Como fazer um buraco numa lei

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 07/06/2018)

Daniel

Daniel Oliveira

O acordo a que o Governo chegou com os parceiros sociais é, do ponto de vista dos trabalhadores, modesto. Sobretudo tendo em conta o cenário político em que nos encontramos. Tem uma vantagem sobre quase todos as anteriores alterações da lei do trabalho: não há retrocessos significativos. Pode mesmo dizer-se que, no conjunto, há pequenos avanços. E é a primeira vez que isso acontece com uma alteração na Lei Laboral. No tempo que vivemos na Europa, de desmantelamento sistemático dos alicerces da regulação das relações laborais, isto já quase é motivo de celebração.

Há alguns ganhos que, podendo ser importantes, são em parte aparentes. A limitação do trabalho precário, em especial dos contratos a termo, é um deles. Chamou-lhe limitação, e não combate, porque a contribuição adicional de 2% para a segurança social por rotatividade excessiva aplica-se quando a precariedade é superior à média sectorial. Quem esteja abaixo ou dentro da média não paga nada. A medida visa estancar o crescimento do trabalho precário. Sabendo-se que Portugal é o terceiro país da Europa com mais trabalho precário, só sendo ultrapassado pela Polónia e Espanha, é pouco. Sabendo-se que toda a legislação anterior foi no sentido de facilitar o trabalho precário, é um avanço. Como acontece muitas vezes, nestes casos, o diabo está nos detalhes. E as exceções são tantas que fica difícil perceber o que fica dentro da rotatividade excessiva. Entre outras, o artigo não se aplica quando os contratos a precariedade resultam de “condicionalismos inerentes ao tipo de trabalho ou à situação do trabalhador”. Um pouco abrangente, não?

Um avanço claro é o fim dos bancos de horas individuais, embora no prazo de um ano, que não estejam acordados em negociação coletiva. Todos os bancos de horas nessas circunstâncias têm de passar a ser regulados por convenção coletiva ou em bancos de horas grupais, por vida de um processo de consulta coletiva aos trabalhadores. Ou seja, passará a ser impossível o trabalhador estar, como estava agora, sujeito a uma pressão individual para aceitar o banco de horas.

O debate sobre a caducidade das convenções coletivas de trabalho sempre era o mais difícil de todos. A posição dos sindicatos não permitia que estes, na prática, fossem alterados, levando a que mudanças na economia e no mercado não fossem refletidas nos acordos de trabalho em vigor. Isto, num país com pouca tradição negocial, deu argumentos para construir uma realidade laboral paralela à lei. Do lado dos patrões assistimos ao esquema manhoso de promover a caducidade das convenções coletivas para não estarem dependentes de qualquer negociação com os sindicatos. Neste acordo, a caducidade mantém-se. Mas houve algumas alterações positivas: um alargamento do núcleo de direitos individuais assegurados ao trabalhador em caso de caducidade da convenção (abrange agora os direitos de parentalidade e de higiene e segurança no trabalho) e de direitos protegidos pelo princípio do tratamento mais favorável (o trabalho suplementar passou a fazer parte desse núcleo). E passou a exigir-se fundamentação para a caducidade, que será controlada pelo Governo, e é instituída uma instância arbitral para avaliar os fundamentos da caducidade e para decidir se há ainda há possibilidade de conseguir um novo acordo. Mais uma vez, é pouco mas é um passo.

Onde as coisas andam para trás foi na extensão do período experimental para jovens à procura do primeiro emprego ou desempregados de longa duração. Não é a passagem de 90 para 180 dias que me choca. Não considero um tempo exagerado para o empregador estar seguro de um vínculo mais forte. Na realidade, até poderia imaginar mais tempo. Mas como não há qualquer dever de contratação (é natural) nem qualquer limite ao número de “experiências” (é absurdo), este aumento de tempo resulta num incentivo um expediente espertalhão, que tão bem conhecemos nas empresas portuguesas, de rodar gente para não contratar ninguém. Por 90 dias não compensava, por 180 dias começa a compensar. Sobretudo no turismo.

Esta foi, na concertação social, a moeda de troca dada aos patrões para as medidas relativas à precariedade. É o escape que lhes permite contratar por seis meses. Com a vantagem de, ao contrário do contrato a termo, não terem de pagar qualquer compensação no fim do período experimental e dos direitos laborais estarem numa espécie de parêntesis. Quem sabe o que aconteceu com a generalização dos recibos verdes percebe que está aqui a nova brecha. No mesmo sentido, mas com menor gravidade, vai o aumento dos contratos de muito curta duração, que eram 15 dias e passam a ser de 35, sem se limitarem de modo rigoroso os sectores e as situações em que podem ser utilizados.

E é nestas duas coisas que está a chave de todos os problemas políticos a que vamos assistir nos próximos dias. O Governo tinha um acordo com o Bloco de Esquerda sobre precariedade. O tema é o cavalo de batalha do Bloco e foi aí que colocou grande parte das suas fichas. O que fez Vieira da Silva? Foi para a Concertação Social com tudo o que estava acordado com o BE, dizendo aos parceiros sociais que não podiam tirar nada mas podiam acrescentar coisas novas. Como para o resultado final o que interessa não é cada medida mas o equilíbrio entre as várias medidas, algumas anularam parcialmente o que tinha sido acordada. O que Vieira da Silva deu com uma mão na negociação com o BE tirou com a outra na Concertação Social. E o mais grave é que não informou o parceiro parlamentar desta evolução.

Ao contrário do que aconteceu em quase todos os sectores, o Governo não permitiu que houvesse reversão das alterações feitas pela troika na lei laboral – redução dos dias de férias, redução do pagamento de trabalho suplementar ou diminuição das compensações por despedimento, por exemplo. Vieira da Silva não aceitou voltar à Lei Laboral de Vieira da Silva. Mesmo assim foi possível, em troca de um avanço no combate à precariedade, chegar a um acordo com o BE. Ao esvaziar parcialmente, ainda por cima à socapa, o alcance desse avanço, o ministro Vieira da Silva, muito provavelmente com a aquiescência de António Costa, entalou o Bloco no último ano em que julga precisar dele.

Ainda assim, este continua a ser o melhor acordo até hoje saído da Concertação Social em matéria de lei laboral. A única em que, genericamente, houve mais avanços do que recuos para os trabalhadores.

O que deixa o Bloco, que tem todas as razões de queixa, numa situação difícil: deve o Bloco pisar a casca de banana lançada por Vieira da Silva e António Costa, chumbando um acordo que esvazia parcialmente um ano e meio de negociações, prejudicando com isso os trabalhadores? Não. Mas deve, na sede onde as leis se aprovam, tentar remendar os buracos que propositadamente foram feitos para tornar mais ineficaz o combate à precariedade, não permitindo que o período experimental se transforme nos novos recibos verdes, onde cabe tudo o que lei tenta evitar.

 

O incómodo dos patrões e o muito que falta fazer

(José Soeiro, in Expresso Diário, 25/03/2018)

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José Soeiro

(Este governo tem vindo a tomar algumas medidas que diminuem o desequilíbrio da repartição do rendimento entre o trabalho e o capital. E está sempre à espera que na comédia da “concertação social” os patrões deem a benção às medidas. Ó santa ingenuidade. O patronato luso é sovina e só dá um presunto a quem lhe der um porco, como bem diz o povo. Por isso o melhor é acabar com a farsa da “concertação” que não passa de um grande desconcerto.

Comentário da Estátua, 25/03/2018) 


Ao momento está associada uma solenidade que é também um ritual. Mas quem esteja mais atento sabe que a proposta do Governo sobre as alterações à lei laboral não é propriamente nova. É, no essencial, a expressão do que já constava do programa de Governo aprovado na sequência dos acordos feitos à esquerda (nomeadamente a eliminação do banco de horas individual e a taxa de rotatividade) e também dos compromissos negociados com o Bloco e publicados no Relatório do Grupo de Trabalho de Combate à Precariedade, nomeadamente sobre a limitação dos contratos a prazo (com cinco alterações concretas), do trabalho temporário e sobre o reforço da Autoridade para as Condições de Trabalho.

A reação das confederações patronais, mesmo antes da divulgação do documento, também não surpreende ninguém. Invocam a “concertação social”, como se a representação democrática estivesse sujeita ao visto prévio de quem ninguém elegeu. No essencial, encenarão a indignação do costume contra tudo o que possa diminuir os atuais desequilíbrios nas relações de trabalho, sempre de mão estendida para mais compensações e subsídios. O costume, portanto.

O que fica por saber são três aspetos essenciais.

O primeiro é o calendário. O programa do Governo foi votado há dois anos e o relatório assinado pelo Governo e pelo Bloco saiu há um ano. Ora, não podemos esperar até ao fim da legislatura para concretizar o que está consensualizado há tanto tempo. Por isso mesmo, ouvir os parceiros sociais não pode ser pretexto para arrastar decisões e concretizar compromissos. Vamos mudar a lei do trabalho ainda antes do verão? É essa a expectativa criada.

O segundo é saber como serão concretizadas as medidas agora enunciadas nos seus princípios. A taxa de rotatividade é uma medida positiva com um objetivo correto, mas para ser eficaz tem de ser robusta no seu âmbito (falamos apenas do desvio em relação ao padrão de rotatividade de cada setor? Mesmo em sectores em que o padrão é em si mesmo excessivo?) e no seu valor (é esse que vai definir o seu efeito de dissuasão). Noutro campo, o do trabalho temporário, acontece o mesmo. Atualmente a lei permite renovações diárias ao longo de dois anos, ou seja, uma sucessão de 720 contratos temporários para o mesmo trabalhador para o mesmo posto de trabalho. É absurdo, mas é lei. A intenção de limitar está certa, mas o essencial é saber até quantas renovações se pretende limitar (limitar a 3 é diferente de “limitar” a 300…).

A terceira questão é saber se o Governo pretende, com esta proposta, encerrar o atual ciclo político no campo da lei laboral. Creio que isso é impossível, por duas razões. A primeira é que o que está proposto relativamente à contratação coletiva fica ainda claramente aquém do razoável. A utilização indevida da caducidade é hoje, na prática, autorizada pela lei e não devia sê-lo; os mecanismos de arbitragem, mesmo que fossem capazes de mitigar o abuso, não vão resolver esse problema. A segunda razão é que estão neste momento em discussão outras matérias em relação às quais o Parlamento já deu um sinal de compromisso: o trabalho por turnos e o reconhecimento do estatuto dos cuidadores e das cuidadoras informais. Uma e outra implicam alterações ao Código de Trabalho. Há ainda zonas que não podem ficar sem resposta – um exemplo é o valor das indemnizações por despedimento, cortadas para metade.

Façamos então caminho. O momento de hoje é um passo importante num caminho que vem do início da atual solução política. Mas não é ainda uma garantia nem encerra o debate.

A “CARTA-CASSETE” DE PENEDA

(Por Soares Novais, in A Viagem dos Argonautas, 11/02/2018)

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Apesar das falinha mansas que sempre usa em público, o ex-presidente do Conselho Económico e Social (CES), ex-assalariado ao serviço de Junker, figura notável do antigo “grupo da sueca” e membro “VIP” de várias confrarias gastronómicas, engrossou a voz para dizer: “É altura de todos os parceiros sociais tomarem uma posição clara sobre a postura da CGTP no processo da Autoeuropa e na própria concertação social.»

Esta afirmação de Peneda, tornada pública em carta aberta, que melhor será designar por “carta-cassete”, bem podia ser subscrita pelo Saraiva da CIP ou pelo Silva da UGT. Ou seja: diz aquilo que os personagens citados, e outros da mesma laia, sempre dizem quando está em causa a sua santificada Autoeuropa. É a cassete do costume. Roufenha de tão usada.

Acresce: as semelhanças entre esta “carta cassete” e todos os vómitos anteriores não se ficam por aqui. Para o autor da carta, é também o Partido Comunista que está por trás da CGTP.  “À falta de mobilização no sector privado descobriu agora a Autoeuropa como palco para a sua investida”, pois assevera o ex-ministro do erudito Cavaco, “a sua sobrevivência como força política depende da desordem e da falta de confiança que consiga instalar no tecido económico. Sempre foi e assim será.” (Salazar não diria melhor).

Por isso, sugere com alarde: “É preciso que se denuncie de forma clara que a estratégia dos comunistas para a Autoeuropa é que esta feche as portas e se desloque para outras paragens. Aí o PCP cantará vitória e como sempre serão vitórias “conquistadas” à custa de milhares de trabalhadores que ficarão no desemprego e a Península de Setúbal voltará a viver os tempos de fome da década de 80, mas aí o PCP e a CGTP estarão no seu terreno favorito a desfraldar as bandeiras negras, nunca assumindo culpas, mas remetendo-as para os vícios do capitalismo.”

“Vícios do capitalismo” que, recordo, ele beatificou enquanto ministro do Emprego do Dr. Cavaco e em que, como já lembrou a CGTP, foi “co-responsável pela política que na altura gerou desemprego, salários em atraso, fome no distrito de Setúbal, cargas policiais sobre os trabalhadores e a população em geral.”

As afirmações do ex-presidente do CES mostram o seu mundo. Um mundo que começa em São Mamede de Infesta e acaba em Palmela. Convenientemente. Explico: é que na mesma altura em que tornou pública a sua “carta-cassete”, a Reuters noticiava:

“Mais de 300 mil trabalhadores estiveram envolvidos nos primeiros dois dias de greve, que atingiram a produção em inúmeras unidades industriais alemãs de empresas como a MAN, a ZF Friedrichshafen, a Porsche, a Ford e a Audi. A greve está a ter forte impacto nas fábricas da BMW na Baviera (Sul da Alemanha), bem como nas fábricas da Airbus em Bremen, Hamburgo e Baixa Saxónia.” (Sendo certo que nenhum destes gigantes ameaçou deslocalizar as suas fábricas).

E o portal El Salto anunciava:

“O IG Metall, com cerca de 2,3 milhões de filiados, estima que mais de 250 empresas sejam atingidas nestes três dias de greve, que, de acordo com fontes sindicais, serve como último aviso antes do endurecimento da luta, caso o patronato faça ouvidos moucos às reivindicações dos trabalhadores. Estes exigem um aumento salarial de 6% e a possibilidade de optarem por uma semana laboral de 28 horas ― para cuidarem de crianças, pessoas mais velhas e familiares doentes ― por um período de dois anos, com direito a regressarem à semana de 35 horas no final desse tempo.”

A luta dos trabalhadores alemães, que por cá foi convenientemente silenciada pela imprensa, levou a um acordo entre o sindicato IG Metall e a federação patronal Suedwestmettal e prevê um aumento salarial de 4,3% para este ano e contempla o pagamento de outros prémios ao longo de 27 meses.

Além da remuneração, o acordo também prevê uma redução da carga horária semanal de 35 para 28 horas durante dois anos, se os trabalhadores tiverem de cuidar de crianças, ou de familiares que precisem de cuidados ou que estejam doentes.

Perante a dura jornada de luta dos trabalhadores alemães, desconfio que o IG Metall, tal como a portuguesa CGTP, segundo Peneda, “não apoia nem nunca apoiou a concertação social porque nunca teve nem terá uma postura baseada numa cultura de compromisso.”

Também o IG Metall como a CGTP quer “impor de forma unilateral os seus pontos de vista, através de práticas que são imposição sobre os outros.”

Uma afirmação que o ex-presidente do CES sustenta assim:

“A CGTP nunca conviveu bem com a negociação. A CGTP é cada vez mais um braço armado ao serviço de uma ideologia comunista que não tem pontos de ligação aos princípios que estão na base do projeto europeu, nem da sã convivência democrática. É altura de todos os parceiros sociais tomarem uma posição clara sobre a postura da CGTP no processo da Autoeuropa e na própria concertação social.”

Ainda bem que o ex-presidente do CES se deixou de palavrinhas mansas e voltou a manifestar a sua fidelidade ao capitalismo, aos seus “vícios”, bem como ao patronato português que, como se sabe, está sempre aberto ao diálogo e à “concertação social”…


A tempo: A partir do “curriculum vitae” de Peneda, plasmado em www.parlamento.pt, vê-se que, o ex-assalariado de Junker, é um daqueles bem-aventurados que nasceu para ser ministro, deputado no Parlamento Europeu, administrador de empresas, e que nunca esteve sujeito aos salários pagos à aristocracia operária da Autoeuropa. E, concluo, também, por aquilo que diz na sua “carta-cassete” que, enquanto presidente do CES, olhou sempre de soslaio para Arménio Carlos, secretário-geral da CGTP e membro do Comité Central do Partido Comunista – um operário cuja visão da vida e do mundo não se queda por ir “à bola” ou jogar a “sueca” com os seus amigalhaços…


Fonte aqui