Já não há pessoas

(Valdemar Cruz, in Expresso Diário, 09/03/2017)

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O momento mais perturbador do acalorado, por vezes excessivamente dramatizado, do debate parlamentar de ontem não residiu nas indignações verbalizadas por Passos Coelho ou Luís Montenegro, muito menos nas acutilantes respostas de António Costa. Na sequência do caos palavroso instalado, sobressai em dado momento a voz de Catarina Martins a denunciar a perfídia dos jogos florentinos contidos naquela voragem de teatralizar a discussão à volta de tudo, que é a melhor forma de não discutir nada, muito menos a vida das pessoas.

Esse é o paradoxo maior, quando se constata ser hoje uma constante do discurso político e mediato classificar de “radical” a esquerda representada pelo Bloco e pelo PCP. Como uma das mais sofisticadas explicações que já me foi dada para aquela opção radica na ideia de que o adjetivo visa sobretudo sublinhar a ideia de uma esquerda mais próxima da essência originária, espanto-me quando similar designação não é atribuída ao CDS ou, nos dias que correm, em particular ao PSD. Neste caso por maioria de razão. Não apenas por ser consensual a constatação de que o partido se tem posicionado cada vez mais à direita, mas também porque com facilidade se lhe colaria o significado que penso estar mais próximo da verdadeira intenção escondida no uso do termo quando, como “radical”, na verdade o que se pretende nomear é algo de extremado e, portanto, radicalizado.

Catarina, ao balizar daquela maneira o debate remeteu-nos para o domínio das questões do bom gosto e do bom senso, exatamente a mesma atitude contida na iniciativa marcada pelo PCP para hoje, no Porto. Jerónimo de Sousa apresenta o livro “Euro, Dívida, Banca. Romper com os constrangimentos, desenvolver o País“, no âmbito da campanha sobre a presença de Portugal na moeda única, que começará agora a chegar às ruas, prolongar-se-á até final de junho e inclui iniciativas legislativas na Assembleia da República e intervenções em Bruxelas.

Se assumirmos o que até já políticos de direita ou lá próximos afirmam sem qualquer constrangimento, quando sublinham a radical incompatibilidade entre o mercado comum e a moeda única, ao ponto de termos vindo a assistir a um permanente caminho de divergência económica desde que o euro entrou em circulação, teremos de aceitar como fazendo parte do mais elementar bom senso colocar a debate, sem reservas ou preconceitos, a permanência no euro de uma economia tão débil como a nossa.

Isso bastaria para esta iniciativa estar hoje a ocupar um lugar de relevo no espaço mediático, até porque, se é certo que o PCP tem desde o início uma posição contrária à permanência no euro, é hoje possível encontrar argumentos, tanto de esquerda, como de direita, para defender qualquer das soluções: permanência ou abandono. Sejamos claros. Estamos a trabalhar em terreno desconhecido e porventura minado. Não há a experiência de qualquer anterior saída do euro e são naturais todos os receios. O que aconteceria aos depósitos? A sua desvalorização afetaria apenas a classe média, os pequenos aforradores e as PME’s, visto os detentores do grande capital terem sempre à disposição uma infinidade de meios para colocar os seus capitais a salvo? Como se processaria a migração para o escudo? Como seria tratado o problema das dívidas particulares e das empresas? Como se resolveria a inevitável turbulência económica gerada no imediato? Quais as vantagens da utilização da taxa de câmbio como forma de evitar que se eternize a utilização dos salários para conseguir os chamados ajustamentos? E a saída do euro seria bastante para resolver os crónicos problemas da economia portuguesa? Há uma infinidade de questões e não creio que alguém se atreva a assegurar dispor de respostas definitivas, coerentes e convincentes. Daí a importância do debate. Se a política se contenta em acantonar-se em abstrações, pode estar a conseguir extraordinários efeitos retóricos. Esse será, porém, o contexto em que haverá de tudo, menos o que mais importa: as pessoas.

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