A vida não é bela

(João Quadros, in Jornal de Negócios, 14/04/2017)

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Sean Spicer, secretário de Imprensa e Director de Comunicações do presidente Donald Trump disse em relação a Bashar al-Assad: “Nem Hitler desceu tão baixo ao ponto de usar armas químicas.” Dizer “nem Hitler chegou tão baixo” é uma frase difícil de encaixar, seja qual for o argumento. Tirando um: nem Hitler chegou tão baixo em termos de bigodes estapafúrdios, como o Dom Duarte de Bragança, é complicado arranjar um assunto onde alguém possa ter chegado mais baixo que o Adolfo. Especialmente quando o assunto é genocídio com uso de armas químicas. Até o próprio Hitler ficaria chateado, depois de tudo o fez – “ainda nem oitenta anos passaram e já fazem de mim um monstro de segunda.”

Sean Spicer mais tarde viria pedir desculpa e corrigir. Argumentou que se explicou mal, que o que queria dizer é que Hitler não usou armas químicas no seu povo, esquecendo-se que milhares de judeus eram cidadãos alemães. Além de ser mentira, a frase é extraordinária porque transmite a ideia de que Hitler não gazeou o seu povo, só outros seres humanos (o que não é tão grave porque têm guelras), nomeadamente, os grandes aliados e amigos dos EUA , o povo de Israel…Ups!

O secretário de Imprensa de Trump na sua ânsia de se desculpar vai tentando segurar as peças de dominó, mas vai derrubando-as umas atrás das outras, e acaba a dizer que é diferente do Bashar al-Assad porque ele bombardeou gente com químicos e o Hitler levava as pessoas para, e cito – Centros de Holocausto – que, sendo uma designação nova para aqueles locais de horror, nem sequer podemos considerar um eufemismo de Campos de Concentração. Sem saber o que era, se me perguntassem, prefere ir para um campo de concentração ou para um centro de Holocausto? Assustava-me mais a segunda. Nestes pormenores a máquina de propaganda de Hitler era melhor que a de Trump.

Ver o porta-voz do presidente da nação mais poderosa do mundo dizer que é diferente do que fez Assad, porque “Hitler levou-os para o centros de Holocausto” e não os bombardeou, é uma espécie de versão cínica do “A Vida é Bela”. Tentar arranjar algo de menos desumano do que fez Hitler, em comparação com outro ditador assassino, dá nisto. Nesta versão adocicada do Holocausto nazi, feita por Sean Spicer, Anne Frank, afinal, só sofria de agorafobia.

“Hitler nunca usou armas químicas e não há aquecimento global”, eu podia gostar de viver neste mundo do Trump. Ficava mais leve. Não só o passado era menos pesado como o futuro menos complexo. Mas não é isso que sinto.

Toda esta suposta ignorância histórica é assustadora porque pode explicar muita coisa. Ficamos com a noção que esta gente percebe tão pouco da Segunda Guerra Mundial que, provavelmente, não tem problemas em causar uma Terceira.

TOP 5

Descer tão baixo

1. PS e PSD chumbam exoneração do Governador do Banco de Portugal – tão queridos. O PS se calhar pensa que ainda é o Constâncio.

2. Dijsselbloem: “A reacção de Portugal também foi chocante” – era 20.000 volts naqueles pequenos testículos para ver o que é chocante.

3. Moradores de Carnide arrancaram parquímetros da EMEL durante a noite – Arrancar um parquímetro, escrever um livro e fazer um filho.

4. A ex-ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque vai ser a cabeça de lista do PSD à Assembleia Municipal de Almada – finalmente Maria Luís tem hipóteses de atingir a meta dos 2,7%, como se tinha comprometido com Bruxelas, aquando do défice de 2015.

5. António Costa quer União Europeia rapidamente unida para enfrentar a ameaça do terrorismo – e depois ficávamos com metade do turismo?! Tem juízo.

A nova crise de Cuba… na Síria ou na Coreia do Norte?

(Ricardo Cabral, in Público, 12/04/2017)

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Afigura-se-me, ao concluir este texto, na terça-feira ao fim do dia, que estamos a viver, sem nos apercebermos, dias tão perigosos como os dias da crise de Cuba.

A reviravolta de Trump, ao ordenar um ataque com mísseis cruzeiros à Síria na passada quinta-feira, no dia em que jantava com o presidente chinês, surpreendeu todos os observadores. Trump que tinha prometido uma aproximação à Rússia, reagiu (ou parece ter reagido) a quente a um ataque com armas químicas, cuja autoria atribui ao presidente sírio, Bashar al-Assad, com base em análise dos seus serviços de informação.

A reacção dos EUA foi muito rápida, sem esperar a confirmação “independente” da autoria do ataque com armas químicas. Trump está sob enorme pressão em Washington desde que foi eleito. Com o ataque à Síria recebeu, pela primeira vez, apoio daqueles que o criticavam, uma ala importante do partido republicano liderada por John McCain e Lindsey Graham, e uma parte do partido democrata, próxima de Hillary Clinton. A imprensa mainstream dos EUA pela primeira vez apoiou o presidente, com alguns comentadores, como Fareed Zakaria da CNN, a considerar que agiu  como (um verdadeiro) presidente. O ataque parece ter beneficiado Trump nas sondagens.

Muitos acreditam, por isso, que o ataque de Trump foi sobretudo determinado por questões de política interna, i.e., para apaziguar os seus opositores em Washington DC. No entanto, com esta decisão, Trump quebra mais uma promessa eleitoral, a de acabar com o papel dos EUA como polícia do mundo e com os numerosos conflitos militares em que os EUA está envolvido, promessa essa que levou um segmento dos conservadores, mas também da ala esquerda do partido democrata, a votar em Trump, em detrimento de Hillary Clinton que consideravam como “neo-con”.

O ataque sinaliza uma maior intervenção militar dos EUA na Síria, onde a Rússia está fortemente comprometida com a defesa do governo de Bashar al-Assad.

No “jogo da galinha” de quem cede primeiro, Rússia e países  aliados (Irão e Síria), traçaram uma linha na areia, encurralando-se deliberadamente a um canto, com o objectivo de forçar os EUA a ceder. A resposta da Rússia, indicando que responderá a toda e qualquer agressão ao governo sírio, é perigosa. A Rússia poderá sentir que não pode recuar e os EUA poderão ser tentados a não se deixar intimidar, como dão a entender as mais recentes declarações do Secretário da Defesa dos EUA.

Putin já avisou que os rebeldes estarão a preparar “falsos” ataques com armas químicas. Espera que Trump responda de novo do mesmo modo?

O presidente da Rússia terá muitos defeitos mas é inteligente e possui grande experiência política. Putin estará consciente do desastre que é um conflito armado com os EUA, mas será capaz de recuar? Enquanto que os EUA se confrontam com a liderança de um dos presidentes mais instáveis e menos previsíveis de tempos recentes, recém-eleito, sem qualquer experiência governativa.

No extremo oriente, a situação na Coreia do Norte também é muito delicada, embora aparentemente aí a China ameace intervir “ao lado” dos EUA, i.e., contra a Coreia do Norte.

Todos sabem que este é um jogo que não pode ser ganho por nenhuma parte e, por isso, o melhor mesmo é não jogá-lo. EUA, Rússia e China fariam bem em procurar reduzir a tensão em relação nestes dois focos de potencial conflito entre as grandes potências, que, como se sabe, são bem mais fáceis de começar do que de concluir.

E o Mundo agradeceria…

Agora, Donald Trump já é bom?!

(Pedro Tadeu, in Diário de Notícias, 11/04/2017)

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Quando vejo os dirigentes desta querida Europa Ocidental, suposta paladina dos direito humanos, da liberdade e da paz, aplaudirem unanimemente o bombardeamento norte-americano contra instalações militares, governamentais, na Síria, para penalizar uma utilização de armas químicas, concluo: “Não aprendemos nada.”

Quando, pela enésima vez, vejo repetida a cena da crónica subserviência europeia, acrítica e impotente, às ações intempestivas da política norte-americana (embora coerentes com uma estratégia política de domínio do Médio Oriente), exclamo: “Pois… não aprendemos nada…”

Quando vejo tantos aplausos a Donald Trump, dados pelas mesmas pessoas que na véspera acusavam o presidente norte-americano de ser um perigo para a democracia, chego à desesperada conclusão: “Realmente, bolas, não aprendemos nada!”

Não aprendemos quando os norte-americanos juraram que Saddam Hussein tinha armas de destruição maciça, uma comprovada mentira que justificou a segunda invasão do Iraque em 20 de março de 2003.

Agora aceitamos com entusiasmo, com base em informações imprecisas, a culpa do governo sírio (plausível, mas não comprovada) sobre a atrocidade em Khan Sheikoum, que matou 86 pessoas, 30 delas crianças.

Não aprendemos com as inúmeras notícias manipuladas que levaram a opinião pública europeia a aceitar a invasão do Iraque.

Agora aceitamos a parcialidade das informações sobre a guerra entre as forças de Al-Assad e os grupos da oposição, onde se misturam terroristas fundamentalistas islâmicos, realçando-se as atrocidades de um dos lados em guerra mas, com duplicidade, escondendo ou relativizando as múltiplas crueldades do lado oposto, como aconteceu, ao nível do escândalo, no final do ano, sobre os combates em Aleppo.

Não aprendemos sobre as consequências graves que se espalham pelo mundo quando os norte-americanos avançam para ações militares sem apoio da ONU.

Em 2003 o Canadá, a França e a Alemanha (vá lá!), para além da Rússia, opuseram-se ao ataque pedido por Colin Powell e George W. Bush às Nações Unidas, à espera da comprovação das acusações contra Saddam. Veja-se o que, desde aí, aconteceu ao Iraque (180 mil mortos e um país sem governo e sem economia) e a toda a região.

E veja-se, igualmente, como as repercussões laterais dessa ação conduziram à guerra e aos atentados terroristas do Estado Islâmico, ao desastre da intervenção europeia na Líbia, à própria guerra na Síria, entre muitos outros focos de conflitos, de mortes e de hordas de milhões refugiados.

Desta vez, Trump nem quis saber da organização liderada por António Guterres… E acabou aplaudido por todos menos a Rússia e a China… Como se consegue ver aqui um passo na direção da paz?

Achamos mesmo que o errático Donald Trump vai conseguir sozinho a paz que, ao longo de seis anos de guerra, 360 mil mortos e dez milhões de refugiados, chamou ao envolvimento direto uma dúzia de países, em apoio às várias fações em contenda, na retaguarda, em fornecimento de armas, em apoio logístico, em treino de combate e, até, no próprio campo de batalha?

Achamos mesmo que o tweeteiro/trauliteiro Donald Trump merece mais crédito no índice de sensatez política do que o autocrata Vladimir Putin?

Achamos mesmo que Donald Trump, o político antirrefugiados, deve liderar a política internacional do chamado mundo livre?

Pois se achamos isso é porque, de facto, não aprendemos nada.