Onde é que precisamos de liberais e não os temos

(José Pacheco Pereira, in Público, 08/05/2021)

Pacheco Pereira

O país está a ficar cheio de “liberais”, do “liberalismo” da moda. A palavra “liberdade” está a ser capturada pela direita mais radical. Confortável nas sondagens, a esquerda do PS, como o centro do PSD, perde todos os dias o debate ideológico. O BE está demasiado mole e autocentrado e o PCP preso num gueto verbal, ambos consideravelmente ineficazes face à crescente agressividade da direita. O único partido com dinamismo político e eleitoral é o Chega. O centro, centro-esquerda e centro-direita está errático e pouco afirmativo. As asneiras acumulam-se em todas as áreas que são de não direita. Em modo tribal, a agressividade dá frutos. A seu tempo, o conforto nas sondagens diminuirá. Aproximam-se tempos de mudança e o número de cegos que não querem ver é cada vez maior.

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Falta muito a gente da liberdade, sem aspas, que reaja a todo o caminho que se está a fazer debaixo dos nossos pés. Faltam liberais sem aspas à esquerda e à direita, capazes de serem firmes em defesa da liberdade, muito duros na sua firmeza, mas moderados na acção. E uma das razões por que isso acontece é por medo. Ninguém quer ser alvo da avalanche de insultos, dos processos de intenção, das ameaças que hoje pululam nas redes sociais e nas caixas de comentários. Não sabem onde está tudo isto? Eu digo-lhes onde está.

A fronda populista varre a prudência de pensar duas vezes e, pouco a pouco, a fragilidade crescente dos partidos políticos fá-los soçobrar aos princípios para responder à avalanche populista. O efeito mais pernicioso de casos como o de Sócrates-Ivo Rosa é criar, em nome da luta contra a corrupção, uma deriva autoritária e liberticida. A Justiça é numa sociedade democrática um pilar do Estado, é um dos poderes fundamentais na sua autonomia e independência, como o poder legislativo e executivo. A doutrina da separação dos poderes não retira o exercício dos diferentes poderes do âmbito do Estado, nem impede por si só a sua perversão e contaminação – ou seja, a dependência do poder político é uma possibilidade e um risco, mesmo sem se mudarem normas e procedimentos. E tudo aquilo que permitimos agora na convicção de que não haverá abusos pode amanhã ser usado de forma abusiva e persecutória.

Dou muitas vezes como exemplo a intromissão na liberdade individual por meios informáticos, feita em nome da eficácia, que nos parece inocente agora, mas cria todos os instrumento para poder ser usada contra as liberdades. Digo muitas vezes que uma nova PIDE que acedesse às bases de dados das Finanças, aos pagamentos do Multibanco, aos trajectos da Via Verde, aos metadados dos telemóveis podia saber tudo sobre qualquer cidadão. Se uma autoridade legítima o precisa de fazer para perseguir uma actividade criminosa, e se o fizer sob controlo judicial, muito bem. Tudo o resto, muito mal.

Não estou a falar de abstracções. Já houve jornais que pagavam informação a pessoas do fisco com acesso aos dados para fazerem “investigações”. Já houve magistrados que foram para além da lei para fazerem “pesca de arrasto” para encontrarem culpados, mesmo que não houvesse qualquer indício de actividade criminosa. Há legislação que implica a violação do segredo profissional dos advogados face aos seus clientes com considerável indiferença destes. O fisco viola a privacidade dos cidadãos obrigando as facturas a terem não apenas o montante da transacção, mas discriminação, por exemplo, dos títulos dos livros que se compra numa livraria. Há tentativas de “acrescentar”, sempre em nome da eficácia, dados suplementares ao cartão de cidadão. A aplicação Stay Away Covid apoiada pelo Governo implicava a violação de dados pessoais e não é líquido que os novos “passaportes” com dados sanitários também não o façam.

A inversão do ónus da prova, para que agora há um clamor populista, a que quem de direito responde tibiamente, é um instrumento persecutório e de abuso nas mãos do Estado. O enriquecimento “ilícito”, se o é, deve ser provado pela Justiça, pelo Estado. Dê-se aos magistrados e às polícias todos os instrumentos necessários para essa prova, mas não se crie uma situação em que seja o próprio a ter de provar a sua inocência. O furor legítimo contra a corrupção não deve dar às mãos do Estado instrumentos potenciais para todos os abusos.

Hoje parece que será contra o “ilícito” do enriquecimento, mas amanhã pode ser para qualquer um, para vinganças políticas, para abater adversários. Dado o instrumento, destruído o princípio, o abuso é só uma questão de tempo.

Aqui é que precisamos de liberais e eles nos faltam. Muitos, aliás, dos “liberais” dos dias de hoje são indiferentes a estas liberdades e, para atacarem aquilo a que chamam a “corrupção do socialismo”, estão dispostos a dar ao Estado enormes poderes. Eu, que me dou bem com o honroso nome de liberal, na tradição de Garrett e de Herculano, ou da minha terra, o Porto, não estou disposto a dar ao Estado o direito de me obrigar a provar a minha inocência. É, se quiserem, uma posição humanista sobre a natureza humana, deixando o pecado original para os crentes, mas não para a democracia.


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O que tinha que ter sido diferente no processo Marquês

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 10/04/2021)

Alguns dos pilares essenciais da acusação desabaram, a não serem salvos pelo recurso, José Sócrates clama vitória e ainda assim poderá ser julgado por crime com pena de prisão, vamos para uma década desde o início da investigação e ainda nem sabemos se haverá julgamento, ou sobre quê.

Este panorama é um desastre e não começou com o maremoto de ontem. Antes de todos, é o processo penal no combate à corrupção, que não chegou incólume a esta fase do processo, que sai ainda mais desacreditado daquela sala de tribunal, o que tem gigantescas consequências. Por isso mesmo, talvez o primeiro dever seja perguntarmo-nos como se chegou até aqui e o que correu mal.

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Os prazos deste processo não são compatíveis com a defesa do bem público. E tudo contribui para os estender: a dificuldade de uma investigação sem meios, além de confrontada com longos atrasos da cooperação internacional; a vontade do Ministério Público (MP) de compilar indícios para a tese que formulara antes das evidências, seguindo portanto todas as pistas possíveis ou imaginárias e dispersando-se em todas as direções; a discricionaridade de decisões de anular os prazos processuais, o que os torna irrelevantes; o gigantismo do processo, prolongando os procedimentos de instrução; os conflitos entre magistrados sobre a própria interpretação da lei.

Conclusão, o que correu mal nos prazos ainda pode correr pior. Mas se o resultado for que um caso de corrupção é julgado vinte anos depois do início da investigação, trata-se então de um fracasso irremediável.

Depois, foram os truques. E, desta vez, foram todos à uma: a prisão preventiva sem suficiente justificação processual, na base de suspeitas que foram entretanto abandonadas e substituídas por outras, ou a insistente divulgação de peças em segredo de justiça, incluindo gravações áudio e vídeo de interrogatórios em jornais preferencialmente especializados nesta indústria, seguindo a estratégia de mobilizar a opinião pública para um julgamento prévio. Pela insistência nestas técnicas, já não se pode acreditar que quem usa este método no MP, os funcionários ou eventualmente algum advogado que promova este crime de violação do segredo acreditem ou respeitem o valor da justiça, antes preferindo um ganho circunstancial num causa particular, mesmo que a cidade arda toda. Se me parece fundamental evitar o abuso da prisão preventiva, já a consequência da persistente revelação seleccionada e criminosa de peças da investigação só tem como único remédio possível a abolição radical do segredo de justiça, ou a violação de direitos dos cidadãos. O que os corruptos agradecerão, dificilmente será possível investigá-los.

Finalmente, ainda se combate a corrupção na presunção de que os corruptos contarão ao telefone os seus sucessos, ou que haverá um arrependido que se disponha a trair a família. Ora, não se vai a lado nenhum com as declarações de um Helder Bataglia, como se viu.

É meridianamente claro que o dinheiro é a chave da corrupção e, por isso mesmo, a prevenção se deve basear na verificação dos rendimentos. Assim, uma lei que obrigue à declaração e que, portanto, exponha os rendimentos injustificados, não só permite a inspeção das alterações patrimoniais, como conduz à punição da sua ocultação como crime, tornando mais direta a intervenção da justiça. Talvez um processo por enriquecimento injustificado seja menos espampanante, mas levaria à decisão pelo tribunal sobre mais crimes, no tempo adequado e com mais eficácia.

Se no combate à corrupção, depois de tudo isto, continuarem a eternizar-se os processos, se não lhe forem dados meios, se não for imposto o respeito pelas suas próprias leis e a capacidade de atingir todos os dinheiros que enriquecem criminosos, então não sairemos deste pântano em que a justiça foi aprisionada.