É precisa uma cidade para formar um cidadão

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 17/09/2020)

Daniel Oliveira

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A absurda polémica em torno das aulas de Cidadania e Desenvolvimento começou com um pai que decidiu que os filhos não iriam a aulas que a lei define como obrigatórias, inventando uma objeção de consciência que não está em lado nenhum. Como estava previsto na lei, os alunos reprovariam por faltas injustificadas. No entanto, e ao contrário do que foi dito, o Ministério, por considerar que os dois alunos menores não podiam ser prejudicados por uma decisão imposta pelos pais, propôs um plano de recuperação mínimo para que os alunos não ficasse retidos.

Este artigo do secretário de Estado explica que plano era esse, para ficar clara a aldrabice que nos andaram a vender: elaboração de trabalhos escritos e orais sobre a diferença entre as características da infância, da adolescência e da idade adulta; Educação Ambiental e Literacia Financeira; Direitos Humanos (especificamente Direitos da Criança); sustentabilidade; educação alimentar; atividade física; e igualdade de género, com uma reflexão sobre representações, preconceito e discriminação, centrando-se na capacidade de exposição e argumentação das ideias dos alunos. O pai recusou, porque, usando os seus filhos como armas, o seu objetivo era sobrepor-se à lei.

O debate que se gerou baseia-se em dois equívocos. O primeiro parece equiparar a cidadania à religião. A religião é opcional e cabe ao Estado defender a liberdade de culto. A cidadania é um dever e cabe ao Estado usar os instrumentos ao seu dispor (a escola é um deles) para a promover. O segundo equívoco julga que o Estado democrático é neutro. Não é. Ele promove, com base na sua legitimidade democrática, um conjunto de valores essenciais. Não é neutro em relação à homofobia, ao machismo e ao racismo, por exemplo. Porque não é neutro em relação a valores como a igualdade e a tolerância. Não se baseia numa “ideologia”, mas na Constituição da República Portuguesa e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de que Portugal é signatário. Há quem não goste, mas o Estado não se torna neutro por não gostarem. É o preço de viver em democracia. Em ditadura, de que algumas destas pessoas são saudosas, é muito pior: o Estado não precisa de outra legitimidade para além da vontade de quem manda.

Também não gosto da forma como a história do colonialismo português é ensinado nas escolas. Penso ser demasiado benevolente com o nosso passado coletivo e que isso tem efeitos no presente. Continuarei a bater-me para que esse consenso seja alterado. Mas não me considero no direito de decidir que esta cadeira passa a ser facultativas para os meus filhos. Porque não é assim que as coisas funcionam em sociedade. E se um criacionista recusar as aulas de biologia? E se um qualquer grupo cultural ou religioso exigir que a escolaridade obrigatória deixe de incluir as raparigas e fizer objeção de consciência? A escola respeita os pais, mas nem é um mero prolongamento da sua vontade nem os filhos são propriedade deles. Se assim fosse, a escolaridade obrigatória seria intolerável. Os pais decidiam se valia a pena. Ela, com os respetivos currículos, é imposta, queiram ou não queiram os pais que os seus filhos os aprendam.

Li, numa rede social, um comentário elucidativo deste tempo. Uma pessoa partilhava um trabalho do Expresso em que se explicava em que consistia esta disciplina e como funcionava. O artigo era factual. Uma outra pessoas respondia que não seguissem a imprensa tendenciosa, que havia coisas muito mais pormenorizadas no YouTube. O eurodeputado Nuno Melo até garantiu que uma aula de educação física tinha sido interrompida por uma palestra para explicar aos alunos 67 tipos de sexualidade, incluindo atração por objetos inanimados. Quando lhe foi pedido que dissesse onde e quando tal tinha acontecido, recusou-se a esclarecer. E é este o problema: anda tudo a contar meias-verdades, meias-mentiras ou mentiras completas sobre este tema. E de repente acontece uma coisa extraordinária: com milhares de crianças nas aulas de cidadania e desenvolvimento, as pessoas falam do assunto como se estivessem a falar de uma realidade distante, que lhes chega por via das redes sociais.

São estes os domínios obrigatórios para todos os ciclos de ensino das aulas de cidadania: direitos humanos, igualdade de género, interculturalidade, desenvolvimento sustentável, educação ambiental e saúde. São estes os domínios obrigatórios para os ciclos de ensino básico: sexualidade, media, instituição e participação democrática, literacia financeira e educação para o consumo, risco e segurança rodoviária. Os domínios opcionais são empreendedorismo, mundo do trabalho, segurança, defesa e paz e voluntariado.

São estes os domínios que realmente preocupam os conservadores que querem que a cidadania seja facultativa: igualdade de género e sexualidade. São os mesmos assuntos que os preocupam sempre, pelos quais são, aliás, obcecados. Quanto ao primeiro caso, terão de mudar a Constituição: a discriminação por género ou orientação sexual, assim como étnica e outras, é combatida pelo Estado português. E a escola tem o dever constitucional de promover a igualdade. Quanto à segunda, pedem-nos que sejam eles a não tratar do assunto. E quando vem um referendo ao aborto, passam a pedir que o Estado prenda as suas filhas se o fizerem e que não se deve legalizar, deve-se ensinar… para depois não quererem que se ensine. Exigem que a sua negligência seja política de Estado.

Acontece que a ignorância neste tema produz vítimas. As primeiras são os seus filhos, negligenciados por ignorância, medo ou convicção dos pais, numa área fundamental da sua formação enquanto pessoas. As segundas são os frutos dessa negligência, crianças que surgem numa fase demasiado precoce da vida dos seus pais adolescentes. As terceiras são muitos milhares de jovens que sofrem na pele a discriminação, o sentimento de culpa, a indizível dor de se sentirem anormais por serem aquilo que são. As quartas somos todos nós, que temos de lidar, enquanto sociedade, com gravidez adolescentes, abortos legais ou ilegais e gente profundamente traumatizada. A escola não educa, dizem eles. Mas enganam-se. Educa cidadãos e seres humanos.

É preciso uma aldeia para educar um filho, diz-se. E para o defender também. Eu acrescentaria que é preciso uma cidade para formar um cidadão. Na forma como nos organizamos, essa aldeia ou cidade é a escola. Não substitui os pais, mas participa na preparação da vida dos seus filhos em comunidade. Desde que há escola que assim é, não vai mudar agora. O que muda é o que se ensina, porque mudou a sociedade.

Tendo perdido o domínio que tinham desta função, exercido antes pela Igreja ou pelo Estado autoritário, os ultraconservadores propõem uma impossibilidade: que a sociedade seja composta por núcleos familiares isolados que não partilham deveres, direitos e valores mínimos de convivência. Esses valores, que incluem os da igualdade, estão definidos na Constituição. Cada um manterá as suas convicções e as passará aos filhos, mas a sua aprendizagem na escola não é facultativa.

O que é milagroso? Que, em pleno regresso às aulas depois de meio ano com as escolas fechadas, estas pessoas tenham conseguido que o tema dominasse o debate público durante quinze dias. Um tema que preocupa um nicho da sociedade portuguesa. Por isso, demorei este tempo a tratar do assunto. Não fazer a vontade a políticos despertados por atenção que, dizendo-se representante das preocupações do português comum, vivem, nestes tempos difíceis, a léguas das verdadeiras angústias dos pais.


Já não há pessoas

(Valdemar Cruz, in Expresso Diário, 09/03/2017)

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O momento mais perturbador do acalorado, por vezes excessivamente dramatizado, do debate parlamentar de ontem não residiu nas indignações verbalizadas por Passos Coelho ou Luís Montenegro, muito menos nas acutilantes respostas de António Costa. Na sequência do caos palavroso instalado, sobressai em dado momento a voz de Catarina Martins a denunciar a perfídia dos jogos florentinos contidos naquela voragem de teatralizar a discussão à volta de tudo, que é a melhor forma de não discutir nada, muito menos a vida das pessoas.

Esse é o paradoxo maior, quando se constata ser hoje uma constante do discurso político e mediato classificar de “radical” a esquerda representada pelo Bloco e pelo PCP. Como uma das mais sofisticadas explicações que já me foi dada para aquela opção radica na ideia de que o adjetivo visa sobretudo sublinhar a ideia de uma esquerda mais próxima da essência originária, espanto-me quando similar designação não é atribuída ao CDS ou, nos dias que correm, em particular ao PSD. Neste caso por maioria de razão. Não apenas por ser consensual a constatação de que o partido se tem posicionado cada vez mais à direita, mas também porque com facilidade se lhe colaria o significado que penso estar mais próximo da verdadeira intenção escondida no uso do termo quando, como “radical”, na verdade o que se pretende nomear é algo de extremado e, portanto, radicalizado.

Catarina, ao balizar daquela maneira o debate remeteu-nos para o domínio das questões do bom gosto e do bom senso, exatamente a mesma atitude contida na iniciativa marcada pelo PCP para hoje, no Porto. Jerónimo de Sousa apresenta o livro “Euro, Dívida, Banca. Romper com os constrangimentos, desenvolver o País“, no âmbito da campanha sobre a presença de Portugal na moeda única, que começará agora a chegar às ruas, prolongar-se-á até final de junho e inclui iniciativas legislativas na Assembleia da República e intervenções em Bruxelas.

Se assumirmos o que até já políticos de direita ou lá próximos afirmam sem qualquer constrangimento, quando sublinham a radical incompatibilidade entre o mercado comum e a moeda única, ao ponto de termos vindo a assistir a um permanente caminho de divergência económica desde que o euro entrou em circulação, teremos de aceitar como fazendo parte do mais elementar bom senso colocar a debate, sem reservas ou preconceitos, a permanência no euro de uma economia tão débil como a nossa.

Isso bastaria para esta iniciativa estar hoje a ocupar um lugar de relevo no espaço mediático, até porque, se é certo que o PCP tem desde o início uma posição contrária à permanência no euro, é hoje possível encontrar argumentos, tanto de esquerda, como de direita, para defender qualquer das soluções: permanência ou abandono. Sejamos claros. Estamos a trabalhar em terreno desconhecido e porventura minado. Não há a experiência de qualquer anterior saída do euro e são naturais todos os receios. O que aconteceria aos depósitos? A sua desvalorização afetaria apenas a classe média, os pequenos aforradores e as PME’s, visto os detentores do grande capital terem sempre à disposição uma infinidade de meios para colocar os seus capitais a salvo? Como se processaria a migração para o escudo? Como seria tratado o problema das dívidas particulares e das empresas? Como se resolveria a inevitável turbulência económica gerada no imediato? Quais as vantagens da utilização da taxa de câmbio como forma de evitar que se eternize a utilização dos salários para conseguir os chamados ajustamentos? E a saída do euro seria bastante para resolver os crónicos problemas da economia portuguesa? Há uma infinidade de questões e não creio que alguém se atreva a assegurar dispor de respostas definitivas, coerentes e convincentes. Daí a importância do debate. Se a política se contenta em acantonar-se em abstrações, pode estar a conseguir extraordinários efeitos retóricos. Esse será, porém, o contexto em que haverá de tudo, menos o que mais importa: as pessoas.