Não são as famílias, são as empresas

(Marco Capitão Ferreira, in Expresso Diário, 28/02/2018)

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(A direita sempre nos quis convencer que as causas da crise e da vinda da troika tinham residido no comportamento despesista do Estado e das famílias que tinham vivido acima das suas possibilidades. Sempre esqueceram e quiseram ocultar que, às empresas, se devia e deve o grosso do endividamento do país. E mais, agora que a economia está a recuperar, a maior parte do crédito que não é pago aos bancos é da responsabilidade das empresas. Em suma, para a direita só temos “grandes empresários”, quando na verdade o que temos é “grandes caloteiros”. E mesmo assim, quando se fala em aumentos do salário mínimo, choram baba e ranho. Cambada!

Comentário da Estátua, 28/02/218)


O problema do crédito malparado é um dos maiores desafios que resta à Banca e à Economia portuguesa, mas ao contrário da narrativa corrente, que faz passar a ideia de que as famílias se endividaram demais, e que são elas as responsáveis pelos incumprimentos, os dados contam outra história (dados do Banco de Portugal, apresentados pelo IGCP aos investidores internacionais).

Primeiro, o problema não se está a agravar, está a melhorar.

Segundo, a taxa de incumprimento das famílias continua bem abaixo dos 10% seja para os créditos ao consumo (9% este ano) seja no crédito à habitação (6,2% este ano).

Terceiro, o incumprimento no crédito ao consumo caiu 25% desde 2015 e na habitação quase 20%. Vamos na direção certa, não na errada.

É nas empresas, e dentro destas as ligadas ao sector da construção, que os incumprimentos são mais expressivos, com um valor que tem sido sempre acima dos 25% nos últimos anos.

Também não é verdade, já agora, que esteja a haver alguma explosão descontrolada na concessão de novo crédito às famílias ou às empresas. Pelo contrário, novamente os dados, esses maçadores, dão conta de uma realidade bem mais prosaica:

Por fim, e como seria de esperar, não, o crescimento do PIB não só não se está a fazer com base no consumo privado, que teve um papel importante de percursor, mas que tem vindo a ser substituído pelo investimento e pelas exportações como motor do crescimento, nem esse consumo privado está a aumentar à custa de um aumento do endividamento.

A soma das exportações e do investimento pesa mais no crescimento do PIB que o aumento do consumo privado. Quanto a isso, são bons sinais.

Então quer dizer que podemos aumentar o crédito de forma despreocupada? Não. Mas também não precisamos de inventar um problema que não existe, o que só pode contribuir para decisões erradas e errantes. Fazemos muito isto no País, aceitar narrativas políticas no lugar dos factos e depois agirmos em cima das narrativas. Costuma acabar mal.

Ó faxavor, juros baratinhos

(Francisco Louçã, in Público, 19/08/2017)

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Mensagem no telemóvel. “Sr. fulano, transfira mil euros para a sua conta à ordem, sem juros, um ano (TAN de 0%). Acresce comissão de 59 euros na primeira mensalidade. Ligue o número tal, prima 2 e fale com um consultor de crédito. TAEG 17,5% para um limite de cinco mil euros”. Percebeu? Não é para perceber, mas o juro são 17,5%.

Toca o telemóvel.

“Está? É o sr. fulano? Daqui fala João Silva, da agência financeira Tudobom, queria falar-lhe do nosso cartão de crédito…”

“Quem lhe deu o número do meu telemóvel?”

“Bem, está aqui na base de dados.”

“Quem lhe deu a base de dados?”

“Vou perguntar, é um momento… Obrigado por ter esperado. É a base de dados Todostelefones, que regista pessoas que concorreram a sorteios de automóveis.”

“Mas eu nunca na vida concorri a um sorteio de automóveis, não posso estar nessa base de dados. Sabe que é punível por lei utilizar uma base de dados ilegal e há uma Autoridade para vigiar esses abusos?”

“Pois então pode apresentar queixa à tal Autoridade. Mas entretanto vou apresentar-lhe o nosso novo cartão de crédito…”

Toca outra vez o telemóvel.

“Bom dia, sr. fulano. Sou Luís Silva, da Boasaúde, quero apresentar-lhe um plano financeiro que lhe garante todos os cuidados de saúde…”

“Não estou interessado.”

“Porquê? Porque é que não quer um plano que lhe garante todos os cuidados de saúde?”

“Não tenho de lhe dar explicações, não estou interessado.”

“Vou então registar, sr. fulano, que não está interessado num plano que lhe garante todos os cuidados de saúde.”

Saio do Metropolitano e encontro uns jovens vestidos com coletes reflectores cor de laranja. As farpelas têm Idosossós escrito em letras garrafais. Aproximam-se de todos os adultos que não tenham ar de estrangeiro.

“Bom dia, sabe que há idosos sós que vivem abandonados?”

“Sim.”

“E acha que eles devem ficar abandonados?”

“Não.”

“Somos da Idosossós e estmos a proteger os idosos abandonados. Se quiser apoiar o nosso trabalho para proteger os idosos abandonados, tenho aqui um folha para que desconte pelo banco só 60 cêntimos por dia para proteger os idosos abandonados.”

“Portanto, pede-me um contributo de cerca de 200 euros por ano, mas eu nunca ouvi falar da vossa organização, importa-se de me dar algum folheto que descreva a vossa actividade, quem são os corpos gerentes, e referências de onde trabalha com os idosos abandonados?”

“Isso não temos.”

“Site da internet com essas informações?”

“Isso também não temos.”

Chego a casa, toca o telefone fixo.

“Bom dia, é de casa do doutor fulano?”

“Que deseja?”

“É para lhe comunicar que ganhou um prémio na agência de viagens Todomundo e que o pode vir levantar a partir das 9h dos dias de semana.”

“Mas não concorri a nenhum prémio.”

Não lhe aconteceu nada disto? Adivinho que é todos os dias. A sua vida, como a minha, é uma aventura em que navegamos no meio de manipulações, truques, extorsões, seduções e juros baratinhos. Dizem-nos que tudo é fácil, prémios, sorteios, viagens, cartões de crédito, telemóveis. As empresas não vendem, distribuem. A finança não empresta, entrega. Não há contratos, há palavras doces. É um mundo maravilhoso.

Virgolino Faneca troca a Caixa por uma vénia serviçal

(Celso Filipe, in Jornal de Negócios, 02/12/2016)

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Virgolino Faneca considera ter todas as condições para obter um lugar na Caixa. Está disposto a não fazer nada para que tudo fique na mesma. Um requisito absolutamente imbatível em matéria de gestão da coisa pública.


Prestimoso António

Venho, pela presente, endereçar-te os meus sinceros parabéns por tudo aquilo que considerares conveniente e predispor-me a tecer à tua pessoa todo o tipo de loas que entendas necessárias para que possa satisfazer o desejo de me tornar presidente da Caixa Geral de Depósitos.

E perguntas tu, a propósito, que qualificações é que tenho para exercer o cargo. E eu respondo-te, nenhumas. Ora, é precisamente esta circunstância que faz de mim o melhor candidato ao lugar. Como só irei para o lugar com o único propósito de ter uma vida sedentária e confortável, deixarei os meus colegas fazerem as manigâncias que lhe aprouverem, serei capaz de ceder (sem pestanejar) a qualquer exigência do Governo ou dos partidos, sendo que neste último caso procurarei sempre a tua anuência, a do Augusto Santos Silva ou a do João Galamba. E contratarei informalmente para conselheiro o senhor Marques, colocando-me assim fora dos holofotes da análise política.

Tu sabes que tenho razão. Quiseste escolher para a Caixa um banqueiro sem ligações partidárias, deste-lhe liberdade para escolher a sua equipa, e vê no que deu! A Caixa não está preparada para ser gerida assim. Tanto tempo com tanta gente e tantos governos a puxar cordelinhos e a mexer influências, porque fulano tal é do partido A, porque fulano B é amigo do ministro C, ou porque fulano D é irmão do secretário de Estado E, e uma cultura empresarial que não se muda de um dia para o outro.

Ora, a minha vantagem é que tenciono manter intacta essa riqueza cultural da empresa e, se possível, aprofundá-la em meu benefício próprio, sem dar muito nas vistas, mas mantendo sempre o princípio de servir sem reservas aqueles que se servem do Estado.

Além disso, como sou um tipo sensato, estou totalmente disponível para que terceiros escolham a minha equipa de liderança. Na verdade, até é um favor que me fazem, visto que não tenho paciência nenhuma para tarefas de selecção, as quais me impedem de seguir com a atenção devida a temporada dos desportos de Inverno, especialmente as provas de esqui alpino, biatlo e curling, não necessariamente por esta ordem de relevância.

Só te peço que entre os eleitos, naturalmente escolhidos no recato dos Passos Perdidos, em conversas bilaterais, exista pelo menos um que saiba ler o balanço de um banco, para não dar muita bandeira. Mas, se não houver essa possibilidade, também não será por isso que renunciarei ao cargo.

Quanto às conversas com Frankfurt e à recapitalização da Caixa, podes estar descansado. Eu tenho um primo italiano que se dedica aos negócios do lixo na Sicília, embora não tenha um único camião para tal efeito, o qual por sua vez conhece um primo do Mario Draghi, e penso que, com uns apertões e umas insinuações de teor mafioso, se levará o barco a bom porto.

Parafraseando Sérgio Godinho, eu dou conta do recado e para ti é um sossego. Fico, pois, a aguardar com impaciência a minha nomeação.

Subscrevo-me com uma vénia cervical e serviçal,

Virgolino Faneca


Quem é Virgolino Faneca?

Virgolino Faneca é filho de peixeiro (Faneca é alcunha e não apelido) e de uma mulher apaixonada pelos segredos da semiótica textual. Tem 48 anos e é licenciado em Filologia pela Universidade de Paris, pequena localidade no Texas, onde Wim Wenders filmou. É um “vasco pulidiano” assumido e baseia as suas análises no azedo sofisma: se é bom, não existe ou nunca deveria ter existido. Dele disse, embora sem o ler, Pacheco Pereira: “É dotado de um pensamento estruturante e uma só opinião sua vale mais do que a obra completa de Nuno Rogeiro”. É presença constante nos “Prós e Contras” da RTP1. Fica na última fila para lhe ser mais fácil ir à rua fumar e meditar. Sobre o quê? Boa pergunta, a que nem o próprio sabe responder. Só sabe que os seus escritos vão mudar a política em Portugal. Provavelmente para o rés-do-chão esquerdo, onde vive a menina Clotilde, a sua grande paixão. O seu propósito é informar epistolarmente familiares, amigos, emigrantes, imigrantes, desconhecidos e extraterrestres, do que se passa em Portugal e no mundo. Coisa pouca, portanto.