As famílias infelizes


(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 06/04/2019)

Miguel Sousa Tavares

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Ao longo da vida e para se sustentar, uma pessoa passa às vezes por situações de que não guarda boas memórias, mas, mesmo assim, proveitosas experiências. Sucedeu a mim, jovem imberbe acabado de licenciar, quando me vi nomeado adjunto do gabinete de um ministro. Nunca tinha visto o ministro na minha vida, não pertencia ao partido dele nem a nenhum outro e, de facto, era o único membro do seu gabinete sem relações partidárias ou pessoais com o ministro: fui lá parar porque alguém que me tinha visto trabalhar algures me recomendou ao sr. ministro, ele convidou-me e eu fui ganhar o dobro do que ganhava no emprego em que estava. O Ministério era o da Educação, o maior e o mais ingovernável do país — até hoje. Passei lá dois anos, desafiantes e altamente formativos em termos profissionais no início, e profundamente decepcionantes no final. A parte útil foi perceber como funcionava a máquina da Administração Pública por dentro; a parte decepcionante foi perceber como ali se aplicava como uma luva uma adaptação da Lei de Lavoisier: nada se cria, nada se transforma, tudo se arrasta para que nada avance. Como era novo demais para me adaptar, demiti-me a meio do mandato — do cargo e do quadro da função pública, para que fora nomeado a título definitivo, apenas um mês antes.

Hoje, quando oiço as conversas de rua sobre os ‘tachos’ dos membros dos gabinetes governamentais, sei que, não se tratando de quem é tão novo como eu era e foi ao engano como eu fui, ou alguém que estava desempregado, ou que não sabe fazer mais nada, ou porque, de facto, é a mulher, a filha ou a sobrinha, aquilo não é ‘tacho’ que se recomende. Mas alguém tem de o fazer porque os governantes precisam de um gabinete para governar. Não há “ministers” sem um Sir Humphrey e um Bernard —– aqui ou na circunspecta Inglaterra. E fico sempre espantado quando assisto na televisão às cerimónias de posse de novos membros do Governo e constato a aparente alegria e entusiasmo dos novos membros empossados, rodeados de amigos, familiares e colegas, muito felizes, entre beijos, abraços e palmadas nas costas. Que celebram eles, que não um voto de sacrifício e maledicência pública garantidos, a troco de 4 ou 5 mil euros brutos por mês? Já o disse e repito com toda a sinceridade: agradeço que haja alguém que me queira governar, porque eu, por mim, não teria a mais pequena vontade de o fazer e conheço muito poucas actividades menos compensadoras do que governar Portugal. Pegando na célebre frase inicial do “Anna Karenina”, as nossas famílias governantes, funcionando em círculo fechado, estão condenadas por natureza a serem infelizes. Talvez cada uma à sua maneira, mas todas sempre infelizes.

E o prémio da infelicidade da semana nesta matéria vai para Cavaco Silva, que jurou que nos seus três governos não tinha havido quaisquer relações familiares dentro dos gabinetes. Pouca sorte a dele! Logo haviam de desenterrar o fantasma de “O Independente”, a recordar dezenas delas, até as mais expostas, como os secretários de Estado Marques Mendes e Álvaro Amaro a nomearem as mulheres um do outro para os respectivos gabinetes!

Curioso é que segundo a “linha vermelha ética” traçada por António Costa e que levou à demissão do secretário de Estado do Ambiente do actual Governo — não haver familiares nomeados directamente por um membro do Governo — tal situação escaparia a qualquer censura. Mas o critério é de justiça duvidosa e está longe de resolver o problema: nesse gabinete do ministro da Educação em que trabalhei, a sua secretária pessoal era a mulher dele. Aquilo fazia-me alguma confusão, mas, apesar de tudo acho mais aceitável que um membro do Governo escolha a sua mulher para um lugar de secretária, que é de estrita confiança pessoal, do que se faça trocas de mulheres ou de filhos ou de primos com outros membros do Governo: aí é que já há um indisfarçável cheiro a distribuição de tachos entre famílias.

Entre os 50 casos familiares detectados para já nos gabinetes governamentais (e mais hão-de fatalmente aparecer…), deve haver de tudo um pouco. Favores familiares e favores partidários. Não sei se haverá lei ou regulamento, como pretende António Costa, que possa pôr ordem nisto. Sobretudo, quando, como cristalinamente explicou Carlos César (que brilhante ideia escolherem-no para porta-voz da família socialista!), “há famílias que têm uma especial vocação para a política”. E que desde as juventudes partidárias foram educadas a pensar que o partido era uma extensão do Estado e a família e o partido se confundem num só. Mas não se pense que isto se passa apenas a nível do estado-maior dos partidos, do Estado central e do Governo do país: olhados de perto, os governos regionais e as autarquias locais estão atulhados de familiares, companheiros e camaradas de partido, nos governos locais, nas empresas regionais e municipais. E, quando não estão nos lugares, estão nas obras onde deixam assinatura: as piscinas, os centros de dia, os polidesportivos, os campos sintéticos, os centros de congressos, os monumentos das rotundas feitos pelo primo escultor da mulher do presidente ou pela cunhada do vereador. Há muito pouca gente disponível no país profundo…

Sempre foi assim e sempre será assim. O grande erro de António Costa foi no Conselho de Ministros. Ele diz e repete que isso já vinha de trás e que só ao fim de três anos é que levantaram o problema. É verdade que sim, é verdade que Mariana Vieira da Silva já se sentava no Conselho de Ministros como secretária de Estado. Mas quando ele a promoveu a ministra, a coisa tornou-se mais visível e aberrante: marido e mulher, pai e filha, juntos no Conselho de Ministros? Não, francamente, é de terceiro mundo! Que fazem o marido e a mulher, o pai e a filha quando estão em desacordo: enfrentam-se à vista dos outros ministros, enfrentam-se em casa, abafam as divergências? Foi esse absurdo erro de casting que fez com que toda a gente, olhando para cima, começasse então a olhar para baixo e fosse puxando a teia até chegar aos 50 casos de família. Foi um claro erro de cegueira do poder, de quem não consegue ver o que entra pelos olhos adentro.

E tanto ruído inútil, tanta conversa que leva a lado nenhum, tanta energia gasta a discutir coisas que deveriam ser evidentes por si, afastam-nos daquilo que é verdadeiramente importante. De vez em quando há alguém que nos quer chamar a atenção, mas ninguém ouve: estamos todos entretidos com o vazio das coisas.

(Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia)


Preparem-se

(Virgínia da Silva Veiga, 25/01/2019)

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Estive há pouco a ver a RTP 3. Um debate com três mulheres, uma delas aquela Lourenço, de que nem vale a pena falar, uma jornalista da Lusa, cujo nome não recordo, e a nossa Maria Flor Pedroso.

A nossa Directora de Informação – somos nós quem paga – é, efectivamente, um caso. Uma brilhante pessoa onde se estranha ver ideias absurdas. Que lhe dê tempo, dizem-me. Mas que tempo, que diabo? A RTP ainda ontem emitiu uma reportagem nojenta que fazia de Portugal um País tão corrupto como o pinta o convidado do Goucha e o sobrinho do Barreto, implicando pessoas que nunca na vida foram condenadas por nada e outras que foram absolvidas. Que porcaria de programa era aquele, que hedionda Direcção de Informação temos? – Perguntei-me. Todos os dias me pergunto, aliás. Em frente. Não era o tema.

Vale ao caso, onde quero chegar, que Flor Pedroso parece ter dupla personalidade: uma é ela, outra a que aceitou o cargo que ocupa. Porque, a dada altura, uma opinião que emitiu sobre políticos que comentam no Facebook, defendendo os jornalistas deverem continuar intermediários de opiniões a chegar a terceiros. fez-me tirar uma conclusão que fiz para mim e que se reconduz a uma questão: já se perguntaram? 

Daqui a uns anos, os políticos no activo que não tenham tido uma página no Facebook e interagido com os cidadãos directamente vão ser uma raridade tão grande como um porco a andar de bicicleta.

Hoje, Flor incluída, alguns ainda não pararam para pensar nisso e julgam que tudo se passa à época de outros critérios Os currículos de agora e do futuro têm diferente exigência. 

Quase ouço as conversas de bastidores sempre que alguém pensa numa nomeação: “tás maluco? Aquela gaja? Ó pá, a gaja tem uma página no Facebook e farta-se de fazer comentários. Nem pensar!”

Pois daqui a uns tempos, muito próximos, vai ser exactamente ao contrário: “o quê, esse gajo nunca teve página no Facebook? O tipo nunca se sujeitou a comentários? Esquece. Nem pensar!”.

E percebe-se. As pessoas vão ser também aferidas pelas páginas que têm e a receptividade positiva que merecem. O número de “gostos” é outro assunto, embora também conte.

Quem não tiver página no Facebook, quem não comenta nem se faz comentar vive num mundo que não é este. Sobretudo, podendo nada ter a esconder, facto é que aparenta. Portanto, preparem-se. Ser discreto tem novo critério de aferição, é diferente de não ter coragem para ser exposto. Quem assim for, auguro-lhe fraco futuro em cargos importantes sobretudo por ir ser analisado por chefes, por um júri que desconfiará sempre de tais recatos e, sobretudo, de tal incapacidade de se sujeitar a julgamento público.

Acreditem. E preparem-se.  Flor Pedroso também, nas análises e nas selecções que fizer. Particularmente, nas que faz. É conselho.

Trump é o sistema sem luvas

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 19/12/2016)

Autor

                               Daniel Oliveira

As nomeações feitas por Donald Trump para a Administração norte-americana têm provocado natural consternação. Diz-se que confirmam o pior que se esperava e que desmentem a ideia de que Trump se iria acomodar ao establishment. Concordo com a primeira afirmação e discordo da segunda. Concordo que é o pior de tudo o que se podia esperar. Não sei se é o pior do que alguns esperavam mas é o pior do que eu esperava. E não concordo com a segunda, exatamente por esta resistir à tendência para forçar um consenso anti-Trump que duvido que exista. Quase ninguém gosta de Trump fora dos EUA. Mas não me parece que as razões sejam todas as mesmas. Porque eu acho que estas nomeações provam que, tal como sempre pensei, não só Trump se iria acomodar ao establishment como Trump é o establishment na sua forma mais pura.

Tirando a relação com a Rússia, em que concedo haver um desacerto entre Donald Trump e o mainstream no poder norte-americano, Trump representa os poderes fácticos que dominam a política norte-americana há muito tempo. E as suas nomeações confirmam-no. Claro que há quem ache que o establishment são os políticos e a máquina do Estado. São os mesmos que conseguem dar um colorido revolucionário à defesa dos interesses da elite económica e financeira. Mas Trump representa, de forma radical, desabrida e já sem concessões o verdadeiro establishment. Esta é a hora da verdade e Trump é o homem que não hesitará em impor a nova ordem económica e social.

Olhemos então para as nomeações mais polémicas.

Para secretário do Trabalho, Donald Trump escolheu Andrew Puzder, um empresário de fast food acusado de violar as leis laborais e que se opõe ao aumento do salário mínimo e ao reforço dos direitos dos trabalhadores. Puzder, CEO da CKE Restaurants, dona da cadeia Carl’s Jr., defende que o aumento do salário mínimo se traduzirá numa diminuição dos empregos menos qualificados. Estão chocados com o quê? Não é esta a tese que lemos nos jornais económicos, que os delegados de Bruxelas vendem aos países em crise e que se ensina nos centros de doutrinação ideológica e formação política em que se transformaram as faculdades de economia? Choca o homem que defende os interesses de um pequeno grupo venha diretamente desse grupo em vez de se escolher um político tarefeiro para fazer o trabalho sujo? Choca a clareza?

Para secretária da Educação foi escolhida Betsy DeVos, nora do fundador da Amway, uma multinacional de vendas diretas, e oriunda do pequeno círculo de milionários que há muito financiam o Partido Republicano. É uma feroz defensora das “charter schools” (aproximadas dos nossos colégios com contratos de associação) e é para elas que os fundos públicos passarão a ser dirigidos, com a previsível continuação da degradação da Escola Pública. É novo e contra o establishment a ideia de que os colégios privados devem substituir o público com vantagem para todos? Não representa esta posição o interesse assumido das empresas deste sector e a posição da corrente ideológica cada vez mais dominante nos media?

Para dirigir a Agência de Proteção Ambiental, Trump nomeou Scott Pruitt, o procurador do Oklahoma que interpôs várias ações judiciais contra a regulamentação ambiental da administração Obama para reduzir as emissões de gases com efeito de estufa e que não acredita no papel humano nas alterações climáticas. Isto é novo entre os republicanos? O crime de Trump é escolher para o Ambiente alguém que vai estar alinhado com o resto da sua Administração ou devia escolher uma figura que branqueasse o seu criminoso recuo nesta área? Não é acompanhado, neste como noutros assuntos, pelo poder das petrolíferas? Não são elas o establishment?

Apesar da aproximação à Rússia não corresponder ao mainstream de Washington, a nomeação do CEO da Exxon, Rex Tillerson, para secretário de Estado pode seriamente ser considerada uma escolha contra o establishment? É por fazer companhia a Scott Pruitt na oposição à regulação para diminuir as emissões que se pensa isto? É por ser amigo de várias ditaduras onde a Exxon faz negócios com os quais estamos chocados? Julgavam que o establishment era composto por burocratas e políticos de Washington? Se sim, podiam, se fossem norte-americanos, ter votado em Trump. Foi essa a aldrabice que vendeu aos seus eleitores.

O establishment defende a selva laboral e por isso quer menos regulação e opõe-se ao salário mínimo. E é representado na perfeição por Andrew Puzder. Defende que a educação deve ser um negócio e que os privados oferecem uma escola melhor e mais exigente do que o Estado, como Betsy DeVos. Recusa alterações políticas que, para salvar o planeta, ponham em causa os interesses das petrolíferas, como Scott Pruitt. E determina a sua política externa pelos interesses de algumas corporações, tão bem representadas por Rex Tillerson.

Talvez choque alguns neoliberais perceber que Trump, pintado como um espelho de Bernie Sanders, afinal é, no que realmente interessa, um deles. Tal como eles, tenta fazer passar a ideia que o establishment é o Estado e os políticos que elegemos. Sem luvas, está a mostrar como o poder económico já dispensa intermediários.