Brasil e o golpe – não silenciar os democratas

(Isabel Moreira, in Expresso, 10/09/2016)

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Usando uma metáfora alheia, não posso viver a partir do código postal da minha casa, agarrada freneticamente ao mesmo, com a única aspiração de o manter a salvo. Essa é a postura conservadora e cega, egoísta e, de resto, perigosa. Pensar-se que o que acontece além-fronteiras não tem a ver connosco é a causa do desastre que estamos a viver na Europa com a crise dos migrantes e com o crescimento da extrema-direita.

Estive no Brasil aquando da votação no Senado do Impeachment. Assisti a cada minuto das longas horas de um procedimento sem substância, horas que matam de asfixia qualquer democrata, horas de alegações políticas, porque nada havia a dizer sobre um inexistente crime de responsabilidade.

Dilma não tem uma única denúncia ou crime que lhe possam ser apontados (como o STF confirmou), ao contrário dos golpistas que nunca se conformaram com o fim da ditadura militar e que encontraram um “furo” para chegar ao poder sem voto e implementar um programa reacionário que nunca seria sufragado.

A prova do golpe, que não nasceu nas ruas, mas da conhecida chantagem de Eduardo Cunha (resumível num ou me elegem presidente da Câmara dos Deputados para me safarem a mim e ao meu gangue da justiça ou eu inicio um processo de impeachment) está patente no epílogo do afastamento de Dilma: não lhe foram retirados os direitos políticos. Ora, quando se prova um crime de responsabilidade e se vota um impeachment, por consequência os direitos políticos também são cassados. As duas votações em separado são a confissão do golpe de estado parlamentar.

Nunca esteve ou está em causa a defesa do PT, de Dilma, das suas alianças e das suas políticas. Pessoalmente, tenho um olhar crítico sobre a sua governação. Mas esse é o campo do combate político democrático.

Está em causa a democracia. Está em causa a democracia num país que teve avanços incontestáveis e que se vê agora confrontado com um governo que tomou posse em moldes nazis, isto é, usando o procedimento sem substancia, com uma agenda que rasga o contrato social brasileiro.

Temer e os seus aliados já deram provas do revivalismo do conservadorismo da ditadura conservadora elitista e branca, ameaçando trabalhadores, negros, indígenas, mulheres, liberdades e direitos individuais, suspendendo por duas décadas o investimento em educação e saúde, destruindo conquistas laborais e adotando políticas e práticas repressivas típicas, como seria de esperar, de uma ditadura.

Por cá, é ensurdecedor o silêncio perante um Brasil que está na rua. Como se pode ler AQUI. “Os protestos contra Michel Temer, Brasil afora, que arrastam milhares de pessoas, vêm sendo duramente reprimidos, em particular em São Paulo, governado pelo tucano Geraldo Alckmin, cujo ex-secretário de Segurança Pública, Alexandre de Moraes, hoje ocupa o cargo de ministro da Justiça e da Cidadania. Alexandre de Moraes deixou como marca de sua passagem pela Secretaria o arbítrio e a truculência policial nas ações contra os movimentos sociais – características que seu substituto, Mágino Alves Barbosa Filho, parece empenhar-se com vigor em perpetuar. No domingo, dia 4, mais de 100.000 pessoas realizaram um protesto pacífico em São Paulo para demonstrar a insatisfação pelo golpe contra a presidente Dilma Rousseff. Quando já se dispersavam, após quatro horas de caminhada sem a ocorrência de um único distúrbio, a Polícia Militar de Alckmin, de forma covarde e abusiva, atacou os manifestantes com cassetetes, bombas de gás lacrimogêneo e jatos d’água, em uma clara tentativa de intimidação. Além disso, deteve 26 jovens, oito deles menores de idade, sob a acusação de “associação criminosa”, mantendo-os incomunicáveis por cerca de 12 horas. Todos foram liberados pelo juiz Rodrigo Tellini de Aguirre Camargo, por não haver qualquer justificativa para as prisões.”

Os brasileiros estão a sair à rua espontaneamente, não em defesa do PT, mas precisamente em defesa da democracia. Os brasileiros estão corajosamente a sair à rua e não vejo, por cá, uma notícia a acompanhar a indignação.

Em Portugal deu-se cobertura às manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff, patrocinadas por entidades como os Revoltados On-Line, com ligações ao deputado fascista Jair Bolsonaro (PSC-RJ).

Talvez dar conta dos protestos contra Temer, protestos gerados pela exigência espontânea da democracia no Brasil, não?

Para golpe, basta o golpe machista, reacionário, homofóbico, patrocinado pela Globo que atirou ao lixo 54 milhões de votos.

Convém não silenciar os os democratas repremidos por Temer.

Políticos ricos, pobre povo

(Pedro Santos Guerreiro, in Expresso, 14/05/2016)

Autor

                     Pedro Santos Guerreiro

Dilma afastada, Temer empossado. O Brasil não é uma novela nem esta semana foi mais um episódio. De passo em passo, o país percorre o rumo dos países sem rumo.


Não pode correr bem. Um Presidente não eleito, suspeito de corrupção, sem apoio popular nem condições políticas, no meio de uma crise económica, social e institucional, e nomeando ministros que assim se barricam da Justiça… O Brasil é uma mina política que está a ser pisada.

Uma crise política só tem solução boa se ela for política. O novo governo de Michel Temer é uma folha assinada a lápis por um Presidente com poderes de caneta. É um governo com ministros suspeitos de corrupção, que se concebem de cimento sobre uma construção de argila. Como dizem os brasileiros, é um governo de três bês: bíblia, bala e boi. Os evangélicos, os securitários, os latifundiários.

Um ministro da Justiça (da Justiça!) que defende políticas repressivas, violência sobre manifestantes e sigilo de autos policiais de 50 anos, tutela a Polícia Federal, que investiga a ‘Lava-Jato’. Um ministro da agricultura que é o maior produtor individual de soja do mundo. Um ministro da Indústria bispo da IURD, de vastos interesses empresariais. Um ministro das Finanças que traz boa reputação mas irá impor austeridade num país onde 47 milhões são subsidiados pelo Bolsa Família. E sobretudo: um Presidente com mais nódoas na camisa do que na consciência, provocação a um povo que se fanatiza contra e a favor os que são destituídos e quem os destitui.

Que representação tem o povo, num caso de corrupção que turva a vista de quem tem olhos, escândalo que toca todos os partidos, incluindo o do povo, o partido de Lula, que foi dos políticos mais admirados do planeta?

Não há maçãs podres na política brasileira, há macieiras,  há pomares podres. É acusação, mas não é nossa, é da Justiça Federal. E é desespero, pela impotência da escolha de reconstruir com o sistema com medo do que sobre se se destruir o sistema. Uma democracia, um Estado, um país só resiste a líderes viciosos se tiver instituições fortes mas forte em Brasília só a arquitetura de Niemeyer. “A capital da República não é amaldiçoada, porque os erros que abriga são frutos dos homens que nela habitam”, escreveu o jornalista Plínio Fraga no Expresso Diário. Os homens que a habitam representam o povo das ruas? Eles que lá estão saberão, mas nós aqui sentimos que a traição alheia de líderes que já admirámos é mais do que a disputa do benefício ilícito. É roubar o chão social a quem não tem teto político, é viciar a democracia e seviciar o povo que nunca, mas nunca merece tanto se o tanto é tão mau nem pouco se o pouco é injusto.

Cheira a véspera de ditadura

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 13/05/2016)

Autor

                                 Daniel Oliveira

Sobre o processo de destituição de Dilma Rousseff e a sua mais do que aparente ilegitimidade no sistema político e constitucional brasileiro, já escrevi vezes sem conta. Ontem, um suspeito no Lava Jato não eleito pelo voto popular substituiu uma das poucas políticas brasileiras que, apesar da sua atual impopularidade, não é suspeita de corrupção e que foi, num sistema presidencialista, eleita pela maioria dos brasileiros.

A razão do impeachment é, para além de muitíssimo duvidosa do ponto de vista jurídico, absurda do ponto de vista político e moral. Um conjunto de deputados maioritariamente suspeito de corrupção não pode fazer cair uma Presidente porque acredita que ela terá cometido um ilícito orçamental menor, para a substituir por outro suspeito de corrupção. Isto, claro, se ainda há alguma hierarquia de valores morais a funcionar.

A verdade é que, desde o primeiro dia depois das últimas eleições, que a oposição tenta, através de expedientes não eleitorais, fazer cair Dilma Rousseff. Conseguiu. E será muito difícil, depois de tudo o que aconteceu, travar este processo e devolver, sem eleições, a normalidade ao Brasil. Ele deixará, com toda a certeza, a jovem democracia brasileira muitíssimo fragilizada. Perigosamente fragilizada.

A caminhada que o Brasil está a fazer para o abismo tem razões materiais bem evidentes. Lula e Dilma tiveram uma política social corajosa num país onde o racismo social (e o outro) tem raízes muito profundas na elite e no povo. Canta Caetano Veloso: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil.” Ignorá-lo é ignorar uma parte do combate político que ali se desenvolve.

Lula e Dilma não conseguiram, apesar do extraordinário momento económico a que assistiram, fazer com que o Brasil passasse de uma economia exportadora de matéria prima para uma economia transformadora. Talvez precisassem de mais tempo, mas nenhum sinal apontava para esse caminho. Pelo contrário, a estratégia ligada a projetos como os Jogos Olímpicos ou o campeonato do mundo de futebol dão sinais claros de adiamento de uma nova fase para a economia brasileira. O Brasil nunca deixou de ter uma economia típica dos países subdesenvolvidos. A economia brasileira, cujos fundamentos não foram mudados por Lula e Dilma, estava condenada a derrapar na primeira curva. No Brasil ou em Angola. O abrandamento económico da China e a queda do preço do petróleo chegaram para lançar o país numa profunda crise económica.

O que está em causa é, como sempre, saber quem paga a fatura quando chega o momento das vacas magras. A direita brasileira, apoiada pela elite económica e mediática, queria conquistar rapidamente o poder para garantir que a crise será paga pelos do costume, fazendo regredir grande parte das políticas sociais do PT. A culpa do PT, nesta história, é, antes de tudo, a de não ter preparado melhor o Brasil para um novo momento económico.

Mas há na novela brasileira a que assistimos um lado institucional que não pode ser desprezado. Ainda mais num sistema eleitoral que depende, para funcionar, da compra sistemática de deputados. A total impossibilidade de construir maiorias de governo estáveis (mesmo quando juntam inúmeros partidos os deputados são-lhes totalmente autónomos) acaba por ser um apelo à compra, monetária ou através de favores políticos, de deputados. O “mensalão” não foi mais do que um processo de gestão política por outros meios. Os meios que o absurdo sistema eleitoral e político acaba por privilegiar. Quem é sensível a conversas sobre mudanças de sistema eleitoral uninominal que “aproximem o eleito do eleitor” para que ele se torne totalmente independente dos partidos políticos deve olhar com atenção para o Brasil e imaginar o que seria um Parlamento composto por caciques locais à solta.

À corrupção que o próprio sistema promove e à crise económica veio juntar-se um sistema judicial povoado de magistrados ansiosos por protagonismo, incapazes de compreender que a aplicação da lei, indispensável para a credibilidade do sistema, exige o bom senso mínimo para que não se destrua o sistema que sustenta. Não se pode fazer uma “limpeza” com tal violência que faça ceder as paredes de uma casa.

Perante este cenário, é confrangedor perceber que há quem acredite que esta situação explosiva pode ser gerida por um Presidente que ninguém elegeu, que está ele próprio envolvido em casos de corrupção e que deve o lugar a um processo de legitimidade democrática.

Os homens e mulheres que fizeram cair Dilma Rousseff e decidiram ocupar o poder sem quaisquer condições políticas para o exercer, numa corrida para a frente que é sobretudo determinada por interesses pessoais, estão a colocar o Brasil à beira de um colapso político. Cheira a véspera de ditadura.