Entre todas as tempestades

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 28/10/2022)

Miguel Sousa Tavares

O acordo tripartido entre Portugal, Espanha e França sobre o gasoduto ibérico com destino à Europa é demasiado importante para descambar numa querela azeda entre o Governo e o maior partido da oposição, tornando a sua compreensão inalcançável pela comum das pessoas. Sabemos que, por enquanto, tudo não passa de um acordo de princípio, o que, todavia, não exime o Governo do dever de o explicar ao menos nas suas linhas gerais e nas suas consequências. Por outro lado, as reacções histéricas, do tipo de quase traição à pátria, tão rápidas quanto previsíveis, da parte de Paulo Rangel também nada ajudam a entender o que está em causa. Porém, as objecções ou reticências levantadas por outras figuras mais sensatas e conhecedoras do assunto reforçam a ideia de que há muito por esclarecer.

Parece que não se confirma, desde logo, a principal crítica do PSD, a de que o acordo anula a possibilidade de estabelecer três ligações para o transporte de electricidade da Península Ibérica para França, assim desfazendo o que já havia sido estabelecido em 2015 entre portugueses e espanhóis (mas não com os franceses). Mas isso não elimina todas as dúvidas, principalmente a de saber o que se irá passar no futuro gasoduto, o chamado “corredor de energia verde”. No longo prazo, servirá para transportar hidrogénio verde, se ele for, de facto, uma das energias limpas do futuro, e, no curto prazo, transportará gás natural liquefeito — para o qual Espanha dispõe de seis portos de entrada e nós apenas de Sines. A pergunta, então, é: ficará apenas ao critério de Madrid decidir que gás vai escoar, o deles ou o nosso, apenas quando não tiver mais do deles? Passar-se-á com a exportação do “nosso” GNL o inverso do que se passa com a importação da “nossa” água? Eu até gosto de Espanha e dos espanhóis e, ao contrário da opi­nião corrente, acredito que também os espanhóis gostam de Portugal e dos portugueses. Mas não ignoro quer a antiga vocação imperial de Madrid quer a nossa infeliz tentação de subserviência.

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ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

2 De uma penada, o Governo negoceia um acordo de rendimentos com os parceiros sociais (patrões e UGT) a quatro anos, um acordo com os sindicatos da Função Pública filiados na UGT e um acordo com o Sindicato dos Enfermeiros. De fora deixa — ou melhor, auto-exclui-se, como sempre — a CGTP, isola os antigos parceiros da extrema-esquerda e silencia o PSD. Agora segue-se o habitual, com os trabalhadores do Estado ligados aos sindicatos da Frente Comum, da CGTP, a “saírem para a rua” em greves e manifestações. Não digo que não tenham razão, em parte ou grande parte, ou no essencial: a inflação vai crescer mais do que os salários. Mas é a forma de luta, sempre tão igual e previsível a sua deliberada postura ideológica ao serviço do PCP e não dos trabalhadores que deviam representar, que a exclui do diálogo social e a desacredita como parceiro relevante. Quando vejo o cartaz do PCP — “Parar a inflação/Aumentar salários e pensões” —, pergunto-me se ainda haverá alguém que os leve a sério. As urnas dizem que há cada vez menos.

3 Um dia talvez nos queiram explicar porque quiseram tanto livrar-se de Antonoaldo Neves (agora escolhido para CEO da Etihad) como presidente da TAP ou porque decidiram pagar €57 milhões a David Neeleman e ficar com a dose de problemas dele na TAP. Por que razão era tão imperioso retomar a maioria do capital da TAP, com o ónus de ser o Estado o único accionista a injectar lá dinheiro. Agora que a crença é outra e o que querem é despachar a companhia, parecem ter desaparecido, afinal, as razões de interesse nacional que tornaram imperiosa a sua renacionalização. Mas se, por sorte, conseguirem desfazer-se deste berbicacho, há duas coisas que eu aposto às escuras: que ao contrário do que nos prometeram jamais veremos um euro dos €3,2 mil milhões lá metidos da última vez, e que, apesar de vendida, o contrato em que o Estado será assessorado por um brilhante escritório de advogados da nossa praça garantirá ao comprador que não só ele não terá de pagar nada de especial pela TAP como ainda ficará salvaguardado quanto a dívidas emergentes, lucros cessantes, danos contingentes e mais um sem-número de situações tipo Novo Banco, com as quais passaremos anos a pagar a “venda” da TAP.

4 Quem duvida do que acima escrevi atente no exemplo da ANA, essa outrora rentável empresa pública, vendida aos franceses da Vinci no Governo do agora resgatado Passos Coelho. Além de ter transformado o aeroporto de Lisboa num caó­tico centro comercial e de subir incontroladamente e a seu bel-prazer as taxas aeroportuárias em todos os aeroportos do continente e ilhas, não se conhece nenhuma vantagem para os utentes da gestão privada da ANA. Mas sabe-se que o contrato de venda contém uma cláusula que impede o Estado de construir um novo aeroporto de Lisboa a menos de 75 km da Portela sem indemnizar a Vinci — o que, para todos os efeitos, representa uma alie­nação de soberania nacional. Agora sabe-se também que a ANA/Vinci quer subir as taxas aeroportuários acima da inflação em todos os aeroportos que explora: em Lisboa, 5,7% acima da taxa de inflação prevista. E li que vai para tribunal arbitral (onde o Estado costuma perder sempre) reclamar uma indemnização pelos lucros que não teve durante a covid, quando os aeroportos do mundo inteiro ficaram desertos. Os contribuintes, via Estado, serão, assim, responsáveis pelo raio do vírus. Mas só perante a ANA, não perante os outros milhares de empresas que faliram ou perderam dinheiro pela mesma razão.

5 Com excepção do analista/especialista Nuno Rogeiro, que insinuou que a sabotagem da ponte da Crimeia foi mais um dano auto-infligido pelos russos, todos os comentadores ocidentais saudaram a brilhante operação dos serviços secretos ucranianos que afectou profundamente a manobra militar dos russos e os humilhou aos olhos do mundo inteiro. Putin, que também não comprou a tese da sabotagem própria, demitiu o general responsável pela segurança da ponte e contra-atacou em força, como seria de esperar, concentrando todos os esforços no bombardeamento de estruturas civis estratégicas, em particular no campo energético. Mas se a destruição da ponte pelos ucranianos não levantou quaisquer objecções no lado de cá — e com razão, pois uma ponte, sendo um alvo civil, transforma-se também num alvo militar em tempo de guerra, pois serve para deslocar tropas e armamento —, já o bombardeamento de centrais eléctricas pela Rússia na Ucrânia, classificadas unicamente como “alvos civis” pela imprensa e políticos ocidentais, foi condenado como “crimes de guerra”, e a Rússia viu o Conselho da Europa, por 27 votos a favor e uma única abstenção, declará-la “Estado terrorista”.

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Os recentes bombardeamentos russos sobre uma já massacrada Ucrânia fizeram subir a estimativa do custo das reparações no país para €750 mil milhões e, segundo o FMI, €3 mil milhões por mês enquanto a guerra durar e apenas para garantir a sobrevivência do país. Fora os milhares de milhões em material e equipamento militar que Zelensky pede e obtém todos os dias. A Comissão Europeia já se comprometeu com um cheque de €2 mil milhões por mês até um primeiro plafond de €18 mil milhões… enquanto a guerra durar. E aqui é que está a grande incógnita, pois Zelensky diz e repete que quer guerra até ao fim, até mesmo a recuperação da Crimeia, e não faltam vozes a apoiá-lo e a defender que o fim da guerra só poderá ser a derrota total de Moscovo, enquanto as poucas vozes que se atrevem a sugerir a abertura de negociações, incluindo entre congressistas do Partido Democrata americano, são silenciadas, abafadas, afastadas, cilindradas.

Mas um dia, como quer que seja e sobre as ruínas do que quer que seja, a guerra chegará ao fim. Então, tal como sobre as ruínas de Belgrado, bombardeada dos céus durante 78 dias pela NATO, colocar-se-ão duas questões de alta política: quais serão os países e as empresas chamadas para a reconstrução da Ucrânia e quais serão os países chamados a pagá-la.

6 Entrou como uma Bobolina, saiu como uma actriz de teatro de revista: Liz Truss. Três patéticos primeiros-ministros depois do ‘Brexit’, é, sem dúvida, irónico que os ingleses, que escolheram abandonar a “decadente” Europa em nome da sua superioridade anglo-saxónica e da sua nostalgia imperial, tenham acabado, para salvar os dedos e já não os anéis, por confiar a sua sorte a um descendente dos súbditos do Raj. Churchill, que todos gostariam de conseguir imitar, deve estar aos saltos no túmulo. Ele que declarou, para ser escutado pela eternidade, que a Inglaterra sem a Índia nunca seria nada.

7 E domingo sustenham a respiração: se Bolsonaro ganhar no Brasil, em breve vamos precisar do pouco ar que ele deixará na Amazónia.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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2 pensamentos sobre “Entre todas as tempestades

  1. Um sindicato que entende os trabalhadores, e a realidade da economia, acrescento eu, não só defende os trabalhadores, como devia assinar sempre tudo de cruz para o fazer. Grande miguelada, pá, nunca mudes, que nunca vais perder o tacho do número um.

  2. 1, Essa treta do gasoduto é só para entreter e os franceses sabem disso ,daí serem os mais reticentes ,o verdadeiro gasoduto vai passar pela Turquia e vem directo da Russia ,e dessa forma os europeus não vão ter problemas de consciencia ,afinal o gaz russo passa a ser turco.
    2, Sem a ranhusice o que seria feito do PCP e do seu sindicato ?? Era o fim !!!
    3. 4. É das maiores vergonhas deste país a mania que temos de ser aquilo que não podemos está espelhado na TAP e na ANA. Gostamos muito de brincar aos países ricos ,quando não temos dinheiro para mandar cantar um cego. Tanta falta faz esse dinheiro para a educação e para a saúde.
    5. Essa é só mais uma estupidez europeia ,com tantas dificuldades em todos os sectores da economia europeia ,estamos nos a comprometer com uma reconstrução que nunca vamos fazer ,repito nunca vamos fazer. O povo ucraniano está a ser enganado por europeus e americanos. Quanto ao Rogeiro já era altura de desaparecer de cena.
    6. A situação da Inglaterra é o espelho da decadencia de toda a europa ,apenas me serve de consolo eles terem ido morrer longe (brexit) ,porque de caso contrario dentro de dias lá tinhamos de recuperar mais uma mega economia ,assim esses ficam para os americanos.
    7. Não apoio Lula ,nem Bolsonaro ,direi mesmo venha o diabo e escolha ,mas pelo menos Lula é mais racional. Quanto a amazonia …a pouco tempo andava toda gente aflita por ter de usar mascara por via do covid ,um destes dias vai ser mesmo por questões ambientais e quem sabe com uma botija de ar comprimido as costas ,para se poder andar na rua ,na India e na China ,já não falta tudo.

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