A herança

(Pacheco Pereira, in Público, 24/06/2023)

Pacheco Pereira

Se esta “herança” permanecer intacta, nenhum governo sobrevive sem ter, ou grandes poderes, ou grandes protecções. Vai ser bonito para o ressentimento e a vingança e péssimo para a democracia.


Há-de haver uma altura em que este governo do PS seja substituído por um governo do PSD, muito provavelmente aliado à IL e com qualquer forma de acordo com o Chega. Mas não é a política de alianças para garantir uma maioria a minha matéria de hoje, embora em muitos aspectos os acordos que se fizerem agravam o modo como a “herança” vai ser gerida.

Parto de três pressupostos que muito provavelmente não se vão realizar, mas, para efeito de argumento, servem. Primeiro, é que a “herança”, ou seja, o conjunto de leis, práticas, promessas informais e formais de questionários, inquéritos e controlos, compromissos e intenções públicas, sobre “transparência”, incompatibilidades, extensão às famílias e aos amigos de impedimentos legais quanto à actividade empresarial, e à propriedade de bens e empresas, escrutínio severo de passados e presentes com destaque para qualquer obscuridade, confusão, falta de declaração, numa interpretação maximalista muito para além da lei para o domínio elástico da “ética”, exclusividades também numa interpretação maximalista, para governantes e família, verificação de lugares de residência, trajectos, uso de carros, diversões, futebol (se for natação ou andebol não conta), etc., etc., vai ser recebida pelos governos do futuro. Tudo estará em cima da mesa, reproduzindo a avalanche de rigor, com ou sem base legal, que se aplica nos nossos dias. Esta é a “herança” de que falo.

O segundo pressuposto, é que a comunicação social permanecerá politizada e persecutória como é hoje, misturando casos sérios com trivialidades, ou invenções assentes muitas vezes em denúncias não verificadas, e quase nunca corrigidas, mesmo que seja num canto obscuro, pelo órgão de comunicação, mesmo quando se verifica uma evidente falsidade. Ou seja, continuando a não haver escrutínio no sentido jornalístico da palavra, mas secções de escândalos, misturando tudo, num afã persecutório aos detentores do poder político, dramatizando, com uma linguagem condenatória à cabeça, excessiva e motivada pelas preferências políticas dos órgãos de comunicação, suas redacções e seus proprietários, misturando gente séria com escroques, para dar um contínuo alimento às pulsões populistas. E, convém não esquecer, protegendo pelo silêncio quem querem proteger, seja para manter o alvo político, seja porque são dos “nossos”.

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O terceiro pressuposto é que o Ministério Público continuará a actuar como faz hoje, noticiando com grande celeridade que abriu um inquérito sobre determinada pessoa ou acção, mesmo quando sabe que não tem qualquer fundamento legal para a penalizar. No momento em que o publicita, está a lançar uma sombra de suspeição e ilegalidade sobre coisas que nunca chegam ao tribunal e que, passado o efeito pretendido, são arquivadas. Igualmente se pressupõe que o Ministério Público, sabendo que as matérias que lhe serviram de pretexto para ouvir telefonemas, controlar mensagens, fazer escutas e vigilância não chegam como prova num tribunal, continue a passar o conteúdo de inquéritos sob segredo de justiça para os programas justiceiros da comunicação social, para que haja condenação na opinião pública de comportamentos que podem ser reprováveis, mas não são ilegais. E também para vir depois dizer que não foi mais longe por “falta de meios”.

Se esta “herança” permanecer intacta, nenhum governo sobrevive sem ter, ou grandes poderes, ou grandes protecções. Se eu imaginar, a partir do dia de hoje, quem possam ser o primeiro-ministro, os ministros e secretários de Estado, do PSD ou da IL, os apoiantes parlamentares do Chega, a maioria não passa sequer no questionário que o PS fez, quanto mais no que já se sabe de suspeitas públicas sobre a sua actividade privada, património, funções autárquicas, comportamentos de tráfico de influências, decisões obscuras em funções públicas, amiguismo e compadrio pessoal e partidário, etc., etc., de novo, como para os casos actuais, sem sequer se tratar de ilegalidades. Esta também é a “herança” da sua responsabilidade.

Há, no entanto, aqui um pequeno problema: é que nenhum dos pressupostos se vai realizar, as leis e práticas referidas vão continuar, mas deixarão de ser um escândalo, a comunicação social, se se mantiver a politização actual à direita, vai respirar de enorme alívio porque “conseguiu” e vai proteger os seus “seus”, e o Ministério Público vai ser posto na ordem, ou seja, só os “outros” é que são um alvo legítimo, o resto é intocável.

O PS e a esquerda farão então o que a oposição faz hoje, mas sem os mesmos meios dado que não têm o aparelho de propaganda jornalístico-político que está hoje montado, e muito menos a sua agressividade. Terão a tarefa facilitada na substância, mas fraca no altifalante. Para além disso, as acusações de “vocês também fizeram” vão ser habituais.

O fundo populista vai continuar em crescendo, mas o populismo pelo seu conteúdo antidemocrático não “come” da mesma maneira o mesmo alimento e vai encontrar elementos de vingança suficientes para continuar a olhar para trás e não para cima. Haverá gente que cuidará disso, e são bons nessa gestão da fúria do escândalo.

Vai ser bonito para o ressentimento e a vingança e péssimo para a democracia.

O autor é colunista do PÚBLICO


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A UNIVERSIDADE DA ZONA J

(In Blog O Jumento, 20/03/2018)

burro medico

É incrível como nos últimos anos cairam mais políticos por questões ligadas ao currículo académico do que por qualquer outro motivo e todos eles vindos das escolas das J. Esta mania dos currículos nem é nova, nem nasceu na política, na Administração Pública há verdadeiros construtores de currículos.

Dantes a mania era a do sotor ou do sô engenheiro, para a história ficam as cadeiras tiradas ao abrigo da lei militar, o que permitiu a muito português concluir as licenciaturas em metade do tempo. Esta mania das licenciaturas levou à criação de muitas universidades da treta, que ajudaram muita gente a enriquecer. Não faltou quem se lembrasse de que tinha um curso de engenheiro técnico a meio e recorresse às privadas para o concluir à pressa.

Nas jotas admiram-se os grande currículos académicos, os títulos universitários e, em especial, tudo o que cheire a universidade americana. Como já não há cão nem gato que não seja licenciado e com Bolonha os mestrados já nem conta, agora os jotas querem mais, querem carreiras de investigadores e doutoramentos.

As universidades privadas aproveitam e modestos licenciados que demoraram mais de uma década a tirar uma licenciatura com média de 11, são promovidos a mestres com classificações de 18, com base em currículos onde se consideram partidos com o título “Viva Scolari”, publicados numa importante revista académica chamada “Ripa na Rapaqueca”.

Como tivemos um engenheiro famoso com média de 10 e um grande professor de paleontologia que se licenciou já na meia idade, temos agora um grande argumento para que surjam mestres e doutores sem terem lido um livro. O caso mais emblemático deste processo é o de Passos Coelho, de quem só se sabia que queria ter uma carreira de cantor e que aproveitava as viagens para ler sobre Salazar.

Os casos de Miguel relvas, de Passos Coelho e do Nanito Barreiras Duarte parecem saídos das Novas Oportunidades, aplicaram à carreira universitária os princípios do modelo de formação profissional que tanto gozaram e que eliminaram mal chegaram ao poder. Os que impediram um pedreiro de ter o nono ano de escolaridade com base nos conhecimentos adquiridos com experiência ou formação profissional, chegam agora a doutores e mestres usando o mesmo esquema.

Os mesmos que tanto falavam em meritocracia e que tanto admiram os currículos universitários, estão agora a destruir a credibilidade da universidade portuguesa, recorrendo às cunhas políticas e à mentira para serem promovidos a doutores e mesmo a catedráticos. É a Universidade da Zona J. Para terem currículos invejáveis não se importam de destruir a credibilidade das nossas universidades e dos diplomas do que lá estudam, bem como da classe política que deviam honrar.