Então hoje também não há censura? Há, mas não é a mesma coisa

(José Pacheco Pereira, in Público, 09/04/2022)

Pacheco Pereira

A censura da ditadura não tinha lei, era discricionária, não tinha recurso nem apelo e, para além de proibir, podia levar à prisão.


Já não me surpreendo com muita coisa, mas, mesmo assim, verifico que há muito mais defensores da censura do Estado Novo do que pensava. A forma de fazer essa defesa não é directa, ninguém por regra diz que as censuras (havia várias instituições a fazer censura) eram aceitáveis – mesmo assim há excepções –, mas usa-se um conjunto de mecanismos de relativização que assentam na pergunta: “Então hoje também não há censura?”

Assine já

O que se pretende dizer é que a censura do passado não era assim tão excepcional, nem grave, nem especial, porque hoje também há “censura”, o que a torna uma constante “natural” do exercício do poder, seja em ditadura, seja em democracia. O resultado deste tipo de comparações é minimizar os 48 anos de censura do Estado Novo, em si mesmo algo de excepcional na história europeia, com excepção da URSS. Nem na Espanha franquista, nem na Alemanha nazi, nem na Itália fascista, nem nos países ocupados na II Guerra como a França, a censura durou tanto tempo e a duração é relevante para medirmos os seus efeitos.

Alguns aspectos dessa pseudo-similitude são resultado da ignorância e da ligeireza crítica e, acima de tudo, da circulação à direita da ideia de que criticar o Estado Novo é algo de “esquerdista”, coisa que desde o episódio de legitimação retrospectiva da ditadura, no encontro do MEL, se tornou um lugar-comum na direita radical. Não, a censura de 1926 a 1974 é algo de muito diferente dos impulsos censórios dos nossos dias, que existem e têm crescido, quer à esquerda, quer à direita, mas não se comparam nem de perto nem de longe com a censura da ditadura.

A censura da ditadura não tinha lei, era discricionária, não tinha recurso nem apelo e, para além de proibir, podia levar à prisão, levar jornais à falência, encerrar tipografias e levar os seus alvos a nem sequer poderem usar o próprio nome, se tinham de trabalhar na imprensa, na rádio ou na televisão. No limite, levava à queima de livros, como aconteceu em Portugal, ao modo da Alemanha nazi. A censura era uma instituição do poder ditatorial, que comunicava com todas as outras instituições repressivas, com a PIDE e a Legião, ou de enquadramento forçado, como a Mocidade Portuguesa e a União Nacional. Comparar esta censura com a existência de impulsos censórios é “lavar” a violência da ditadura.

A censura de que falamos também não é fake news, embora coexistisse com falsificações desse tipo vindas do poder ditatorial. O regime publicava jornais falsos disfarçados de Avante! ou A Batalha, com o mesmo formato gráfico mas artigos favoráveis à “obra” do regime, mas, para além disso, os governantes mentiam deliberadamente para enganar as pessoas.

Um exemplo é Salazar, que já sabia que tinha sido a PIDE a assassinar Delgado e a sua secretária, insinuar que este tinha sido morto pelos seus companheiros da oposição. A censura é outra coisa muito para além das fake news: é a proibição de livros, artigos, desenhos, peças de teatro, filmes, poemas populares, canções, capas de discos, reclames, tudo.

O que é significativo é que são os mesmos que minimizam a censura do Estado Novo aqueles cujo discurso político mais traços mostra do efeito antidemocrático do rastro da censura. Entre os efeitos a longo prazo da censura da ditadura, 48 anos depois do 25 de Abril, encontra-se a minimização do valor da democracia, a falsa comparação entre a corrupção da democracia e a inexistência da corrupção na ditadura – na ditadura, de facto, era ocultada a existência e gravidade da corrupção, mas também não havia “operações Marquês”, porque não se tocava nos corruptos nem para os investigar…

O ataque à democracia vai mais longe na desvalorização da política, como uma actividade menor, na demonização do confronto democrático a favor do “consenso”, no rebaixamento dos partidos a organizações criminosas e clientelares, como se o funcionamento das instituições da democracia “manchasse” Portugal, que era puro e cheio de valores superiores antes de 1974. Conhecer o que a censura real da ditadura cortava revela muito da hipocrisia do regime, que nos queria “proteger” daquilo mesmo que escondia como se não existisse.

Esta minimização da censura do passado impede-nos de olhar para os impulsos censórios de hoje, vendo-os apenas como vindos do “outro”, como um mero resultado de alguma perversão ou maldade, a que estamos imunes. A grande vítima da censura é a liberdade, a que começa na nossa cabeça, a mais importante e decisiva para que a transformemos em acção naquilo que os anarquistas chamavam “propaganda pelo exemplo”, o mais eficaz meio da defesa da democracia.

O autor é colunista do PÚBLICO


Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

O “sonho americano” em Portugal, 1951

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 09/09/2021)

Daniel Oliveira

O candidato da Iniciativa Liberal à Câmara Municipal de Lisboa quis dar nas vistas no debate entre candidatos, na SIC, da forma mais pueril: dizendo a palavra “merda” no fim. Não lhe saiu por acaso, foi treinado, e por ter sido treinado não funcionou. A irreverência estudada tende a passar por exibicionismo. Já quando foi espontâneo, em forma de tweet, foi muito mais esclarecedor.

Legendando uma fotografia dos seus avós, escreveu: “Terra das oportunidades: há 70 anos, dois jovens deixaram a Beira Alta rumo a Lisboa à procura de uma vida melhor. Hoje vivemos com menos liberdade porque cada vez menos ouvimos histórias felizes onde as pessoas são as personagens principais. Está na hora da esperança voltar”. No tweet seguinte acrescentou: “Já na altura o preço das casas era alto e moraram 16 anos com um filho num quarto de uma casa!”

Saiba mais aqui

No dia seguinte, perante a indignação geral, fez um novo tweet, resumindo o que tinha escrito ao tributo a uma história de “superação pessoal” e reafirmando o seu amor à liberdade e lamentando o “aproveitamento político” do que escreveu. Só não se percebe onde caberia, nesse tributo à superação pessoal, a expressão “hoje vivemos com menos liberdade”. Nem qual era a função política deste tributo, a não ser sublinhar que o “elevador social” hoje não funciona (e funciona mal, por razões exatamente opostas às que a IL costuma apontar), mas funcionou com os seus avós. Nem sequer a ideia de que está na hora de a “esperança voltar”. Há 70 anos existia esperança?

Gosto pouco da caça ao deslize e tento ser justo a distinguir a asneira da confissão involuntária. Não digo que este tweet corresponda ao que pensa a maioria dos militantes da Iniciativa Liberal, mas representa uma parte daquela direita, bem menos liberal do que se apresenta. Porque ali não há uma palavra fora do lugar. Pelo contrário, o tweet é todo um programa.

Há 70 anos estávamos em 1951, em plena ditadura salazarista. Já nem me concentro na ideia de que “hoje há menos liberdade”, de tal forma ela é insultuosa para todos os que foram censurados, perseguidos, presos, torturados e até assassinados pelo regime. Nada do que eu escrevesse sobre esta frase estaria à altura da enormidade.

E desfocava do mais interessante, apesar de menos chocante. E o mais interessante é a ideia que atravessa o tweet: a de que havia mobilidade social nesse tempo. De que as pessoas saiam da terra, sofriam, mas encontravam um futuro que desaguaria num neto que é candidato à presidência da Câmara da capital. O mito do sonho americano no cantinho terceiro-mundista do Portugal da década de 50.

Na realidade, a maioria dos que chegavam à capital nem ia viver para quartos alugados com a família, coisa que Bruno Horta Soares parece achar bastante romântico. Vivia nos bairros de lata das periferias de Lisboa, no meio de lixo, ratos e miséria, numa dimensão de desgraça que só as cheias de 1967 exibiram aos remediados e que Salazar tentou esconder. Eram os que não conseguiam fugir desta “terra de oportunidades”, emigrando. Isso, o trabalho infantil e o analfabetismo eram a liberdade que o Estado Novo lhes oferecia. Não foi há 70 anos, mas quase há 50, que isso mudou. Com a liberdade, exatamente. Lentamente e com muitos erros. Mas uma mudança radical.

Que interesse tem este tweet? Serve para perceber melhor o conceito de “liberdade” desta direita. A liberdade, sempre individual, mede-se por esta prova de vida ou de morte que, sem apoios públicos, seleciona os que lutam e têm mérito. Esta “superação pessoal”, que obviamente merece um tributo de todos nós, é tratada como valor político. Claro que as histórias que se contam, para alimentar a ilusão da meritocracia, é a dos poucos que se safaram – foi depois do 25 de Abril, com o Estado Social, que o elevador social começou mesmo a funcionar. A esmagadora maioria, que ficou pelo caminho, privada pela miséria e pela exclusão da liberdade de explorar todas as suas potencialidades, é esquecida.

Desse ponto de vista, e quero acreditar que só deste (imagino que defendem a liberdade política e se opõem ao condicionamento industrial), o Estado Novo está muito mais próximo do ideal deste candidato do que o regime nascido do 25 de Abril. Não havia Estado Social e os mais pobres tinham de se amanhar sozinhos, saindo, como disse um ex-primeiro-ministro, da sua “zona de conforto”.

Descontada a falta de jeito, o tweet do candidato da IL é uma TAC ao cérebro dos nossos liberais. Não ao seu discurso racional e ideológico, ao seu programa e às suas propostas, mas às suas fantasias meritocráticas, que veem o sofrimento (dos outros, porque poucos deles o terão experimentado) como prova de mérito e a riqueza como prémio desse sofrimento. Que, por isso, não tem de ser partilhada. Quanto mais dura for a prova maior é o mérito. E desse ponto de vista, não haja dúvida, o Estado Novo garantia duras provas. As pessoas saiam mesmo da sua “zona de conforto”. Não era liberdade, era falta dela. Quando se passa fome e se vive na miséria, a fuga é a única alternativa. Uma terra de oportunidades, portanto.


Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

Notas sobre a ofensiva da direita radical (2)

(Pacheco Pereira, in Público, 10/07/2021)

Pacheco Pereira

Diogo Pacheco de Amorim e Carlos Blanco de Morais são dois mestres de pensamento da direita radical. Não são os mais influentes, nem os mais respeitados, mas são significativos.


1. Há alguns anos, no Parlamento, o PS e o PCP não queriam, por qualquer razão de que já não me lembro, abrir uma excepção aos tempos para que um deputado do CDS pudesse falar. Eu e o Silva Marques estivemos para aí uma hora numa troca de palavras para que se abrisse essa excepção e conseguimos que houvesse tempo extraordinário para o CDS. Um muito respeitado e conhecido deputado do CDS levantou-se e começou a sua intervenção por mostrar o seu desprezo pela “chicana” parlamentar da última hora. Eu e o Silva Marques ficámos furiosos, para não dizer “passados”, levantei-me e disse ao muito respeitado deputado do CDS que se não fosse nós termos metido a mão na massa, e feito aquilo a que, com asco, agora chamava “chicana”, ele não poderia ter falado.

Assine já

2. Infelizmente, isto é muito comum. Quando alguém mete a mão na massa, aparece sempre um grupo de nefelibatas a mostrar o seu desprezo por ambos os campos de uma qualquer contenda, que não começaram, nem começariam, mas em que querem intervir limpos e lustrais por cima. Convém lembrar que esta atitude é um pecado mortal, aquilo que vulgarmente é conhecido como preguiça, mas que é na verdade a acídia descrita por Tomás de Aquino. Em tempos como estes, o efeito da acídia é devastador. É de facto mais cómodo ficar calado, ou fazer de Arlequim Servidor de Dois Amos.

3. Continuemos com dois exemplos de discursos recentes reveladores da ofensiva da direita radical de que comecei a falar na semana passada. Não se trata de os censurar, escusam de se vitimizar por aí, porque tenho reiteradamente defendido todos os aspectos da liberdade de expressão contra novas formas de censura, a começar pelos discursos deste tipo. Defendi Trump face ao Twitter e ao Facebook – imaginem com que gosto! – e denunciei várias vezes a censura do Facebook em Portugal.

4. Trata-se de uma intervenção de Diogo Pacheco de Amorim (DPA) e de um texto de Carlos Blanco de Morais (C.B.A.), de que tratarei para a semana, ambos ideólogos da direita radical, que neste caso estão mesmo na margem da classificação de extrema-direita. Ambos têm dezenas de anos de doutrinação, com D.P.A. a dizer que “evoluiu pouco”, e C.B.A. a ser apenas mais prudente na ostentação das referências. São dois mestres de pensamento dessa área. Não são os mais influentes, nem os mais respeitados, mas são significativos.

5. Comecemos por uma intervenção testemunhal de D.P.A. dirigida a jovens do Chega, em que conta a sua experiência à volta do 25 de Abril, antes e depois. Para D.P.A., tudo o que se passou tem duas causas principais: uma, a mão do PCP, da URSS, das grandes potências; e outra, a cobardia dos “defensores” do regime que na hora decisiva capitularam, quando não colaboraram como Marcello Caetano ao não querer defrontar Spínola. O sentido explícito da “lição” é o ataque ao 25 de Abril que acabou com o “ultramar” e com as “virtudes” da nação.

6. D.P.A. repete todas as teses conspirativas sobre o modo como o PCP actuou para afastar os oficiais spinolistas, logo no 16 de Março, e como os comunistas controlavam todo o MFA. Isto não tem nenhum fundamento histórico. Li centenas de documentos por causa da biografia de Cunhal, muitos dos quais era suposto não verem a luz, muitos com origem noutros partidos comunistas como o PCUS, o francês e o romeno, que tinham relações próximas com o PCP, documentos da CIA e do FBI, e nunca encontrei nada que suportasse essa tese conspirativa. Mas ela é cómoda para demonizar o 25 de Abril como intervenção soviética: “Toda a estratégia foi controlada pela União Soviética”.

Incêndios de sedes do MDP e do PCP em 1975. Incêndios e assassinatos, a maioria cometidos pela extrema-direita, foram comuns nesses anos. ARQUIVO EPHEMERA

 7. A intervenção está cheia de falsificações históricas. Uma delas começa por um testemunho interessante, a entrega ao Partido do Progresso dos ficheiros da antiga União Nacional (então Acção Nacional Popular). Depois de várias peripécias, os ficheiros teriam ido parar ao PPD, que os aceitou, enquanto o CDS fugiu deles. Seria o acesso a esses ficheiros que deu ao PPD “toda a estrutura nacional” e a vantagem sobre o CDS, isso logo em 1974-5. Embora D.P.A. não seja o único a ter esta tese, também não tem fundamento histórico. Se há coisa que Sá Carneiro quis evitar a todo o custo foi a entrada da ANP no PPD, incluindo uma cláusula de exclusão na ficha de filiado, e procedendo a uma investigação do passado dos novos candidatos através de um “serviço de informações”, muito mal conhecido. Nem sempre o conseguiu, como foi o caso da Distrital do Porto, mas que foi à sua revelia, há abundante documentação. É igualmente falso que a composição da ANP fosse “interclassista”, numa organização de partido único que dava acesso a lugares e prebendas e não tinha quase nenhuma vida para além disso.

8. Os “alunos” da Academia são mais radicais do que o mestre, se é que isso é possível, mas revelam o caldo de cultura do Chega. Algumas vezes entalam o mestre com perguntas inconvenientes como a de lhe pedir que diga se o nacional-socialismo ou o fascismo são de esquerda ou de direita. D.P.A. hesita, gagueja e acaba por sugerir que pelo menos o nacional-socialismo era provavelmente de esquerda porque tinha “socialismo” no nome. No seu conjunto, por ironia, Pacheco de Amorim consegue ser mais moderado do que Carlos Blanco de Morais. Mas ambos vêm da mesma escola da extrema-direita portuguesa que agora, pela primeira vez, começa a ter uma significativa expressão política e mediática.

 9. Depois há afirmações avulsas que são igualmente reveladoras, como a defesa da ilegalização do PCP, a propósito da intervenção de Melo Antunes no 25 de Novembro, ou a afirmação do “poder desmesurado dos sindicatos”, ou a apologia da Mocidade Portuguesa como “escola de valores”.

10. O que não está lá é uma frase sobre a repressão ou a PIDE, sobre a ausência de liberdade, e a única condenação que se faz do regime ditatorial é por ser demasiado brando com os seus inimigos. Estes silêncios bastam.

11. A seguir virá Carlos Blanco de Morais. No seu conjunto, por ironia, Pacheco de Amorim consegue ser mais moderado do que Carlos Blanco de Morais. Mas ambos vêm da mesma escola da extrema-direita portuguesa que se formou nos últimos anos do regime contra Marcello Caetano e continuou depois do 25 de Abril e que agora, pela primeira vez, começa a ter uma significativa expressão política e mediática. (Continua)


Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.