Depois não digam que ninguém avisou

(Marco Capitão Ferreira, in Expresso Diário, 19/09/2018)

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(Ó Capitão, em que planeta é que vives? Estavas à espera que o Carlos Costa, esse representante lídimo da banca, viesse defender os interesses do País, contra a banca?!

És um ingénuo. A banca quer lucros rápidos e JÁ! Se depois correr mal, lá teremos todos que os ir salvar para evitar o dito “risco sistémico”. É assim o sistema. Enquanto continuarmos a achar que a culpa é da banca e não do sistema que permite que ela se comporte dessa forma, claro que nada mudará e iremos navegando de crise em crise. May be até à crise final.

Comentário da Estátua, 19/09/2018)


Há quase um ano tivemos aqui uma pequena conversa sobre o facto de que temos uma pequena bolha nas mãos. Um ano depois ela está maior, e com tendência para crescer.

E se até agora ainda houve quem fosse argumentando que parte deste investimento era oriundo do estrangeiro (e é) e que uma outra parte resulta do crescimento do turismo (e resulta) a verdade é que, como já escrevemos “o aumento do preço do imobiliário se situa em níveis insustentáveis face ao andamento geral da Economia e dos salários e é certo e sabido – nunca não foi senão assim – que, mais dia menos dia, para além das consequências sociais que daí advêm, teremos de lidar com uma correção dos preços e com a eventual exposição das famílias e da Banca a essa mesma correção”.

Perante isto, claro, o Banco de Portugal está em cima da situação, certo? Afinal, a última vez que tal aconteceu, há quase 10 anos, o sistema financeiro ia colapsando, e arrastou consigo as economias e os Governos.

Não. O Banco de Portugal está a dormir. Como sempre. Uma eterna sesta de falta de supervisão eficaz durante a qual os Bancos são geridos olhando ao curto prazo e deixando os problemas de longo prazo no colo dos contribuintes.

Melhor exemplo: acaba de ser lançado no mercado um produto que traz de volta o financiamento a 100% da compra de casa, com a agravante de já não arrastar apenas indiretamente os fiadores. Não, a sugestão é mesmo hipotecar também a casa dos pais, ou de outros familiares próximos. Plantar a semente da multiplicação da dor futura.

Pior, voltou o crédito à habitação mais obras, no mesmo regime de dupla hipoteca. O que quer dizer que os 100% podem vir a ser excedidos por via de habilidades várias.

É certo (e sabido) que o problema do crédito mal parado sempre foi muito mais fruto dos incumprimentos das empresas que dos das famílias, conforme atestam os dados da Pordata, com base nos indicadores do Banco de Portugal, o que desmonta desde logo o discurso populista e demagógico de que as “pessoas andaram a viver acima das suas possibilidades”. Lembram-se dele? Eu lembro-me. Nunca foi verdade.

Mas não se aceita, em nome da rentabilidade de curto prazo da Banca, andar a plantar as sementes de consequências brutais para as famílias quando, inexoravelmente, a situação um dia se complicar.

Era suposto que o Banco de Portugal nos protegesse disto. Já sabemos – aprendemos com os anos – que contar com isso é uma miragem. Teremos de dar a vez ao Parlamento. Terão essa coragem?

Os nossos erros e o oportunismo de outros

(José Soeiro, in Expresso Diário, 03/08/2018)

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José Soeiro

Comecemos pelo fim. Sim, o negócio da família de Robles, como esteve para ser feito no ano passado, entrava em contradição com o que o Bloco defende para a cidade. Sim, nós somos o que defendemos e as posições por que lutamos, mas somos também o que fazemos. E se quem é de esquerda não tem de viver num planeta paralelo e muito menos de ser um asceta, convém que aquilo que fazemos contribua o mais possível para o tipo de mundo por que lutamos, e não para o tipo de sociedade que combatemos. Havia pois uma incongruência entre a intenção de fazer aquele negócio e o programa que o vereador defendia. Robles não retirou privilégios do seu cargo e, como se sabe, os apartamentos de Robles não foram vendidos. Mas existiu a possibilidade de o serem, isso minou a confiança das pessoas e justifica a renúncia de Robles. O Bloco errou na sua análise e reação inicial? Sim. Errámos. Só não reconhece o erro quem não está disposto a corrigi-lo.

É certo que este episódio não apaga a prestação do Bloco na Câmara de Lisboa nos últimos 9 meses: as propostas justas sobre creches públicas (380 vagas a ser abertas), acesso gratuito a manuais escolares, direitos LGBTQ+, saúde pública, redução de riscos (e a primeira sala de consumo assistido do país que será aberta), regulação do turismo e acesso à habitação (o Programa Renda Apoiada, negociado por Robles, prevê a disponibilização de 3 mil fogos durante o mandato e a oferta de mais 400 camas/ano em residências universitárias). Só que o exercício de um mandato não depende apenas das propostas, mas também de confiança – e a congruência conta. Concordo que não devemos desvalorizar isso. Sermos mais exigentes connosco à esquerda é normal. A política e a vida não são duas coisas separadas. E mal estaremos quando forem.

Para além do que ficou dito, há outras duas questões importantes a propósito deste caso, colocadas por dirigentes de outros partidos.

Uma delas explicitou-a João Ferreira, vereador do PCP em Lisboa: “Para nós, a questão relevante não é o caso individual, mas é o facto de este caso evidenciar, tal como muitos outros, a dinâmica de especulação em que a cidade está mergulhada”, disse o dirigente comunista. Na verdade, pergunta-se, então: por que razão o coro dos indignados com a “intenção especuladora da família Robles” não se indigna com as operações especulativas já realizadas ou em vias de se realizar pela cidade? A resposta é simples: uma grande parte dos que utilizaram o “caso Robles” para berrar contra a especulação estão-se pura e simplesmente nas tintas para a especulação, quando não mesmo a glorificam. O seu interesse era outro: zurzir e desacreditar o Bloco, por ser justamente um partido que tem feito um combate sem tréguas à especulação através das suas propostas, e que tem hoje um papel determinante no país e na solução política que existe. Notícias e comentários ridículos que, dias depois, foram publicados ou as declarações indecorosas de Assunção Cristas (a responsável da lei que mais promoveu o fenómeno) são eloquentes a esse propósito.

A segunda questão colocou-a Rui Rio – alguém com quem estou quase sempre em desacordo – quando disse esperar que a decisão de Ricardo Robles “sirva de exemplo a pessoas noutros partidos, que com coisas ainda piores, às vezes até do foro judicial, não tomam a mesma atitude”. O desafio é forte: gostaria de dizer que ansiamos todos uma enxurrada de notícias sobre os responsáveis políticos dos vários partidos com negócios ligados ao imobiliário ou à turistificação e uma catadupa de demissões. Mas desconfio que nada disso vai acontecer. O desafio de Rui Rio vai cair em saco roto e muitos dos que se aproveitaram do caso para destilar o seu ódio contra o Bloco não só não querem que isso aconteça como se empenharão ativamente para que isso não possa jamais acontecer.

Esta é a parte de enorme hipocrisia que, à boleia do caso Robles, transbordou nos últimos dias. Onde está este coro de indignados relativamente ao veto do Presidente, esta semana, a uma lei proposta pelo Bloco e aprovada pelo PS, Bloco, PCP, Verdes e PAN, que protege os inquilinos e que combate a especulação, dando aos moradores o direito de preferência?

Como é evidente, todas as leis podem sempre ser melhoradas. Mas ao adiar a promulgação, Marcelo desprotege gravemente os moradores: daqui até setembro, que é quando a lei voltará a ser discutida, a Fidelidade terá o tempo de concluir o negócio que envolve 277 imóveis e mais de 2000 frações, pondo em causa o direito à habitação de centenas de famílias. Isto é gravíssimo. A proteção deste negócio especulativo pelo Presidente já mereceu o aplauso do CDS e do PSD (e, mais discreto, mas não menos relevante, do fundo imobiliário Apolo, que comprará os imóveis). As famílias sabem com quem contam e com quem não contam para lutar pelos seus direitos. Seria bom que a indignação explodisse também a propósito disto.

Estes episódios, ensinam-nos por isso também alguma coisa sobre dirigentes políticos e colunistas cuja indignação é seletiva e cujo duplo padrão em termos de exigência é uma máscara para o oportunismo. A política não pode, evidentemente, ser um exercício de clubismo ou de lealdades afetivas: é curiosidade, humildade, capacidade de aprender com o que fazemos. Mas a política é combate. E não nos deixemos distrair: ele está aí – e em força.

Também nas cidades, “take back control”

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 31/07/2018)

Daniel

Daniel Oliveira

O artigo de hoje, com que me despeço para ir de férias, é sobre gentrificação das cidades. E não é sobre o ex-vereador Ricardo Robles, sobre o qual escreverei na edição semanal do Expresso. Até lá, lamento se insisto em escrever sobre política e se não contribuo para uma das tarefas centrais da comunicação social de hoje: a de conseguir que, através de um tratamento sempre desproporcionado (seja qual for o alvo) do pequeno escândalo pessoal em relação aos grandes problemas políticos, vivamos todos alheados dos problemas políticos e continuemos a avaliar os eleitos por tudo menos pelo que fazem no cargo. E nisto sou absolutamente coerente com tudo o que tenho escrito sobre o miserável estado do debate público nas democracias de hoje. Do que quero falar é, pois, de políticas públicas. Pedindo desculpa pelo aborrecimento causado.

Na semana passada um conjunto de cidades assinou uma declaração pelo direito à habitação e à cidade, que pode ler AQUI. Subscrito pelos presidentes de câmara de Amesterdão, Barcelona, Berlim, Cidade do México, Durban, Lisboa, Londres, Montreal, Montevideo, Nova Iorque, Paris e Seul, é um documento totalmente político que ultrapassa o discurso redondo e burocrático que costumamos encontrar nestes documentos. É um grito de protesto e uma exigência de ação contra a transformação das cidades em meros ativos financeiros. É, acima de tudo, a afirmação de uma das maiores prioridades políticas da próxima década: o combate à gentrificação das cidades, que expulsa os cidadãos pobres e de classes médias. E tem dois alvos principais: a ausência de gestão das políticas de turismo e a entrada dos fundos financeiros no mercado imobiliário, transformando as cidades em meros investimentos especulativos.

Os autarcas exigem mais ferramentas fiscais e jurídicas para regular o mercado imobiliário, seja na venda e compra de casa, seja no arrendamento. Como noutros casos, a tese de menos Estado e mais liberdade para o mercado esbarra com a realidade: essa escolha levará, com a entrada dos fundos financeiros e do turismo em larga escala nos grandes centros urbanos, ao esvaziamento dos centros e à insustentabilidade da vida urbana. O mercado totalmente livre é, sempre foi, insustentável. É por isso que o capitalismo, sempre que conquistou demasiada liberdade, entrou em rutura e acabou por aceitar maior intervenção do Estado. E foi sempre salvo por essa intervenção.

As câmaras também exigem mais meios financeiros para criar um verdadeiro mercado público de habitação. Esse é o caminho: dar à habitação o estatuto que demos, nas sociedades onde há Estado Social, à saúde e à educação. O processo de globalização torna isto inevitável. E se durante décadas a habitação pública se concentrou apenas nas classes mais baixas, ela agora terá de se dirigir às classes médias. Porque sem isso elas serão expulsas e passaremos a ter cidades ainda mais irracionais, totalmente despovoadas nas suas zonas centrais e sobrepovoadas nas periferias; e porque a entrada de milhares de casas públicas no mercado é a única forma de moderar a pressão especulativa causada pelo turismo e pelo investimento financeiro que migrou dos bancos para o imobiliário. Esta política de habitação pública pode ser combinada com a cooperação do Estado com o sector privado e comunitário.

Os presidentes de câmara defendem o reforço do planeamento urbano, essa palavra maldita num tempo em que ideologias quase distópicas parecem acreditar que as cidades, os países e as economias podem navegar na corrente do mercado sem qualquer perspetiva de futuro que não seja o imprevisto. Isto quer dizer, é bom dizer a quem custa ouvir, Estado com mais poder sobre o território e o mercado.

Esta declaração, assinada por algumas das cidades mais importantes do mundo, é sobre política urbana mas podia ser sobre qualquer outro assunto que se relacione com a globalização económica. O facto de ser sobre políticas concretas e facilmente compreensíveis para o comum dos cidadãos tem a enorme vantagem de retirar o debate sobre a globalização e financeirização do capitalismo das frases feitas e piedosas. Ele mostra como este processo é insustentável e acabará por ter efeitos de tal forma destrutivos da vida em sociedade que só pode acabar em reações de revolta com discursos que nenhum democrata quer ver triunfar.

Estas cidades, conscientes de que com a perda de muitos dos poderes dos estados nacionais elas passaram a estar na linha da frente da regulação, exigem o que está expresso na frase que mais calafrios causa a quem confunde cosmopolitismo com o fim da soberania: “take back control”. A frase usada na campanha do Brexit não está errada. Ela é a base da democracia que permite a soberania de um povo sobre os seus destinos, do Estado sobre a finança, do poder político sobre o poder económico. Ela é a base de todo o pensamento da esquerda democrática. É ela que permite políticas públicas, recursos financeiros, planeamento que se impõe ao mercado, leis e capacidade coerciva que nos defendam do poder do mais forte. O que está errado é a esquerda ter deixado a direita xenófoba apropriar-se desta frase para atacar os imigrantes. O que está errado é não ter sido a primeira a usá-la.

Nós, cidadãos, queremos as nossas cidades de volta. E queremos que os que elegemos para dirigir os destinos das nossas nações e das nossas cidades nos representem. Sim, queremos o controlo democrático perante o poder do “internacionalismo financeiro”. Isto vale para as cidades, ao recusarem que umas poucas plataformas digitais transnacionais passem a gerir uma parte razoável do arrendamento e que fundos de pensões tornem bairros inteiros em investimento especulativo. E vale para as nações. Sem complexos, temos de recuperar o controlo.