governo e proclamar a valorização do território e a descentralização como pedras angulares do seu programa e da reforma do Estado. De caminho, criou uma unidade de missão e, na legislatura seguinte, inventou um novíssimo Ministério da Coesão Territorial. Seis anos volvidos, mesmo descontando o terço que já levamos de pandemia, o resultado é desolador. O abandono e o despovoamento continuam a empalidecer o retrato do interior português, onde o Estado é precário e demasiadas vezes ausente.

Idanha é apenas um exemplo, um dos cantos nesse retrato. No quarto maior município, em área, já só encontramos sete habitantes por cada quilómetro quadrado, quando a média nacional é de 115,2 hab/km2. Daqueles sete, três têm 65 ou mais anos, e mais de metade da população raiana partiu para outras paragens, no litoral ou no estrangeiro, à procura de trabalho e pão. Apesar de a descentralização constar há muitos anos da generalidade dos programas eleitorais, Portugal é o sexto país mais centralizado da OCDE, com um rácio de despesas públicas feitas ao nível subnacional em relação ao produto interno bruto (PIB) de apenas 6%. Na Dinamarca, por exemplo, país ainda mais pequeno do que Portugal, esse rácio já é de 33%. Ora, desenvolvimento e descentralização são indissociáveis na hora de discutir o futuro do país, porque ambos os indicadores caminham lado a lado.

Os nove distritos do interior representam dois terços da área de Portugal continental, mas acolhem menos de um quinto da população contribuinte. Logo, menos votos, menos algazarra, menos influência. Aliás, o mapa eleitoral, que resulta de uma lei que só pode ser alterada por maiorias qualificadas, retrata bem o desequilíbrio de representação regional: os mesmos nove distritos do interior elegem menos deputados do que o círculo de Lisboa.

E vamos dar sempre ao mesmo: a necessidade de fixar populações e atrair investimento capaz de valorizar o que já temos e de criar riqueza e emprego. Inverter a fatalidade impõe trazer para a agenda política as oportunidades de um outro olhar sobre o que é nosso. Um olhar, por exemplo, para o mapa das nossas regiões de fronteira e perceber que o interior português goza de uma geografia privilegiada no contexto ibérico, se tivermos em conta que do outro lado, nas regiões espanholas vizinhas, vivem cerca de seis milhões de pessoas. As capitais dos nossos distritos fronteiriços distam apenas entre 60 e 160 quilómetros das capitais das províncias vizinhas. Visto nesta perspetiva, o nosso interior está pois mais perto do centro ibérico, um mercado com cerca de 60 milhões de consumidores e um gigantesco volume de trocas. Acontece que as políticas tardam a sair do tinteiro.

No passado, o povoamento foi essencial para assegurar a soberania territorial. Hoje, é indispensável afirmar a soberania democrática para contrariar o abandono e assegurar o povoamento, devendo o Estado assumir os custos da ocupação mínima do território, sustentando a manutenção de serviços essenciais. Gerir é fazer escolhas e estabelecer prioridades. É certo que algumas medidas reclamam consenso alargado dos dois maiores partidos, mas seja qual for o resultado das eleições de 30 de janeiro, há entre os principais atores políticos discursos minimamente convergentes quando se fala de descentralização. É bom que António Costa e Rui Rio comecem a falar do que interessa.

Jornalista


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Ó homem, os cajados são para suportar o corpo na idade e nas inclinações das serras!

(José Pacheco Pereira, in Público, 16/11/2019)

Pacheco Pereira

Um secretário de Estado, responsável por uma história pouco esclarecida a propósito das concessões mineiras do lítio, foi a um dos locais onde é suposto ir haver as ditas minas. Foi a Boticas, e escolheu muito mal a terra, por razões que adiante se verão.

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Chegou lá e havia um ajuntamento hostil à sua espera. O homem encolheu-se e voltou para trás. Chamou a GNR e voltou lá de novo, pensando certamente que a protecção dos guardas metia medo aos habitantes de Boticas. Não meteu medo nenhum, e ele nem saiu do carro, encolheu-se de novo, retirou-se, para depois fazer a habitual acusação de que estavam lá pessoas de Montalegre, que convinha dizer-lhe que é um pouco mais acima.

É nestas alturas que eu tenho muitas saudades de Mário Soares, porque estou a vê-lo sair do carro sem hesitação e dirigir-se aos manifestantes. Posso falar à vontade, porque já me aconteceu coisa semelhante e posso dizer-vos que, após um momento tenso, o PSD que estava “proibido”, por umas milícias justiceiras de entrar numa terra de Aveiro, entrou solitário e acabou por ganhar as eleições. Está na imprensa da época. Mas, pelos vistos, a escola de Soares está em desuso.

Eu conheço bem Boticas, onde dei aulas, naquela diáspora que os professores tinham que fazer. E foi um daqueles tempos que nunca esquecem. Aprendi muito sobre a natureza, a mesma natureza que as minas agora ameaçam. Aluguei uma casa na aldeia de Pinho, e lembro-me de que tinha havido um grande incêndio entre Boticas e Pinho, estando tudo enegrecido. Aprendi como o negro “comia” a luz dos faróis. Aprendi também o que era ter uma nuvem no andar térreo, onde havia a arrecadação da lenha, e o primeiro andar da habitação de onde, na varanda, se via um sol luminoso e quilómetros de serra. Descia-se e era nevoeiro cerrado, meia dúzia de metros abaixo. E o frio que fazia brilhar uma paisagem imaculada, que ia do Barroso até Vidago, onde começava outro mundo.

Havia também outra natureza que se aprendia. Uma vez, o então chefe de secretaria da escola, que era retornado, perguntou-se se eu não tinha medo de morar sozinho numa casa isolada na montanha. Eu disse-lhe que não, não era zona de lobos, e que a minha única preocupação eram cães vadios, e à beira da cama tinha uma caçadeira, por isso estava confortável. “Não, não era disso. Eu queria saber se não tinha medo do Diabo”. E depois contou-me que uma vez o Diabo lhe tinha puxado os cobertores da cama. Bom, com o Diabo não havia muito a fazer. E havia os meus jovens alunos que vinham das aldeias da serra com uma espécie de pistola de madeira e fulminantes para assustar os lobos e que pediam autorização para escrever na “coroa” da página. E um padre que parecia saído de um livro de Aquilino, com quem almoçava num restaurante sobre o qual Ferreira de Castro tinha escrito, e que me dizia que quando as mulheres lhe pediam para as abençoar a elas e aos bois, lhes dizia “vade retro mulieribus”, e elas ficavam muito contentes. Não me esqueço do que devo a Boticas e, num irrelevante agradecimento, ajudei a recuperar alguns elementos para a monografia da terra.

A beleza de Boticas não era resultado de uma opção, mas da pobreza e da interioridade. Não havia fábricas, o mais parecido era a empresa das águas de Carvalhelhos e, nas aldeias à volta, havia a economia de subsistência do Barroso e do Larouco, algum comércio de gado, e de produtos florestais. Também não me esqueço do que me disse um homem da terra “não sei como o senhor doutor gosta disto, são só serras e árvores”.

Por isso, assustei-me com a história do lítio, não sem alguma dúvida sobre como os homens e as mulheres de Boticas iam receber a possibilidade de não ser “só serras e árvores”. Nestes anos, todos Boticas estragou-se alguma coisa mas pouco. A sua população tem muito serviços essenciais, melhorou a sua condição e diminuiu o isolamento das aldeias da montanha. Mas de Montalegre até ao Douro, vários ecossistemas foram destruídos, desde as cumeadas cheias de eólicas, até aos vales dos rios desaparecidos debaixo das barragens e, com eles, as velhas linhas férreas herdeiras do Fontes Pereira de Melo.

O secretário de Estado, que não saiu de dentro do carro ao ver uns cajados, trazia consigo um dilema que não é fácil de resolver, uma promessa de empregos, de dinamismo económico local, com o preço da destruição do meio ambiente disfarçado de juras sobre a inexistência de impacto ambiental.

O que os meus amigos transmontanos sabem de ciência certa, é que em todos os sítios onde houve essas promessas, nem houve emprego estável, nem desenvolvimento para as terras, mas situações de destruição irreversível do valor ecológico, turístico, cultural das suas terras. E sabem também que alguém lucrou muito, chegou lá, sugou tudo de valor, e depois deixou os estragos.


Um país sem Estado e apenas com impostos

(José Pacheco Pereira, in Público, 28/10/2017)

JPP

Pacheco Pereira

Um dos aspectos que mais aceleraram a devastação do interior foi o processo de privatizações conduzido pelo Governo Passos-Portas.


Os fogos revelaram uma realidade que todos sabiam existir, de que muitos falam — ou melhor, de que muitos enunciam o problema —, mas a que também muitos têm nas últimas décadas fechado os olhos: a devastação progressiva do interior do país. Governos do PS e do PSD-CDS têm uma particular responsabilidade na situação, nos últimos anos dominados pelo “ajustamento”, nos do estertor do Governo Sócrates, numa parte de leão para o Governo PSD-CDS e numa parte igualmente de responsabilidade do Governo Costa. Há processos complexos que muito dificilmente são invertidos, incluindo a demografia com o seu rastro de envelhecimento, desertificação, falta de jovens e crianças, encerramento de escolas e ausência de força vital, implosão empresarial, mas há processos humanos, demasiado humanos, ou seja, políticos, que acentuam o caminho para o desastre que se verificou nos últimos dias, com concelhos que praticamente arderam todos, pessoas, casas, empresas, infra-estruturas, tudo.

Um dos aspectos que mais aceleraram a devastação do interior foi o processo de privatizações conduzido pelo Governo Passos-Portas que implicava um conjunto de obrigações de carácter nacional, em que umas ficaram no papel e outras não, apenas entregues à boa vontade das novas empresas privadas. Estas obrigações estão em muitos casos por cumprir perante a passividade dos governos PSD-CDS e PS. O abandono do interior pela EDP, pela REN, pelos CTT, pelas empresas de camionagem assumiu muitas formas — desde o encerramento de muitos serviços de proximidade, como é o caso das estações de correio, à geral negligência que se observa nestes fogos, com a obrigação de manter limpos os locais de passagem de linhas de energia, ou a deterioração dos serviços contratados — e foi duplicado pelo encerramento de muitos serviços públicos. Quem coloca uma empresa em terras onde não há serviços, muitas vezes não há estradas ou são caras, não há transportes, nem sequer um caro e longínquo táxi, não há correios, nem serviços de saúde e não há mão-de-obra mesmo não qualificada?

Ninguém. O resultado foi um interior sem defesa face a uma calamidade, agravada pela incompetência e negligência do poder central, e em que faltava tudo o que era necessário para combater os fogos: gente nova e activa, com braços com força, água, luz, máquinas, mesmo antes de faltarem os bombeiros. E, como estava, corre o risco de continuar a estar, se apenas se olha para o que aconteceu como uma calamidade de incêndios e não como um desastre económico, social, cultural e político, cujas consequências vão gerar um fosso ainda maior face a um Portugal do interior deserto e onde só vive quem dele não pode fugir.

É exactamente porque o problema não é apenas os incêndios que o que ocorreu deve ser visto em conjunto com outras áreas onde devia estar o Estado e não está. Embora não esteja a ver a mesma preocupação que existiu no caso de Pedrógão, de se saber como é que tantos fogos se desencadeiam quase simultaneamente, ou à noite, e abundem nas chamadas “redes sociais” todo o género de teorias conspirativas, devia querer saber-se mais.

Na verdade, o Governo, por medo de ainda agravar mais a imagem e a realidade de incompetência e negligência no combate aos fogos, e a oposição, que não quer que se fale de qualquer acto que possa ser concertado ou criminoso, e que possa parecer assim “justificar” as dificuldades no combate aos fogos pelo Governo, ambos não parecem muito interessados em saber o que se passou, mesmo quando visões completamente contraditórias circulam.

Uma, que teve acolhimento no relatório técnico, é que a maioria dos incêndios se deveu a práticas agrícolas imprudentes, como as queimadas; outra, que encontrou voz nalguns autarcas e responsáveis pelos bombeiros, é a de que houve uma acção “terrorista” concertada, incluindo uma tentativa de ganhar dinheiro com a madeira queimada, ou uma sucessão de actos individuais de fogo posto seja por vingança, seja por piromania, seja por excesso de álcool ou qualquer motivo deste tipo de que resulta um grave crime. Quer num caso, quer noutro, o problema dos incêndios remete para um problema prévio de insegurança: a maior parte do interior do país não tem lei nem ordem que proteja com eficácia quem lá vive.

Assim, um dos aspectos que tiveram relevo nos recentes fogos remete para a geral falta de policiamento e de segurança em grande parte do Portugal rural. Embora estranhamente tal não seja discutido em qualquer agenda política à esquerda e à direita, é um velho problema que desde o século XIX era considerado como muito grave, o do “policiamento rural”. Esta ausência da lei e da ordem permite que diante dos nossos olhos se deitem foguetes quando tal é proibido, se realizem festas sem qualquer responsabilidade dos seus organizadores, se façam queimadas ou se incendeiem matos, não se cumpra a legislação existente sobre as florestas, e haja uma generalizada incapacidade de intervenção face a roubos e agressões, burlas a idosos, violência doméstica e todo o tipo de abusos aos mais fracos, e indiferença perante riscos que não são combatidos, porque o tecido social de proximidade, em que todos são primos uns dos outros, ou vizinhos uns dos outros, com todo o arsenal de cumplicidades e ódios, o impede. Não é fácil viver na aldeia de Durkheim, e ainda é mais difícil quando a “solidariedade mecânica” se modernizou na “aldeia global”, nas redes sociais, depositário de todas as invejas, intrigas, calúnias e pseudocontrolos.

A obsessão urbana e radical chic com as questões de género e as causas fracturantes tem um efeito de distracção em relação ao que se passa em grande parte do país, para além de um menosprezo pelas questões de segurança dos mais fracos, seja na cidade, seja no campo, com medo de alargar um qualquer “Estado policial”. Mas a verdade é que o recuo de formas de protecção, como os diferentes “guardas”, nocturnos ou florestais, que em muitos casos foram substituídos por empresas de segurança privada que só alguns podem pagar e que só protegem os que lhes pagam, ainda mais agravou a situação. Quase que fazem pensar que uma instituição como os xerifes, eleitos e pagos pelas comunidades, com poderes circunscritos e controlados, mas em permanência nas terras e no terreno, podiam mais eficazmente garantir uma segurança que faz muita falta. Experimentem chamar numa emergência nocturna a GNR e ouvir que não é possível responder porque o único carro e os guardas estão no extremo oposto do concelho e não há mais ninguém disponível, mesmo com um roubo em curso… Ou um incendiário do outro lado do vale.