A falência total do projecto transatlântico

(Por Ricardo Nuno Costa, in Geopol.pt, 15/03/2023)

Três mega-falências no espaço de 5 dias: O que se pode esperar? – Uma dobragem da aposta!


Os acontecimentos mundiais das últimas semanas evidenciam a falência total do projecto transatlântico que vem cambaleando em redor de um sistema dólar-euro-libra sem real sustento físico, em virtude de um mundo multipolar que já nasceu e que começa a dar os primeiros passos ancorado na riqueza de bens tangíveis. Tudo isto terá consequências civilizacionais não vistas pelo menos desde o advento da Indústria há 200 anos. Infelizmente para nós na Europa, que fomos metidos numa relação tóxica e subalterna, na qual somos usados como peões para os jogos geopolíticos maquinados pelo elo forte, do outro lado do Atlântico.

Os Estados Unidos, esse país que deve a si mesmo mais de 130% do seu PIB sem incluir os derivados financeiros estimados em mais do dobro daquela quantidade, ao invés de começar a fazer os trabalhos de casa para sanar a sua economia, continua a dobrar apostas, em conformidade com o que as suas classes dirigentes têm baseado a sua economia de casino nos últimos 50 anos.

Jerome Powell, o presidente da FED a quem Biden deu carta branca para “fazer o que tenha que ser feito” para parar a tendência inflacionária inexorável, voltou a subir as taxas de juro a semana passada, já em 4.75%. Novas rondas de aumentos deverão colocar a taxa base em não menos de 6% até o final do ano. Um pesadelo para quem contraiu dívidas, e uma situação incomportável para os detentores de títulos de tesouro americanos, em especial o Japão e a China.

Pequim já não fala manso acerca dos jogos desestabilizadores dos EUA no Pacífico. Ontem um dos porta-vozes do MNE chinês acusou os EUA, o Reino Unido e a Austrália de terem ido «longe demais num caminho errado e perigoso» com o recente acordo de fornecimento de 8 submarinos nucleares a Camberra, feito à revelia do princípio da indivisibilidade da segurança e conduzindo uma corrida armamentista na região. Já antes avisara que não toleraria que Washington se metesse nos temas internos chineses, leia-se na ilha de Taiwan.

Enquanto isso, nos EUA esfumaram-se três bancos, entre os quais o Silicone Valley Bank, a segunda maior falência bancária do país e a maior do sector das novas tecnologias. A falência do Signature Bank, banco comercial dedicado sobretudo a investimentos, créditos imobiliários, hipotecas e criptomoeadas, é a terceira maior da história dos EUA. E o Silvergate Bank, mais conhecido pela sua ligação ao mercado de criptomoedas e à também recentemente falida FTX do grande aldrabão até então apresentado como um “exemplar jovem empreendedor de sucesso da era digital”, Sam Bankman-Fried. Três megafalências no espaço de 5 dias!

Estaremos então ante uma crise financeira de maior alcance que qualquer anterior, que alia o pior da bolha “dot com” de 2000 à crise de 2007-08 com origem no sector imobiliário dos EUA, replicada fortemente na Europa. Começou a queda em dominó esperada, e já anunciada por quem sabia, antes do episódio “coronário” inventado logo após a grotesca e muito pouco noticiada participação da FED na crise dos empréstimos “overnight”, em setembro de 2019. Até onde vai alcançar a explosão do capitalismo financeiro? Estejamos alerta!

Entretanto a diplomacia chinesa juntou à mesa dois dos maiores produtores de petróleo do mundo, Irão e Arábia Saudita, que reataram relações após mais de uma década de incompatibilidades em redor das primaveras árabes delineadas em Washington e Londres. É o virar da página em relação àquele hediondo episódio que desestabilizou o Médio Oriente, com sérias consequências também para o equilíbrio demográfico da Europa.

E o nosso continente? O chanceler Scholz viajou há um par de semanas a Washington envolto num grande secretismo, dias antes de que nos EUA e Alemanha os grandes meios de comunicação lançassem duas versões alternativas e sumamente inverossímeis dos atentados terroristas do Nord Stream, que lavam as mãos de Biden e dos EUA daquele grande constrangimento na Alemanha e Europa.

Soube-se mais tarde que o octagenário da Casa Branca deu também ordens inequívocas para que Scholz hostilizasse a China por meio de sanções. Não bastasse a Alemanha ter caído na grande disparate de entrar numa guerra económica com o seu principal fornecedor de energia em prol da sua subordinada relação transatlântica, e agora assoma-se ao fatal equívoco de romper laços com o seu maior parceiro económico, com o qual tem uma balança comercial positiva.

Quando Biden foi informado que a China estava muito adiantada na tecnologia de microchips no Verão passado, rapidamente ameaçou sancionar todo o tipo de fornecedores europeus àquela indústria chinesa, garantindo então no seu Twitter que «o futuro da indústria dos microchips vai ser feito na América!». Só a holandesa ASML terá perdido quase dois mil milhões de dólares em contratos com a China. Na limitada concepção exclusivista e hegemónica tipicamente anglo-saxónica de Biden, não há espaço para dois ou mais actores no domínio da tecnologia. Nem que para tal tenha que esmagar os interesses comerciais dos seus aliados.


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7 pensamentos sobre “A falência total do projecto transatlântico

  1. Penso que uma pergunta não é feita,: O que é que o sistema financeiro ainda nos reserva depois de nos ter mostrado que está a chegar ao fim do seu ciclo e que o seu colapso global é iminente?

    É claro que estamos a tentar prolongar a sua vida como uma fase terminal nos corticosteróides, tudo isto com a impressão de dinheiro, aumentos de taxas ou até mesmo com números de irregularidades para tentar manter a pouca confiança que ainda temos nele.

    Na minha humilde opinião, cheira-me a um impulso bem colocado para a chegada do euro, dólar digital, CBDC .

    O fracasso do Silicon Valley Bank marcou um importante ponto de viragem na história da indústria tecnológica. Anteriormente considerado uma das principais instituições financeiras de apoio à inovação e ao arranque de empresas, o banco foi atingido por uma série de acontecimentos imprevistos que acabaram por conduzir à sua destruição. Uma combinação de maior regulamentação, fraco investimento e concorrência feroz afectou gravemente a rentabilidade do banco. Os investidores perderam a confiança, levando a uma saída maciça de capital e deixando o Silicon Valley Bank numa situação financeira difícil. O fracasso evidenciou a fragilidade do sector e forçou outros agentes do sector a repensar as suas estratégias para evitar o mesmo destino.

    O Credit Suisse também está a explodir e, no entanto, não tem nada a ver com criptografia ou tecnologia. O problema, são eles que proíbem os bancos de ficarem sem dinheiro e obrigam-nos a comprar dívidas do Estado cujo valor desaba quando as taxas sobem sabendo que até os obrigaram a comprar dívidas a taxas negativas sim negativo!!! Conclusão forçaram os bancos a perder milhares de milhões para salvar os estados que estavam demasiado endividados e agora estão surpreendidos!!! E os mais expostos são os bancos europeus dos quais o Deutsche Bank e o Credit Suisse talvez se tornem o primeiro dominó…

    Agora, quando o Império entrar em colapso, o que irá acontecer às economias europeias que estão interligadas com o sistema do dólar?

    Podem ser feitas duas perguntas:
    Em relação ao Credit Suisse: A neutralidade política da Suíça em relação à Ucrânia desagradou certamente aos EUA. Daí a reação da SEC!
    Segunda hipótese: O dólar está a perder o seu estatuto de moeda de referência devido aos novos sistemas monetários que estão a ser criados pelo Brics. Para contrariar esta queda, os EUA têm duas soluções: as taxas, e causar a destruição das moedas europeias..

    Perunto-me muitas vezes sobre a recusa da Suíça em se envolver no conflito russo-ucraniano e as possíveis represálias…

    Este grau de malfeitorismo dos Estados Unidos que tentam exportar o seu fracasso financeiro para a Europa,e é por isso que o quadro que se pinta é de alto risco para os bancos centrais.

    Graças a engenhosos arranjos sistémicos, a alta finança conseguiu impor as suas necessidades, activamente apoiada pelos banqueiros centrais. Presas, as esferas públicas dos 4 cantos do planeta tiveram de resignar-se a solidarizar as pessoas com os chamados bancos SYSTEMIC ou demasiado grandes para falhar. Este foi um ponto de viragem na vida democrática e na existência dos assuntos públicos. Os bancos não foram à falência, mas os Estados e, com eles, as populações, sofreram desde então de uma pauperização cada vez maior. Ao validar a mutualização dos riscos dos grandes bancos e a privatização dos seus lucros, os dirigentes políticos minaram os fundamentos do Estado de direito” DEPOSSESSÃO Liliane Held Khawam

    • Que a invasão imperialista russa – trazendo a inflação, que aumenta juros e torna ruinosos os investimentos em obrigações a baixo juro – seja tema para um «ponto de viragem na história da indústria tecnológica», quando provavelmente será a tecnologia a decidir da resolução do conflito, são os mistérios da análise de ‘grande fôlego’!

      • Aumenta juros? Então pagamos aos técnicos para quê, se é automático? E que é que a tecnologia tem a ver com a produção, para a qual deixou há muito de haver dinheiro por ser mais barato importar, a bem do lucro do império? Em que é que esta tem impedido a necessidade de atirar até ao último ucraniano à força na destruição do seu próprio país?

    • Podia ser, mas não. Os maus investimentos do Credit Suisse são bem conhecidos, apesar da reputação se ter mantido, e têm sido bem investigados pelo FT, que não é inteiramente mau. E tanto não que a eurolândia correu a salvá-lo.
      E nada tem a ver com o SVB, trivialmente salvo, apesar de revelar contradições que deviam ser evidentes do neoliberalismo.

    • Sucesso no quê e para quem? E já que é inegável, para quê tanta violência a forçá-lo?
      Mas pode continuar tranquilo, não vai a lado nenhum, só aumentar a factura para a sua manutenção.

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