A justiça do zé-povinho

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 18/12/2021)

Miguel Sousa Tavares

O povão das redes sociais delirou com a fotografia de João Rendeiro a ser preso em pijama: foi a forma de a justiça se tentar redimir do incrível desleixo que esteve na base da sua fuga e de o Zé Povo se sentir vingado pela suicidária arrogância do fugitivo. O povão delirou com a caução de seis milhões que o juiz Carlos Alexandre aplicou ao casal Manuel e Alexandra Pinho, lendo bem o sinal que o juiz quis dar à turbamulta que executa as sentenças na praça pública sem esperar pelos julgamentos: que eles têm seguramente seis milhões para pagar, angariados através dos muitos crimes de que estão indiciados nos autos — se bem que estes estejam, por enquanto e há 10 anos, em segredo de justiça.

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Para trás, entretanto, ficaram a megaope­ração sobre os dirigentes e empresários ligados ao FC Porto, suspeitos de nada menos do que andarem a roubar o próprio clube há uma dúzia de anos (uma suspeita que não é só do MP…), o arquivamento por falta de provas, ao fim de 11 anos de investigação, dos crimes mais graves de que eram acusados vários ex-governantes no caso das PPP rodoviárias, ou a sua prescrição por invocada “falta de meios”. Para trás ficaram ainda as absolvições em tribunal, entre outros, do ex-ministro Miguel Macedo, acusado de corrupção passiva pelo MP no caso dos Vistos Gold, ou do ex-ministro Azeredo Lopes, alvo de uma acusação criminal absolutamente irresponsável, e ambos com carreiras políticas destruídas e um rombo patrimonial para custear a respectiva defesa que nenhum procurador do MP faz ideia do que seja nem perde tempo a querer saber. E no início do ano que vem teremos a mais do que provável absolvição do presidente da Câmara do Porto, acusado pelo MP de prevaricação. E para trás estão inúmeros outros casos eternamente pendentes, uma vez esquecido o folclore inicial com que foram escancarados — os do Benfica, os que envolvem as Forças Armadas e tantos outros.

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ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

No meio disto, chegamos ao ridículo de ver o MP à rasca para conseguir traduzir para um banal inglês a sentença condenatória de João Rendeiro e enviá-la a tempo (15 dias) para o tribunal sul-africano, para fundamentar o pedido de extradição. Porquê? Por um lado, porque a sentença tem centenas de páginas, conforme se tornou tradição das nossas peças judiciais desde que se inventou o copy past e os magistrados passaram a achar que a quantidade de páginas e a repetição exaustiva dos mesmos argumentos, e não a simplicidade e clareza, são sinal de qualidade (a acusação do MP no Processo Marquês tem mais de quatro mil páginas e, para ficar pronta a tempo, teve de ser escrita a quatro mãos, com a coerência que se imagina). Mas, por outro lado também, porque a eterna desculpa da falta de meios, mais uma vez aqui invocada, é o salvo-conduto que serve para tapar o que é, muitas vezes, apenas desorganização, incompetência, falta de zelo ou de direcção. O caso da prescrição dos principais crimes investigados no processo das PPP rodoviárias é um bom exemplo disto: para quê investigar tantos crimes, de tantas coisas e lançando publicamente tantas suspeitas sobre tanta gente, para no final concluir que não tinham meios para investigar tudo isso num único processo? E o mesmo se diga do Processo Marquês, em que a tentação e a vaidade de julgar todo o regime num único processo (Governo Sócrates, BES, PT) vai conduzir fatalmente a um emaranhado jurídico e judicial sem fim à vista, com inevitáveis prescrições e a sensação de que nunca saberemos que justiça se fez e que justiça ficou por fazer.

No estado a que chegámos, eu olho para as sempre espectaculares operações do MP e, sinceramente, entre três hipóteses possíveis, nunca sei em qual delas acreditar à partida: se têm um fundamento sério por detrás, se têm alguma base de sustentação ou se não têm o menor fundamento e tudo não passa de um abuso de poder.

Mas, mesmo quando acredito no fundamento sério, olho para o folclore habitual, que as televisões, previamente avisadas, adoram — “50 procuradores, 100 polícias, 140 buscas domiciliá­rias, 200 apreensões de telemóveis ou computadores” (que, a propósito, contêm toda a vida pessoal e profissional dos “suspeitos”) —, e pergunto-me se alguma vez aquilo conduzirá a algum resultado palpável no único local onde me ensinaram que se faz justiça num Estado de direito democrático: os tribunais.

E, a menos que todos sucumbamos à atitude do Zé Povo — para quem qualquer suspeita tornada pública é imediatamente sinal inequívoco de crime consumado e condenação feroz sumariamente decretada —, viver assim é insuportável.

Pior ainda é a desconfiança de que nada disto acontece por acaso, de que toda a cultura estratégica entranhada na actuação do MP é orientada para obter, não a condenação dos seus acusados em tribunal, mas dos seus suspeitos nos jornais e na opinião pública. E de que, em inúmeros casos, tal lhe basta — quer eles sejam inocentes, quer sejam culpados.

Quer destrua a vida de inocentes que lançou às feras, quer deixe escapar, impunes, por prescrição ou por desleixo, criminosos que deveria ter levado à justiça. Os senhores magistrados do MP, depois de cada actua­ção espectacular daquelas para as TV filmarem, deveriam dar-se ao trabalho de ler as colunas de comentários dos jornais e das redes sociais: porque se algum brio profissional lhes assiste, e tenho de acreditar que sim, é impossível não se sentirem incomodados ao perceberem que o seu palco e a sua recompensa é a justiça popular.

Isto decorre inevitavelmente de um sistema que tem o apoio da opinião pública, fundada na ignorância e no fatal princípio de que os apregoados e abençoados fins justificam os meios. Que tem o apoio de uma imprensa que, por um lado, troca favores com um MP que é uma garganta funda de notícias sempre disponível e, por outro lado, segue o facilitismo de princípios e a onda justiceira das redes sociais. E que tem, não direi o apoio, mas o temor reverencial de uma classe política (com a excepção de Rui Rio, por isto crucificado e pelos próprios tiros que dá no pé). Uma classe política que não se atreve sequer a pôr fim ao domínio corporativo dos magistrados do MP no seu Conselho Superior, o único órgão onde, teoricamente, o seu funcionamento em absoluta roda livre poderia ser contido, como sucede com todos os órgãos do Estado, incluindo o Conselho Superior da Magistratura.

Nada acontece a um procurador do MP que destrua a vida de um inocente e que seja desautorizado e até humilhado em tribunal. Nada acontece a um procurador do MP que, por preguiça ou incompetência, deixe prescrever um crime com evidentes provas contra um culpado. Nada acontece a um procurador do MP que gasta inutilmente o dinheiro dos contribuintes em diligências de prova sem sentido — nem, aliás, se acha pedagógico ou importante contabilizá-lo. Nada acontece ao seu superior hierárquico, e ai do Governo que se atreva a não querer renovar, porque despedir não pode, o mandato do PGR (como se viu da última vez). Que outra profissão existe com este estatuto de irresponsabilidade e impunidade? Que política de justiça pode ter um Governo cujos poderes sobre os que actuam em nome do Estado é rigorosamente zero? Poderia uma empresa pública funcionar assim? Uma universidade, um hospital, um navio?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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6 pensamentos sobre “A justiça do zé-povinho

  1. Causa-me muita estranheza nunca ser questionada a formação que é ministrada aos juizes em Portugal. Se demonstram uma tão grande incompetência em muitos aspetos, o que é verdade, creio que a formação que tiveram para exercer o cargo deve ser posta em causa. Logo, penso que há que investigar a formação dada no Centro de Estudos Judiciários.

  2. O que me indigna é constatar que os nossos opinion makers passam a vida a defender criminosos: se são pobres é a polícia que é bruta e as prisões desumanas, se são ricos é a comunicação social que não respeita e o povo que quer sangue.

    Perpetuamente escudados na defesa do estado de direito, fico com a ideia que por eles e elas nem devia haver prisões e o próprio conceito de crime e contra-ordenação devia ser coisa do passado.

    E o nojento ódio ao povo, típico das elites. Que é abrutalhado e vingativo. Que não passa o dia na comiseração pelos presos que mataram e violaram e pelos ricalhaços mitómanos que roubam milhões de pessoas pelo mundo inteiro (causando sofrimento, pobreza, suicídio), coitados que não merecem estar na mesma prisão dos outros menos finos e sofisticados.

    Continuem assim, a defenderem-se uns aos outros…

  3. Na comentário que antecede, verifica-se como efetivamente muitos, de entre o povo, são ignorantes, mal formados e abrutalhados , porque, inconscientes das suas limitações, não se inibem de emitir alarves opiniões

    • E sua excelência defende o quê, em concreto? Que dedique aos Rendeiros deste mundo o meu tempo precioso e que lance um crowdfunding para resgatar mais um vigarista que nem quando está na casa de banho pensa em gente básica e troglodita como eu?

      Dondocas com a mania…

      Desejo que o Rendeiro seja enrabado, apanhe hiv e que se foda de vez.

      Já percebi que esta dondoca prefere que nada lhes aconteça, que os seus crimes financeiros saltitem alegremente de recurso em recurso até à pena suspensa/prescrição final ou quanto muito até uns 2 ou 3 anos em prisões mais “soft”, para pessoas de alta estirpe…

      Depois enchem a boca com a justiça cega e com a igualdade de todos perante a lei. Mas, infelizmente, há criminosos mais iguais do que outros.

      Penas efetivas, passadas em prisões à seria. Ou então devolvam o dinheirinho, com giros.

      Brincar aos presidiários, coisa de gente pobre, sei lá, não está com nada.

      Talvez assim pensem um pouco melhor antes de enganar os outros com a maior desfaçatez e sentimento de superioridade.

      Mas pronto, devemos ser todos uns brutos.

  4. O que MST refere no seu artigo como paradigma da actuação do MP resulta fundamentalmente do facto de que nenhum Ministério Público da Europa tem a autonomia que o Ministério Público tem em Portugal.
    Por exemplo, em França (considerada o berço da instituição) ou na Alemanha, o MP está subordinado ao Ministro da Justiça, cujas directrizes têm carácter genérico ou específico.
    Em Portugal, os constituintes de 1976 – colocados perante o facto de que o MP no regime anterior, era uma estrutura ligada ao governo, por estreito vínculo hierárquico, através do Ministro da Justiça – conceberam um novo modelo do MP assegurando-lhe uma ampla autonomia (embora dependam hierarquicamente da Procuradoria Geral da República (PGR), órgão supremo do MP, sendo dirigida por uma individualidade (Procurador Geral) de nomeação e exoneração livres do Presidente da República, perante quem, obviamente, será exclusivamente responsável), a verdade é que no exercício o exercício da acção penal, preconizada constitucionalmente, os magistrados do MP não obedecem a outros comandos que não os que dimanam da própria lei e lhe sejam impostos pela sua consciência ética e profissional, e acrescento eu, “consciência política”.
    Este quadro constitucional, assegurou aos magistrados do MP as condições para um amplo e livre exercício das suas funções (foi célebre a frase do ex-PGR Pinto Monteiro que se sentia como “tendo os poderes da rainha de Inglaterra”) que lhes dão a rédea solta exercendo à vontade e sem freio a acção penal (com o pretexto de que apenas obedecem ao princípio da legalidade) o que lhes permite tudo, até o de resolverem problemas políticos através de processos judiciais, a coberto do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público que se assume cada vez mais como um partido político na governação da justiça.

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