Budarém, um aeroporto à nossa medida

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 23/06/2023)

Miguel Sousa Tavares

Navegamos entre o aeroporto de Budapeste e o imaginado futuro Aeroporto Internacional de Lisboa (AIL)… em Santarém. Estamos, pois, em Budarém, esse espaço de mentirinhas, explicações absurdas e embustes onde se consome a nossa actualidade e a nossa capacidade criativa. Já se sabe que os Falcon são uma tentação irresistível para os nossos governantes, como os restantes jatinhos privados o são para os futebolistas de luxo e os agentes dos futebolistas de luxo, que alimentam o Instagram com as suas fotografias a bordo, de taça de champanhe em punho e acompanhante de silicone ao lado, brindando aos deuses da fortuna, enquanto contemplam lá de cima a triste sina dos que cá em baixo os veneram e alimentam. Tudo explicado ou não explicado, porém, fiquei sem perceber o que foi o Falcon de António Costa fazer a Budapeste. Ver um jogo de futebol de uma equipa de Mourinho não cabe na cabeça de ninguém, de tal maneira o futebol das equipas de Mourinho se tornou soporífero há anos largos. Dar um abraço ao dito cujo, francamente, seria o abraço mais caro que os contribuintes já tiveram de pagar. Corresponder a um convite do presidente da UEFA, essa associação de bem-fazer, seria até suspeito, mesmo que em benefício de uma operação de lobbying a favor do Mundial de Futebol em Portugal e Espanha — esse projecto, como de costume, decidido sem consulta aos portugueses e aos contribuintes. Ir ao aniversário de Viktor Orbán ou entabular com ele quaisquer negociações secretas, pessoais ou de outra natureza parece muito estranho e de difícil explicação. O que terá, então, António Costa ido fazer a Budapeste? Que tal, por uma vez, dar-nos uma explicação franca, cara a cara e convincente? Ou então dizer que não tem nenhuma e pedir desculpa?

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Já mais claro e convincente foi João Galamba quando, num debate sobre mobilidade, disse aquilo que é óbvio para qualquer pessoa: que um aeroporto em Santarém é longe demais e não faz sentido nenhum para servir Lisboa. Tivesse isto sido dito por Pedro Nuno Santos e logo teríamos a imprensa a elogiar a frontalidade dele, mas dito pelo proscrito Galamba tornou-se em mais uma “polémica” que, logo no dia seguinte, o forçou a começar a recuar.

Ora, toda esta história do aeroporto de Lisboa-Santarém é uma coisa sem sentido, típica de um país incapaz de tomar decisões sobre o futuro e só possível de sustentar pela inércia de uma imprensa que engole o que lhe metem à frente, sem sequer se dar ao trabalho de pensar. Santarém foi uma coisa que uns senhores foram enxertar à última da hora na cabeça de Luís Montenegro, e ele, que, como sempre, não tinha ideia alguma sobre coisa alguma mas queria fingir que tinha, levou-a a António Costa, o qual, por sua vez, sempre disponível para adiar decisões, a chutou para uma tal Comissão Independente, à qual foi dado o prazo de um ano para propor uma solução final de localização do futuro AIL. Depois de seis meses verdadeiramente anedóticos, em que os portugueses foram todos convidados a indicar localizações ao gosto de cada um, a Comissão acabou a estudar 17 e depois a reduzir as hipóteses a seis. Aposto que não cumprirá o prazo de um ano e que, no final, não apresentará uma só solução, mas sim três ou quatro para o Governo escolher: aquelas que, desde sempre, se sabia serem as menos más ou mais viáveis. Espero, pelo menos, que Santarém não seja uma delas. Santarém fica a quase 90 quilómetros de Lisboa, quando a média de distância de um aeroporto às principais cidades europeias é de pouco mais de 20 quilómetros. O “argumento” de que demoraria apenas 29 minutos a transportar um passageiro do aeroporto até Lisboa de comboio deixa por explicar que linha e que comboios seriam utilizados, que por “Lisboa” se entende a periferia (Gare do Oriente) e que para tal seria preciso que à saída do aeroporto cada passageiro tivesse à sua espera um comboio pronto a partir imediatamente. Outro embuste que os defensores de Santarém vendem é que o seu aeroporto seria construído apenas com dinheiro de privados, embora até hoje nenhum tenha dado a cara. E, claro, quando dizem que custaria 1000 milhões de euros, ou estão a brincar ou demonstram a sua total incompetência para ter voz no assunto. Enfim, outra questão de que nem sequer se ocupam é a de saber se os milhares de trabalhadores que hoje estão na Portela, alguns deles desempenhando funções muito qualificadas, estariam dispostos a mudar-se para Santarém ou a fazer todos os dias 180 quilómetros para ir trabalhar.

Num país a sério, que quisesse andar para a frente e não perder tempo com questões inúteis, quem tivesse de decidir diria simplesmente: “Não precisamos de Comissão alguma nem de um ano para avaliar isto. Santarém é um absurdo, risquem.” Mas como chegámos a um ponto da política onde interessam mais discutir as “polémicas” sobre questões laterais do que a substância dos problemas, logo o PSD e a oposição saltaram em cima de mais esta e do saco de pancada Galamba. Já havia sido assim na CPI à TAP, em que, mais do que o futuro da empresa, o que interessou foi discutir a responsabilidade do ministro pelo episódio em que o adjunto roubou um computador e se o SIS foi ou não bem chamado. Aliás, bastou assistir a algum tempo das patéticas intervenções do deputado do PSD na Comissão, Paulo Moniz, para perceber a miséria política em que vegeta o maior partido da oposição: o homem até desconhece que, desde que o Estado Novo caiu, chama-se ao chefe do Governo primeiro-ministro e não presidente do Conselho! Um partido que exige a demissão de um ministro porque um seu colaborador despedido montou um escarcéu no Ministério mas que nomeia para duas Comissões Parlamentares um deputado arguido num processo-crime por suspeitas de corrupção e que regressou ao Parlamento à revelia do próprio presidente do partido! Um partido que diz e rediz que o Governo já não governa mas que foge de eleições antecipadas como a pior das soluções. Que jura que é alternativa mas que não apresenta ao país uma única que se conheça, seja relativa à Saúde, à Educação, à Agricultura, ao Ambiente, à Justiça, ao modelo de desenvolvimento, à TAP, à Efacec, ao que quer que seja… Porque há-de alguém votar no PSD se o PSD nem sequer quer ir a eleições e, se tiver de ir, não é capaz de dizer com quem se aliaria e quem excluiria? E, pior do que tudo, não sabe o que propor. O aeroporto de Lisboa em Santarém — é isso? Bom, sempre é uma ideia. Então assumam-na.

2 Deixámos de pensar o país e o seu modelo de desenvolvimento, agora e para o futuro. Entrámos num processo de deixar andar, enquanto as coisas se forem aguentando e houver dinheiros europeus que não nos obriguem a pensar demais. O modelo assenta largamente no sucesso da balança comercial graças a actividades intensivas: agricultura intensiva e turismo intensivo. O problema é que são actividades predadoras: do ambiente, da paisagem, da qualidade de vida nas cidades, dos recursos naturais disponíveis e das relações laborais. Sendo actividades intensivas, reclamam mão-de-obra intensiva, que não existe internamente. Para onde quer que nos viremos, com quem quer que falemos, escutamos a mesma reclamação: “Não há ninguém que queira trabalhar!” É um mistério perceber de que vivem os portugueses: do Fundo de Desemprego, do RSI, do Fundo de Desemprego mais biscates por fora? O facto é que nem grandes empreendimentos turísticos nem novas explorações agrícolas intensivas deixam de ser lançados todos os dias. Para satisfazer as necessidades, o país tornou-se importador de uma legião de mão-de-obra asiática semiescrava, que vai das vinhas do Douro aos olivais do Alqueva, passando pelas amêijoas do Tejo e as estufas de frutos vermelhos de Odemira. No mundo do trabalho, o grosso da factura é pago pelos jovens, “a geração mais qualificada de sempre”, que, não servindo para apanhar mirtilos nem ameijoas, vê reduzir-se cada vez mais o fosso salarial para os trabalhadores indiscriminados e fugir-lhe um futuro minimamente decente num país que investiu tanto na sua educação. Há gente no Governo, como o ministro do Ambiente, que fecha os olhos ao que não quer ver, e há gente, como a ministra da Agricultura, que delira com o sucesso deste modelo. E há o ministro da Economia, que bem se esforça para tentar explicar que o turismo não é tudo, mas que é desmentido e submergido pela realidade dos factos.

Não avançamos, caminhamos sem sentido, sem saber para onde vamos e onde estaremos daqui a 10, 20 anos. Talvez em Budarém, a terra de ninguém.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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8 pensamentos sobre “Budarém, um aeroporto à nossa medida

  1. Mais um que sabe criticar e se dispensa de solucionar.
    Um hub é um ponto de passagem ou de chegada?
    Para quem questiona o turismo intensivo não chega a Portela?

  2. O querer agradar a gregos e a troianos ,dá nisto ,um país cheio de indecisões. Não existe gente com coragem política para assumir ,aquilo a que vem. Mas o grave é que este é um problema mundial e não só nosso. Anda o mundo inteiro acender uma vela a Deus e outra ao diabo. Não vá a coisa correr mal de um lado e está-se ,safo do outro !!!

  3. 1 – Nem percebo, nem mesmo assim parece boa ideia, só que 30 min parece muito para a distância, mas aeroportos como Stanstead existem, e com tempos maiores.
    2- Não tem nada de mistério, é olhar para o número de pessoas empregadas e ver que nunca foi tão alto. Não faltam pessoas, faltam é escravos. Aqui como nos outros locais onde “ninguém quer trabalhar”.

  4. É uma loucura que a única opção possível para os nossos oligarcas seja sempre opor a república a sistemas autoritários, fascistas ou ditatoriais.
    Voltando à minha primeira frase, é uma loucura que possamos percorrer a nossa escolaridade e o nosso ensino superior sem nunca sermos confrontados com o funcionamento das instituições, mas sim com fórmulas gerais sobre o voto e o dever do cidadão.

    Toda esta tensão, este desejo de agir, merece resultar em algo tangível. Na minha opinião, o único poder disponível para as pessoas que poderiam fazer a diferença é escolher para onde vai o dinheiro. Assim, poderíamos negociar regularmente condições com este ou aquele grande grupo e recompensá-los boicotando os outros.

    Já agora, para pessoas como eu, que nunca gostaram de política, mas que se interessaram por ela por força das circunstâncias,acho que é altura de tomarmos consciência da nossa não-democracia para podermos trabalhar no sentido de criar um sistema que deixe de estar cativo da oligarquia , que serve interesses privados.

    Do meu ponto de vista, todas as características de uma ditadura estão agora reunidas.
    Quanto ao peso do voto popular, penso que todos percebemos, desde o Tratado de Roma II em 2005 (e depois de Lisboa em 2007), que era zero.

    Isto é o que devia ser ensinado em todas as escolas…. ah sim mas se as pessoas fossem educadas e percebessem o que se passa…. os nulocratas não teriam poder. O pior é que estes mesmos mecanismos podem ser encontrados em certas empresas e não apenas a nível estatal. Nunca tivemos tantas formas de nos informarmos e educarmos, e tantas formas de nos desinformarmos e não nos educarmos. Mas até quando? No início das próximas guerras climáticas, isto não é tranquilizador. O conhecimento pode muito bem ser o braço armado da democracia, mas o homem continua a ser o pior inimigo do homem.

    Em suma, mais vale prepararmo-nos para a chegada do Pai Natal.

    Quando falo sobre isto, chamam-me idiota, porque penso e encontro falhas no sistema. Não posso acreditar. No entanto, tinha a certeza de que outros já tinham pensado nestas coisas antes de mim.

    Vou fazer os meus trabalhos de casa e lê-los, mas entretanto citá-los.
    Os meios de comunicação social são tão bons no seu trabalho que tudo o que se pode fazer hoje em dia é confiar em argumentos de autoridade. Isso também é incrível.

    Todos os dias assistimos ao fracasso da democracia representativa, que é uma burla… bem, temos de ser honestos, a burla é proporcional à ética democrática dos eleitos… se estes estiverem verdadeiramente preocupados e preocupados com a vontade do povo (e a sua felicidade), pode funcionar. Num sistema neo-liberal, obcecado com o enriquecimento e a monopolização, as rendas e os privilégios, é dar todo o poder a uma horda de vampiros.

    A sua existência significa que, desde o início, há abuso de poder e sobrecapitalização do processo. É disfuncional prever um processo de oposição ou de neutralização… quando uma lei é promulgada, deve ser validada pela vontade do povo, ou seja, pela sua maioria, que representa logicamente (e matematicamente) o interesse geral. Isto justifica-se: quanto mais a maioria do povo estiver satisfeita (pela justiça, pela fiscalidade, pela repartição e equilíbrio das riquezas), mais é potencialmente possível acabar com as desigualdades ou os abusos.

    Depois disso, todos estes sistemas de governação são vestígios de um pensamento obsoleto e pouco adaptado aos critérios das nossas sociedades modernas (nomeadamente em termos de educação e de capacidade de se informar e formar) devem ser denunciados pelo que são: formas de tirania organizada nas mãos de manipuladores e sofistas, sem ética nem moral. Oligarquia, sim, mas também plutocracia, porque a verdade é que o que domina atualmente não só em Portugal mas todo o planeta é o domínio de uma economia regida pelo dinheiro, pelos seus fluxos e pela sua criação.

    O consumismo também desempenha um papel importante no parasitismo do pensamento democrático e político e, a este respeito, devemos também salientar e ter em mente o vazio ideológico em que as nossas sociedades de consumo se estão inevitavelmente a perder. O que é que perseguimos como objetivo coletivo, para além de nos organizarmos individualmente para o prazer pessoal, com a consequente injustiça social que sempre se seguirá?

    Sem alterar o sistema eleitoral, uma proposta seria a introdução de uma disciplina nas nossas escolas, a partir do quarto ano, para educar politicamente os jovens. Quando digo educar, quero dizer equipar os jovens para compreender, descodificar e desarmar o discurso político. A arma actual e preferida das elites pseudo-representativas é sempre abusar do sagrado (um reflexo monárquico, se é que existe algum), invocando a democracia, mas também a República, a Liberdade e o resto das instituições com as suas sublimes letras maiúsculas… É preciso dessacralizar a política, é preciso deixar claro que todos os sistemas são comuns e não divinos. Há algo de angustiante, mas também de repulsivo, em ver a energia que se gasta na defesa de sistemas corruptos com o único argumento da necessidade imperiosa de os preservar… mesmo que só criem desgraças e injustiças.

    Há anos que andamos a ouvir falar de democracia. Houve até quem dissesse que “estavam a fazer guerras para levar a democracia ao Iraque e ao Afeganistão”, quando quem disse isso provavelmente nem sequer tinha democracia em casa!
    Sem nunca ter viajado para os Estados Unidos, qualquer pessoa pode constatar rapidamente que os primeiros, ou seja, os presidentes, são todos oriundos de famílias no poder: Bush pai e Bush filho, o homem Clinton e a sua mulher que quase foi presidente, etc…

    A democracia e a realeza são, portanto, sistemas infames para toda a gente! A realeza é apenas um pouco pior, mas se tivéssemos de os classificar de 0 a 1000 pontos, eu daria -750 (menos 750) pontos à realeza e menos 500 pontos à democracia.
    Por outras palavras, estes sistemas nem sequer conseguem obter o ponto 0, que é o ponto de neutralidade em relação a todos!

    Se quiséssemos realmente ouvir as pessoas, deveríamos começar por apresentar uma pessoa entre 5 ou 10 pessoas.
    Porquê 5 ou 10 pessoas? Porque é a dimensão humana onde podem surgir 1 ou 2 ou mesmo 3 líderes.

    A partir daí, se dividirmos, por exemplo, um país com 100 milhões de habitantes por 10, teremos 10 milhões de deputados ou representantes do povo.
    Obviamente, os representantes devem ser substituíveis e, se necessário, no mesmo dia! sem esperar 4 anos! O mesmo se aplica ao presidente ou aos ministros ou a qualquer outra pessoa que esteja “à frente do Estado”!
    O objetivo, como é óbvio, é também que um povo trabalhe em prol dos interesses do seu país! Mas também não esmagando os interesses dos outros povos e países da Terra!

    E é essencial para a compreensão do povo no que diz respeito à sua emancipação política do pólo oligárquico dos detentores. Sim, é muito claro, eleger e, portanto, delegar não é a capacidade do povo de dirigir, de fazer leis. É apenas uma questão de deixar e entregar a outros, por mais soberanos que sejam. Passar da democracia representativa à democracia direta é uma mudança de paradigma que levará tempo, porque é preciso tempo para ser um verdadeiro cidadão da cidade. No entanto, é um futuro preferível, aliás indispensável, se quisermos enfrentar o futuro que o capitalismo nos reserva (que continua a ser ilimitado), que não reflecte mais do que a monopolização de todas as riquezas existentes, presumíveis e futuras, por um número muito reduzido de seres humanos nossos semelhantes, que são, afinal, bastante separatistas sociais e culturais. É por isso que um rico, sistemicamente (capitalismo), causa uma pegada de carbono maior do que todos os pobres da Terra.

    • #chelsea_clinton (filha dos ditos cujos) formanda na mckinsey & company e new york university wagner (master of public administration)

      #mpa é um grau profissional para líderes nos sectores público e sem fins lucrativos.

      Os currículos combinam cursos tradicionais de negócios e finanças com cursos de políticas públicas para preparar os estudantes para ocuparem cargos de alto nível

  5. Eu, que sou uma pessoa razoável, acho que o novo aeroporto de Lisboa devia ser em Marrocos. Burkina Faso também não seria má ideia.

  6. O Miguelito sempre confuso, sempre a confundir os incautos. Então, os patrões deste país de agricultura e turismo intensivos só querem mão de obra “semiescrava” e o lapardo ainda se espanta que “não haja quem queira trabalhar”?
    Faz lembrar aquela da semana passada, dos portugueses saudáveis e em idade de trabalhar que, na esplanada, se atrevem a beber minis, em vez de ir apanhar mirtilos!
    Quem nunca se sentou à mesa do Gigi a escrever charlas para o Expresso, que atire a primeira pedra…

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