As intermitências do progresso ou governo Bolsonaro vende o Brasil

(Pedro Augusto Pinho, in port.Pravda.ru, 04/07/2022)

Em amplo salão climatizado, luxuoso, três pessoas estão reunidas. Confortavelmente sentadas em acolhedoras poltronas, servidas por quinze empregados, BlackRock, Vanguard e Street State discutem a situação mundial. Juntas elas representam muito mais do que o maior produto nacional bruto de qualquer país do planeta. Porém não são pessoas conhecidas; transitam pelas ruas, não como qualquer mortal, pois tem seguranças e serviçais sempre a acompanhá-las, mas incógnitas. Pessoa alguma sabe que ali estão os que mais roubam, corrompem e matam no mundo: são os principais mentores do Clube Bilderberg, comandam a rede de 85 paraísos fiscais espalhados por toda Terra, por onde transitam diariamente muitos trilhões de dólares estadunidenses, declaram guerras e decidem sobre a existência da vida humana. Se os olhássemos como os gregos antigos, diríamos que Bilderberg é o Olimpo e estes são os deuses. Mas deuses da pós-modernidade, não lançam raios fulminantes sobre os mortais, lançam dinheiro para corrompê-los, vírus para destruí-los, notícias para confundi-los. 

Vanguard: O rombo já está insustentável. Até aquele grupelho do Instituto Schiller divulgou ser de dois quatrilhões de dólares. Precisamos tomar decisão urgente. Desta vez a crise pode nos prejudicar. 

BlackRock: Não fique assustado. Será mais uma daquelas em que limpamos os cofres públicos, como a de 2008. 

State Street: Mas, desta vez, eles já estão mais vazios e o montante é ainda maior. Penso como Vanguard, que precisamos agir com mais rigor e mais rápido. 

BlackRock: E o que vocês propõem? 

Alguns minutos de silêncio. Vanguard pede uma bebida ao serviçal mais próximo. Nenhum quer se arriscar a propor algo impossível. O covid não foi tão mortal quanto parecia, embora tenha rendido bom dinheiro para as farmacêuticas e os sistemas de saúde que eles controlam. Precisam ser criativos. Passam-se longos segundos. 

State Street: Vamos comprar um país rico. 

Entreolham-se. 

BlackRock: Os Estados Unidos já são nossos … E estão falidos … 

State Street: Tem que ser um país rico, mas com elite sem interesse nacional, que controle um governo imbecil, que use o comunismo como ameaça. 

Risos discretos, pois estão preocupados com a proposta de State Street. 

Vanguard: Explique melhor. O que tem em mente, State Street? 

State Street: Estou pensando no Brasil. Tem a Amazônia, uma terra de ninguém, dominada por marginais, que não exploram racionalmente as riquezas minerais e o potencial biológico e vegetal. Tem amplas reservas de água doce, que eles não sabem usar para ganhar dinheiro. E ainda mais: tem enorme reserva de energia fóssil e hídrica, que faria qualquer país ser o mais rico do mundo, mas suas elites são tacanhas e baratas, até hoje não enxergaram esta fabulosa riqueza e ficam mendigando trocados. O único governo que procurou modificar esta situação, eles levaram ao suicídio e ainda passaram cinquenta anos tentando revogar suas decisões nacionalistas e trabalhistas. 

BlackRock: Bem pensado, State Street. Detalhe um pouco mais esta sua ideia. 

State Street bebe um gole do champagne, organiza mentalmente suas ideias e começa a expor, como um general, seu plano de conquista do território inimigo. 

State Street: O Brasil é imenso, todo ele é ocupável, não tem desertos, geleiras, o clima é propício à vida animal e vegetal. E, o que é mais importante, tem uma elite que toma conta deste país deste o tempo da colonização portuguesa, que nunca se interessou por ele. Ao contrário, sempre agiram como estrangeiros de passagem: tirar o máximo, no mais curto tempo, e ir gastar no exterior. Nos séculos anteriores ao XX eram Portugal, França, Inglaterra, depois passaram para os Estados Unidos que, ainda hoje, é onde compram seus imóveis … (discreto sorriso de troça, acompanhado pelos demais). 

Vanguard: Tudo bem. Mas como operacionalizar a compra? Aliás, o que exatamente iremos comprar e quanto você avalia o preço? 

State Street: Nada diferente do que fazemos. Primeiro dominar as mídias, as escolas, a classe militar, judiciária e os políticos. Assim estaremos neutralizando eventual oposição. Todos são muito baratos. Uma garrafa de uísque sem data de envelhecimento compra deputado ou general.

(O assunto é sério. Ninguém ri. State Street continua.) Depois colocamos à venda o que de mais valioso eles têm: energia e minérios. Há poucos minerais ainda disponíveis; a grande maioria já é nossa, mas precisamos organizar melhor a extração na área amazônica porque há muitos marginais, contrabandistas, aventureiros se metendo. Há total falta de Estado naquela região. Precisamos ter milícia nossa, o que o domínio do Estado facilitará. 

BlackRock e Vanguard concordam com o mexer de cabeça. 

State Street (prosseguindo): A cereja do bolo é a Petrobrás. É difícil, mas não impossível. Contamos com a mente corrupta e a ignorância das elites, civis, militares e eclesiásticas, embora a igreja católica pouco valha no Brasil de hoje. Os neopentecostais, a igreja do cofrinho, têm dominado amplamente a população, e seus bispos e pastores trabalham a nosso favor e ainda colocam seu dinheiro em nossos fundos (gostosa gargalhada toma a sala). 

Todos os dirigentes da cadeia hierárquica que vai do Presidente aos diretores da Petrobrás já estão comprados; nenhum Ministro ou Chefe de autarquia ou departamento irá interferir. Só as reservas de petróleo existentes no pré-sal, a 100 dólares o barril, nos rendem dez trilhões, que sabemos muito bem o que fazer com eles. E ainda teríamos o consumo dos derivados, dirigindo todas as refinarias e redes de distribuição, através de nossas controladas.

Com a recessão destes últimos anos, o consumo brasileiro ainda está em 2,5 bilhões de barris/dia, aproximadamente, ou seja, quase 400 bilhões de litros de combustíveis, que o coloca entre os dez maiores consumidores de petróleo do mundo. Certamente não é tudo, mas poderemos respirar mais aliviados diante da divulgação, que já está sendo feita, dessa nossa imensa dívida, dessa quantidade de emissões de títulos sem lastro caucionando, dando garantia e afiançando os fundos de investimentos que vendemos por todo mundo. Portanto, caros colegas, tratemos de comprar o resto do Brasil. 

Com a frieza que lhes caracteriza, BlackRock e Vanguard aceitam a proposta de State Street.  

Sugere-se o fundo musical de “Meu Caro Amigo”, de Chico Buarque e, no Intervalo, deve ser colocada a placa com seguintes dizeres: 

“FOLHA DE S.PAULO – 29/06/2022 – GOVERNO AVALIA MECANISMO PARA OBRIGAR A PETROBRÁS A VENDER ATIVOS, INCLUINDO REFINARIAS”. 

Autor – Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado. 


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Requiem para Rio

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 20/11/2020)

Clara Ferreira Alves

“A política é um capítulo da moral e por isso estamos aqui”
Sophia de Mello Breyner

(Sessão de apoio ao Solidariedade da Polónia, promovida por Mário Soares nos anos 80)


Apontando a “urubuzada de prato cheio”, Jair Bolsonaro atesta que é tempo de o Brasil deixar de ser um “país de maricas” e de ter medo da covid. “Toda a gente tem de morrer” diz o másculo profeta que compara os jornalistas a um bando de abutres ou urubus. Quase 170 mil mortos mais tarde, aqui chegámos no país irmão.

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Pode ser que haja um cidadão a achar graça a Bolsonaro, gabando-lhe o estilo solto e incorreto que cai muito bem nas redes e nas seitas. Pode ser que haja um cidadão que veja neste chefe de caserna um labrego moralmente responsável por milhares de mortos no país. E não vamos falar da destruição das florestas da chuva da Amazónia.

Nenhuma das duas definições apaga a principal característica de Bolsonaro, a ignorância aureolada de estupidez. Sim, Bolsonaro é um estúpido, ou boçal, ou bestial (de besta), ou entupido, ou grosseiro, ou falho de inteligência e delicadeza, segundo a velha definição do dicionário. Bolsonaro é idiota, imbecil, estólido, estulto. É um asno na definição popular que compara o estúpido a um animal inocente como o burro, que de estúpido nada tem. Disse Einstein que só havia duas coisas verdadeiramente infinitas, o universo e a estupidez humana. E sobre a infinitude do universo, não estava certo. A estupidez está descrita clinicamente, e tem leis que a regem descritas por Carlos Cipolla. É uma verdade científica a sua existência, embora possa ser empiricamente apreciada com facilidade. E é subestimada, ao subestimar-se o número de indivíduos estúpidos em circulação. Cipolla, historiador da economia e medievalista, preocupou-se em distinguir o estúpido do ingénuo, com o qual pode ser confundido com benevolência.

No exemplo de Bolsonaro, a ingenuidade não entra. Neste mandarim detetamos a luz bruxuleante dos parcos atributos escoados numa política assassina. Bolsonaro é um estúpido clássico promovido muito acima da sua competência num país com uma subclasse sem instrução e uma classe superior instruída na corrupção, no oportunismo e na manipulação que autorizem a manutenção da subclasse num estado supersticioso, iletrado e miserável. Uma perfeita sociedade pós-colonial que se julga moderna e civilizada.

Um chefe de uma democracia europeia ocidental não pode nem deve ignorar isto. E não pode nem deve aliar-se a isto, sob pena de trair tudo o que postulam a constituição, o Estado de direito e a liberdade de expressão. Sob pena de trair a democracia ocidental tal qual a conhecemos e construímos, desde Atenas.

No dia 8 de agosto deste ano, lemos a notícia de que André Ventura foi recebido na residência de Duarte de Bragança, na companhia de Diogo Pacheco de Amorim, vice-presidente do Chega. Na reunião, os dois foram pedir a interceção do duque de Bragança para chegarem a Bolsonaro, que admiram. O candidato à Presidência da República de Portugal admira também o nacionalismo de uma dinastia defunta, a de Orleães e Bragança, que no Brasil apoia Bolsonaro. O candidato a presidente admira as monarquias, e parece que queria ainda “estabelecer contacto com a monarquia de Marrocos e as casas reais europeias”. A desenhar a ponte brasileira, estava o deputado italiano Roberto Lorenzato, descendente de aristocratas, íntimo de Matteo Salvini, o líder fascista italiano, e de Bolsonaro, tendo apresentado os dois. Podemos concluir que esta gente é política e afetivamente próxima. Salvini é não um idiota clássico, é um fascista clássico, sem a cultura do Mussolini que lia livros e ouvia ópera.

Descontando as contradições entre monarquia e república, e a vassalagem a monarcas destituídos, o que se retém deste estranho encontro é o tráfico de influências e a vassalagem a Bolsonaro, a que Ventura e afins reconhecem atributos.

Isto, por si só, deveria ter feito acender todas as luzes vermelhas e campainhas de alarme de Rui Rio, um chefe de um partido que dá pelo nome de social-democrata. Diz-me com quem andas dir-te-ei quem és, diz o povo. É com os estúpidos que Rui Rio resolveu aliar-se, comprometendo o programa do partido fundado por Francisco Sá Carneiro e traindo os eleitores, todos os que não se reveem na aliança de António Costa com as esquerdas e que são de centro-direita ou de direita clássica, a direita democrática e historicamente pró-europeia, a direita liberal secular ou cristã que não aprecia as ditaduras e que fundou a democracia em Portugal. A direita que acredita na liberdade, na prosperidade e na paz social, e que detesta a demagogia, a revolução e o extremismo.

Nenhuma das escusas da praxe desculpam este PSD. António Costa teve uma oportunidade de, a bem do interesse nacional, ter chamado o PSD de Rui Rio como parceiro para um acordo de regime. A situação trágica do país assim o exigia. Num assomo de estupidez que pagaremos caro, Costa resolveu que era outra vez de esquerda e podia dispensar o PSD. E o PSD, posto fora da mesa, aproveitou a oportunidade para, numa estupidez orgástica, aliar-se nos Açores a um partido como o Chega, que não passa de uma cortina de fumo democrático num movimento sustentado pela iliteracia, a pobreza e o populismo autocrático. Costa e Rio traíram as expectativas dos eleitores e traíram o país quando, na história da democracia portuguesa, o país mais precisava que se entendessem. Não subestimem a gravidade da crise económica que vem aí e a gravidade da crise política que se sobreporá. Não subestimem a raiva que fervilha por aí, o desespero, o cansaço, a depressão. E com este país doente, Costa e Rio resolveram tornar-se em inimigos e cavar trincheiras.

O Chega não é nem será um partido de matriz democrática, é um partido que alinha com Salvinis e Bolsonaros. E que, instalado no coração da democracia, tudo fará para a destruir ou falsificar. Podemos exemplificar com vigor no caso de Trump e das eleições americanas. E do golpe populista contra a democracia. Quando Trump foi eleito, fui urubu. E fui das raras pessoas que avisaram que um dia isto iria acontecer. Participei em debates e programas onde me foi dito que era necessário dar uma oportunidade a Trump e que ele seria presidenciável assim que assentasse o traseiro na Sala Oval da Casa Branca. Estes são os ingénuos, que não devem ser confundidos com os estúpidos, mas facilitam a vida dos estúpidos. Rui Rio não pode alegar ingenuidade. Nem, noutro assomo de estupidez à Chamberlain, esperar que o Chega fique “mais moderado”.

Rio aqueceu o ovo da serpente. Ou o PSD se vê livre de Rio, ou Rio tentará ver-se livre do histórico PSD e erguerá um partido à sua imagem e semelhança, um partido instrumental e sem princípios, um partido antidemocrático e caudilhista. Para começo de festa, Rio e Bolsonaro estarão de acordo numa coisa, ambos detestam a urubuzada.


Carta aberta ao Presidente da República

(Sérgio Tréfaut, in Público, 09/06/2020)

Bolsonaro saúda um grupo de apoiantes em Brasília, 31 de Maio

Dizem os políticos que Portugal e o Brasil são países irmãos. Marcelo Rebelo de Sousa aprecia esta figura retórica. Mas chegou o momento em que é necessário decidir de que país Portugal é irmão. Do Brasil que está a matar? Ou do Brasil que está a morrer? O que se passa no Brasil hoje é mais grave do que um crime de Estado.

Desde o final de março, das janelas da minha casa no Rio de Janeiro, ouvi todos os dias gritar: “Bolsonaro genocida!” Porquê gritam assim os vizinhos à janela? Porque vários genocídios invadiram suas vidas.

O primeiro é um genocídio de populações indígenas, denunciado no Tribunal de Haia em 2019, e denunciado também por Sebastião Salgado. A indiferença de Bolsonaro ao extermínio dos índios tornou-se óbvia no vídeo da reunião de 22 de abril, divulgado a pedido de Sérgio Moro.

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Nessa reunião de ministros, vemos o ministro do Meio Ambiente definir a atual epidemia como uma oportunidade para fazer passar as leis (ilegais) de desmatamento da Amazônia, o que significa quase o fim dos índios. Sabemos que 90% das populações indígenas morreram no século XVI de doenças como a varíola, levadas por europeus. O governo brasileiro pretende agora que os índios que restam morram de covid. O ministro do Ambiente representa bem os valores do governo Bolsonaro.

A segunda forma de genocídio praticada no Brasil de hoje é a mais mortífera. Trata-se do negacionismo face à pandemia.

Desde março, Bolsonaro insultou as televisões por divulgarem as mortes na Itália: o Brasil nunca viveria aquilo. Hoje Bolsonaro esconde o número de mortos. Este negacionismo é o espelho da sua política. “O Brasil não pode parar”, afirmava Bolsonaro, apoiado pelos grandes industriais.

Os dois ministros da Saúde que tentaram defender o confinamento foram despedidos ou forçados a sair. Aliás, o negacionismo mais criminoso é o do Ministério da Saúde. Como se tratava de uma “gripezinha”, houve uma ausência total de plano para enfrentar a pandemia. Falta de testes, falta de material de proteção, falta de camas, falta de ventiladores, falta de tudo. Em números absolutos, Portugal fez mais testes à covid-19 do que o Brasil, com 210 milhões de habitantes.

Curiosamente, durante a epidemia de dengue de 2008 (174 mortos), o Governo de Brasília, com o apoio das Forças Armadas, montou três hospitais de campanha no Rio de Janeiro e salvou vidas. Face ao coronavírus, o Governo Federal negou a importância do perigo. Não ponderou um instante sobre a necessidade de cordões sanitários para proteger aldeias indígenas, ou para proteger áreas urbanas sobrepovoadas, onde o confinamento seria impossível por falta de condições. Tudo foi lançado para os governadores, não por uma visão descentralizadora, mas em forma de ataque. Assim Brasília culpou os estados pela crise sanitária e pela crise económica.

Bolsonaro e os seus filhos defenderam uma política eugenista, de cariz hitleriana: “É velho? É doente? Tem mesmo que morrer.” “É a lei da vida.” Frases como esta foram repetidas até a exaustão. São dez mil mortos? “E daí?”

Pela falta de cuidados, o Brasil tornou-se o país com maior número de enfermeiros mortos por covid. Agora será o país com maior número de mortes do mundo. Não fazer face à pandemia, optar por 100 mil mortos em vez de 10 mil em nome da economia, o que é senão um crime de Estado?

O clã Bolsonaro lançou milícias anti-confinamento, com manifestações ilegais nas ruas. Assim, vários militantes anti-confinamento morreram de covid. Mas agora, com mais de mil mortes diárias, as manifestações já não são necessárias. Governos e prefeituras cederam a Bolsonaro, abrindo praias e comércio.

O que pensariam os portugueses se, durante o confinamento, Marcelo Rebelo de Sousa lutasse contra as normas do Ministério da Saúde, reunindo multidões em passeatas anti-confinamento? Em Portugal, imagino que o Presidente seria impedido, ou preso. Não é o caso no Brasil. Bolsonaro está acima da lei. E o genocídio no Brasil não se limita à covid.

Existe um genocídio diário levado a cabo pela polícia nas favelas. Os Estados Unidos mobilizaram-se agora com o assassinato de George Floyd. “Black lives matter” conquistou o mundo.

Se o assassinato de George Floyd tivesse ocorrido no Brasil, a polícia teria dado um tiro na cabeça da adolescente de 17 anos que estava a filmar, como faz todos os dias. Ninguém saberia. Esta é a banalização da impunidade policial validada por Bolsonaro. No ano de 2019, só no Rio de Janeiro, a polícia foi responsável por 1814 assassinatos, ou seja, cinco mortos por dia.

A polícia entra nas favelas e mata sem receio da lei. Nenhum polícia precisa de prestar contas dessas mortes. Bolsonaro assina por baixo: “Bandido bom é bandido morto.” Sem julgamento. Sem provas. Raras vezes um caso ganha destaque. Por exemplo, quando, no dia 18 de maio, João Pedro, 14 anos, brincava com amigos em casa e foi morto pela polícia. Dias antes tinham sido encontrados 12 corpos com marcas de tortura policial. Nenhum polícia foi detido. Nas favelas denuncia-se o genocídio negro. Mas ninguém ouve.

À banalização do crime acresce a liberação por Bolsonaro da venda de armas a civis, armas que eram de uso exclusivo dos militares. A imprensa diz que Bolsonaro aposta numa guerra civil. Aqui chegamos ao extermínio da própria democracia.

O que Portugal tem a ver com isto? Tudo.

No dia 1 de janeiro de 2019, há pouco mais de um ano, Marcelo Rebelo de Sousa era a estrela internacional da tomada de posse de Bolsonaro. Angela Merkel, Theresa May, Emmanuel Macron não foram à cerimónia, apesar de convidados. Os dirigentes da direita europeia tomavam uma posição distante face a um novo Presidente do Brasil, com um conhecido desprezo pela democracia.

Os únicos chefes de Estado europeus eram Marcelo e Viktor Orbán, primeiro-ministro húngaro, cujas declarações sobre ciganos parecem extraídas de compêndios nazis. O ministro dos Negócios Estrangeiros português também não esteve presente, mas, sendo quem é, bem poderia ter estado. Quanto a Marcelo, pode ser acusado de tudo o que quiserem, mas não pode ser acusado de ser mal informado. Por isso, o seu silêncio à data de hoje é preocupante.

Marcelo terá visionado a criminosa reunião de ministros de 22 de abril, chefiada por Bolsonaro, vulgo covil dos infames. Pode ser que outros presidentes do mundo não compreendam o que foi dito nessa reunião. Marcelo compreende.

Marcelo também sabe que Bolsonaro fez ameaças de morte aos membros do Supremo Tribunal Federal.

Marcelo sabe que Bolsonaro falou em manifestações que pediam uma ditadura militar e o encerramento do Congresso. Sabe que em nenhum país democrático um cidadão poderia sequer se candidatar às eleições presidenciais tendo feito a apologia da tortura e lamentando os poucos mortos de um regime ditatorial. Marcelo recebe informações sobre a impunidade da polícia no Brasil. Cinco George Floyd por dia. bMarcelo sabe que Bolsonaro luta pelo descrédito da democracia. E que contra ele existem mais de 30 pedidos de impeachment. Quem cala, consente.

O que poderia fazer o Presidente da República? Poderia muito. Poderia liderar um movimento de pressão internacional. Poderia e deveria convocar o embaixador do Brasil e pedir explicações – nem que seja considerando a comunidade portuguesa no Brasil. A diplomacia não é apenas um entreposto para vender vinhos e azeite.

Além do Presidente, através do seu governo e dos seus deputados, Portugal pode apresentar moções condenatórias no Parlamento Europeu, no Conselho da Europa, na ONU.

Isto seria próprio de um país irmão.