Arquitectura e crime

(António Guerreiro, in Público, 04/06/2021)

A estrutura de metal e vidro, dita “marquise”, que Ronaldo mandou implantar por cima da sua penthouse, no topo do edifício de 13 andares, em Lisboa, projectado pelos arquitectos José Mateus e Nuno Mateus, tornou-se imediatamente matéria para discursos jocosos, mas é um assunto muito sério. Só começa no entanto a ser sério se deslocarmos a questão da riqueza e do desejo de luxo ostentado por Ronaldo (coisa, aliás, bastante inocente) para o estetismo — a anestesia da arquitectura — e a exacerbação autoral de quem desenhou o edifício.

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Não falarei do edifício em si, da sala de cinema, do spa, do hall de entrada, das piscinas, dos puxadores das portas, dos corrimãos, do primor de todos os pormenores, dos quais José Mateus falou com o orgulho de mestre de uma bela obra que recita aos que têm o privilégio de aceder ao interior: “Vejam como sou belo e requintado”. Exclusivo for the few. O problema começa aqui e, como é óbvio, não se limita à Rua Castilho, 203, nem ao atelier de arquitectos ARX. Até seria injusto tomá-lo como exemplo se não fossem as palavras cândidas dos próprios arquitectos, para quem o pecado, que dantes morava ao lado, se veio instalar mesmo por cima. Uma “conspurcação ignóbil da nossa arquitectura”, disseram eles. Certamente com razão.

Mas há uma outra razão que devia estar acima dessa. E essa serve não para interpelar os donos dos apartamentos, mas os arquitectos, urbanistas, vereadores e presidentes que nos espoliam a cidade que é de todos nós. Ouvindo as reacções de José Mateus à vilipendiada “marquise” que veio “atropelar” a “cultura” e as “autorias”, até parece ele que vive num empíreo e que só tem de responder perante quem lhe encomendou a obra e em nome de uma razão estética, de uma abstracta beleza. Ora, embora isso seja uma regra a que já estamos habituados, há momentos como este em que apetece dizer que essa regra é um atropelo ignóbil ao nosso direito à cidade. Os arquitectos daquele edifício sabem seguramente o que significa a verticalização da arquitectura, a transformação do skyline da cidade para oferecer a uns poucos “um conceito único de exclusividade” (como se diz no site do edifício). Entre essas exclusividades, está a paisagem, da qual este e muitos outros edifícios como este se apoderam.

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Se lermos a descrição do edifício, percebemos que ele foi concebido segundo o modelo urbano a que os urbanistas americanos chamam gated comunities, isto é, comunidades fechadas, completamente separadas da cidade, sem alimentar a vida que lhe corre nas veias, de onde esta se oferece apenas como uma vista panorâmica. As gated communities que se formam nos bairros mais ricos das cidades são “privatopias”, isto é, espaços utópicos privados, para utilizarmos um conceito introduzido por um estudioso americano de política urbana, Evan McKenzie. São atentados à cidade.

Os arquitectos têm todo o direito de reivindicar a sua liberdade autoral, mas na medida em que conformam a nossa cidade e determinam o seu destino, eles não podem sentir que só têm de responder à razão estética e à exigência dos clientes que de um modo geral não coincide com a nosso direito a uma cidade habitável e mais produtora de uma cultura que animou o “espírito” das grandes cidades.

O “atropelo estético” perpetrado no topo do belo edifício desenhado por José e Nuno Mateus é um crime menoríssimo quando comparado com a arquitectura anestesiante que desconhece completamente a responsabilidade profissional de um arquitecto, a questão ética que lhe é inerente. Este vínculo não é de agora, vem de Vitrúvio. A bienal de arquitectura de Veneza, no ano 2000, tinha como título Less Aesthetics, More Ethics. Esta questão da ética da arquitectura não é certamente dos temas mais frequentes e sempre que surge provoca polémica. O grande historiador de arte italiano Salvatore Settis, que chegou a ocupar um cargo oficial relacionado com o património, defendeu há alguns anos que se devia consagrar na Constituição dos países o direito à paisagem. E, por entender que os arquitectos deviam estar deontologicamente obrigados a defendê-la, propôs, em jeito de provocação (bastante polémica, aliás) que eles deveriam fazer um “juramento de Vitrúvio”, por analogia com o “juramente de Hipócrates” a que os médicos estão obrigados. Tal como um médico não pode matar o doente, o arquitecto não deve matar a paisagem nem deve contribuir para saquear a cidade. Mas isto, não percebem os autores do “Castilho 203”.


O prédio Coutinho – ou o fascismo é um fungo

(José Gabriel, 24/06/2019)

Prédio Coutinho

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Agudiza-se e caminha para o seu termo a situação do Edifício Jardim (mais conhecido por prédio Coutinho) de Viana do Castelo. Pelo seu braço/metástase Vianapólis, a autarquia local e o governo – ou governos, a coisa arrasta-se desde o tempo de José Sócrates Ministro do Ambiente – conseguem, enfim, mostrar que a cultura fascista de poder continua a ter força de lei e vive, qual fungo recorrente, no coração e no cérebro de muitos governantes.

A justificação para a demolição do prédio é puramente estética, de gosto. Poluição visual, dizem eles, sobre um edifício projectado por arquitectos, licenciado e perfeitamente legal, cujos andares foram comprados por cidadãos com as poupanças de uma vida. A estética do edifício é discutível? Todas o são. Por este critério, metade do edificado deste país seria demolido. E nem falo da praga dos clandestinos que por aí cresceram como cogumelos, sobretudo entre as décadas de 60 e 80 – há prédios da dimensão de Edifício Jardim que, clandestinos, cresceram nas barbas dos autarcas, do Estado, muitas vezes com cumplicidades mais ou menos conspícuas e ganhos mais ou menos duvidosos – que nem sombra de arquitecto viram, nem amostra de vistoria tiveram.

E ninguém os quer demolir, quanto mais não seja por respeito para com os moradores, por sensibilidade social, pela singela constatação de que os cidadãos que neles vivem não têm de passar a vida a pagar erros alheios de tempos idos. Isto, mesmo que tenha havido ilegalidades passadas, quanto mais num edifício perfeitamente legal cuja demolição não passa de um devaneio estético ditado por critérios datados. Porque fica mal, tia Batata, c’orror. 

A operação é acompanhada pela brutalidade que as imagens e as notícias mostram, com agressão a moradores idosos, que ali habitam há décadas. O último recurso das “autoridades”, perante a recusa de abandono de alguns deles, é a do corte da água e da luz. Toda esta história tresanda. Este capricho – porque é disto que se trata – vai, além do mais, custar milhões ao erário público. Sim, somos nós que vamos pagar esta alarvidade e, se a situação das vítimas não comove todos, esperemos que este facto sensibilize a maioria. 

Haverá quem conteste a classificação usada nas primeiras linhas. Mas lembro-vos que uma cultura fascista de poder vem, não raro, em casos como este, acompanhada de um discurso estético muito depurado e dotado de aparentes boas razões. E se quisermos visitar a história do fascismo português encontraremos, mesmo no que diz respeito ao património classificado, atitude semelhante. As reconstruções de edifícios civis e religiosos respeitando uma suposta pureza original que nunca existiu, a generalizada implantação de prótese dentárias e absurdos acrescentos nos castelos, a demolição da Alta de Coimbra porque o tecido urbano lá existente era esteticamente duvidoso e ficava ali bem ali uma Universidade num território “purificado” de contaminação popular e dotado daqueles abomináveis edifícios de falsa grandiosidade de que o regime se orgulhava não sei porquê, são muitos do interminável rol de exemplos. 

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Se me perguntam se gosto do Edifício Coutinho responderei que não, que não gosto. E que, no tempo em que foi aprovado, os problemas de volumetria já seriam evidentes. Mas não é nada disto que está em causa. O prédio foi aprovado nos termos da lei e, quiçá, ao tempo, com entusiasmo pela modernidade da posposta. Os moradores investiram as suas poupanças com confiança, habitaram e, durante estes anos, fizeram da sua casa a manutenção que é visível. Trinta anos depois, são vítimas de um bando de prepotentes idiotas inspirados por um devaneio de gosto a ser pago com o sofrimento de uns e o dinheiro de todos. Nem o facto de os tribunais se terem pronunciado é atenuante; eles limitam-se a aplicar uma legislação que é, ela própria, iníqua. Nem sempre o que é legal é legítimo e, menos ainda, justo. 

E, por favor, protagonistas governantes envolvidos, não me faleis em “interesse público”, pois não fazeis ideia do que isso é. Usais essa expressão justificativa como Salazar usava o “interesse da Nação”. Deixai as pessoas em paz.


A cidade e a metrópole

(António Guerreiro, in Público, 15/03/2019)

António Guerreiro

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De todas as grandes cidades europeias nos chegam notícias de um problema comum: a falta de casas. Em resumo: muita procura, pouca oferta, aumento vertiginoso dos preços, os habitantes a serem expulsos para periferias cada vez mais longínquas. Por razões nada estranhas a este fenómeno, a distinção entre a cidade e o campo deixou de fazer sentido porque fora da esfera urbana já não existe quase nada. Na melhor das hipóteses, é paisagem para ser olhada à distância ou visitada nalguns dos seus recantos por quem quer viver a ilusão de que faz uma viagem ao país dos arquétipos. Mas, na maior parte, é o deserto que cresce. Aí, há vilas e aldeias que vão ficando despovoadas, muitas casas vazias — uma história de fantasmas para adultos temerários. Aquilo a que se chama hoje o interior não é senão a parte do território que fica fora das áreas metropolitanas.

Torna-se então necessário fazer uma distinção entre cidade e metrópole: a cidade tem o carácter estático de espaço residencial com espessas camadas de história, passível de ser lida como um palimpsesto. Remete para a a ideia de comunidade política, herdeira da polis grega, e a sua história está ligada aos grandes sujeitos colectivos, aos grandes empreendimentos da vida artística e intelectual. Foi nela que nasceram os grandes projectos.

Aquilo a que chamamos hoje, com alguma imprecisão, “cidade histórica” é esta cidade que já não existe, foi transformada em museu e em espaços de acolhimento e diversão para os visitantes. O que existe e não pára de crescer é a metrópole (ao contrário da cidade antiga não tem muros, não há uma marca dos seus confins), atravessada por muitas linhas de fronteira e codificações sociais e culturais. A metrópole é a cidade generalizada. Rem Kolhaas, um famoso arquitecto holandês, chamou-lhe “cidade genérica”. É a cidade que está por todo o lado, mas é também o que resta depois de vastos pedaços da cidade material passarem para o espaço virtual, para o ciberespaço. Quem hoje sai de uma metrópole e vai viver para “o interior” quase sempre continua a habitar essa cidade que se estende no espaço virtual. Por isso é que algum movimento de deslocação para esse tal interior, por parte de gente aventureira, romântica ou fatigada, não tem quaisquer efeitos na paisagem humana nem no povoamento do território. Uma cidade histórica como Évora, a pouco mais de uma hora de distância de Lisboa, é um museu não por privilégio, mas por condenação: dentro dos muros tem uma vida contemplativa, fora do tempo, que proporciona ao visitante experiências singulares (diferentes daquelas que se têm, por exemplo, numa cidade histórica italiana); para além dos muros é uma terra de ninguém, nem cidade nem campo, atraída pela metrópole — Lisboa — que estende os seus braços para além dos limites visíveis, sonhando fazer parte da “cidade genérica”. A cidade genérica é ainda uma cidade? Não, por isso é que Rem Kolhaas fala de junkspace, de substâncias urbanas que são como detritos. E, no final de um ensaio–manifesto sobre a cidade-lixo, ele imagina que o fim da história da cidade está a desenrolar-se ao contrário, como a fita de um filme a rodar para trás. Escreve ele: “O centro esvazia-se, as últimas sombras deslizam para fora do plano […], o silêncio torna-se agora mais denso por causa do vazio […] Nós respiramos… Acabou. Eis a história da cidade. A cidade já não existe”. Aquilo a que ele chama cidade genérica é a cidade ilimitada. A cidade genérica não tem arqui-tectura, isto é, não responde a nenhum fundamento, a um princípio (archè) construtivo, nem tem aspirações ideais ou utópicas. A cidade sem arquitectura, pura espontaneidade da urbanização, é uma cidade sem confins. O espaço urbano sem arquitectura é o junkspace. Ora, a cidade, por oposição à metrópole ilimitada, representou o espaço por excelência  do conflito e da ambivalência; ela deve a sua sobrevivência ao de-lirare: isto é, ao facto de introduzir confins, limites (lirae) na fundação da urbs. A cidade tende a delirar. Em 1995, Rem Kolhaas deu um curso em Harvard, para o qual quis que o programa se chamasse “Centro de estudos do que outrora se chamava cidade”. A administração da universidade não gostou da sua proposta porque era demasiado radical.