(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 18/12/2021)

Basta dizer a palavra sexo e sai um clickbait. Sexo, dinheiro e morte são chamarizes que nunca passam de moda. “Sex and the City”, “SATC”, apareceu com esta vantagem. Uma série sobre o sexo e a vida sexual de quatro mulheres afluentes e emancipadas, dotadas de excelente guarda-roupa, na luzente cidade de Nova Iorque e no recinto exclusivo de Manhattan, com sentido de humor feminista, escrita por um gay chamado Darren Star. Uma estrela que tinha tudo para dar certo. E deu. “O Sexo e a Cidade” tornou-se uma espécie de símbolo da década feliz, os anos 90, depois da sida primordial e antes do terrorismo, da tecnologia destruidora da civilização de Gutenberg e da pandemia. Uma década de otimismo em que o capitalismo liberal deu ao mundo ocidental uma prosperidade nunca vista e alimentou o sonho da democracia planetária. O fim da História.
Era uma série que tinha o mérito da restituição da futilidade no recital de lágrimas das vidas quotidianas. Não uma futilidade vã, um escape de razões e ações mais sérias destinado a fazer rir ao observar com acuidade os tiques e toques de um grupo de gente mimada, as tribos manicuradas de Manhattan. Com o tempo, “SATC” transformou-se num culto e não apenas entre as mulheres do mundo que viam televisão americana. Os homens também achavam piada aos nortes e desnortes de Carrie Bradshaw, a escriba, Samantha Jones, a bomba sexual, Charlotte York, a colegial cor de rosa, e Miranda Hobbes, a mulher de carreira. Adaptado de um livro da escritora e colunista Candace Bushnell, a verdadeira Carrie, a série trazia para o ecrã a candura sexual da descoberta dos sexos, e não apenas do sexo, e a libertação das mulheres na esteira de “Fear of Flying” e da pioneira Erica Jong. A primeira que resolveu escrever romances em que o erotismo vagamente pornográfico é transformado num depoimento feminista que começaria assim: todos os homens são ridículos, incluindo os homens bonitos, se uma mulher for suficientemente esperta para perceber isso. Ou seja, a mulher fica por cima em todas as relações sentimentais.

Para os homossexuais, antes da emancipação plena e dos direitos ganhos, “SATC” era não só um ponto de auto-observação e libertação como uma fantasia drag, por causa das roupas ostensivas e da intimidade sem pecado entre rapazes e raparigas, sem que a opção sexual fosse um drama ou uma batalha pessoal. Depois das tragédias do VIH, “SATC” instituiu uma apreciação mais alegre do universo gay. Que se contrapunha à escuridão dos anos 80, da sida como estigma e de filmes hard como “Cruising, A Caça”, de William Friedkin, que ia destruindo a carreia de Al Pacino. A caricatura do casal homossexual, que hoje seria considerada ofensiva por este ou aquele grupo de ofendidos, funcionava como o alívio cómico da espessura heterossexual dos homens da série e sobretudo do alpha male Mr. Big, outra caricatura. O nome indica tudo.
Antes do nascimento da doutrina politicamente correta, antes da censura e da perseguição, antes do cancelamento e da ofensa, as pessoas, homens e mulheres antes da imposição da fluidez de género, eram livres. Nenhuma hierarquia se sobrepunha às outras, o riso cancelava a intolerância.
A velha e sólida aliança entre mulheres e homens gays, baseada no respeito mútuo e, no caso feminino, no conforto que as mulheres sentiam pela ausência da ameaça patriarcal ou marialva, emprestava à série alguns dos melhores momentos.
A personagem feminina oposta a Mr. Big, que começa por ser o malandro clássico que não se quer comprometer, era a de Samantha, que usava os homens como brinquedos sexuais. Claro que Samantha era não só um papel ingrato para a atriz, ficou colada à personagem, como um papel irreal. Não haveria por aí muitas mulheres com aquela dose de autoconfiança e sentimento predador.
O evidente exagero de todas as personagens, falas e ações dava a “SATC” o mérito da evasão da realidade. E por cima pairava a luz de Nova Iorque, a metrópole da infinita possibilidade. É a mesma Nova Iorque privilegiada e bonitinha de Woody Allen de Nora Ephron, com o mito dilatado pelo poder da televisão. Um lugar onde as desgraças são anuladas pela carga emocional positiva, como se dizia nos anos 90, que a cidade injetava nos habitantes. A cidade carregava as baterias depois do desgosto e da desilusão.
Nos anos 90, as mulheres rumavam a Manhattan para fazer a voltinha “SATC”, com paragem obrigatória na Magnolia para queques com creme. E, nesses anos descuidados e otimistas, anos de enriquecimento, a cidade devolvia em dobro tudo o que nela se investia, incluindo o sonho. O sonho estilhaçou-se no dia 11 de Setembro de 2001.
Em 2021, aquela Nova Iorque desapareceu. A cidade, acossada pela pandemia e por movimentos sociais e políticos que escapam ao controle da racionalidade, acossada pelos anos Trump (que era, nos anos 90, um cómico, simpático e ilustre habitante doirado de Manhattan e uma vedeta dos tabloides que não se levava a sério e adorava aparecer), acossada pelos escândalos e os resgates da crise financeira, acossada pelo terrorismo e o racismo que trouxe na cauda bifurcada, acossada pelos confinamentos e os terrores covid, não é nem pode ser a mesma cidade da década prodigiosa.
Os atores de “And Just Like That” podem ter voltado a colocar a máscara, mas os traumas estão lá, na perplexidade com que as três mulheres enfrentam a mudança de modos e costumes, a novíssima censura social, a supremacia tecnológica sobre a literária. E nada disto tem graça. Elas já não conversam sobre sexo e sobre homens, conversam sobre a velhice e a morte, a doença, as rugas, a humilhação infligida pela passagem do tempo. A vida tal qual ela é.
O argumento não tem, nem pode ter, a menor ideia do que é ser jovem neste milénio, e o único jovem da série, o filho de Miranda, aparece como um descerebrado neutro que pratica sexo com a namorada ao lado dos pais ou num concerto de piano, com o ruído de Samantha e sem a leveza dela. É uma cena grotesca, tal como a cena em que os pais pedem ao filho um abraço. A caricatura falida de uma geração incompreendida por alguém que vem de outra era. A caricatura também não funciona em nenhuma das três sobreviventes. Onde havia humor resta anacrónico exagero. Os trapos e chapéus burlescos, a prosperidade como obscenidade, a fleuma do casamento clínico, a cirurgia plástica e o botox. Carrie é uma podcaster porque os livros não vendem, Miranda é uma aluna insegura e Charlotte uma dondoca sem virtude salvífica. A união do grupo vem apenas de estarem na mesma jangada geracional, sem rumo e sem propósito. O tempo não perdoa. E os maus argumentos ainda menos.
O único que continuava sem perda, alpha male até ao fim, morre no primeiro episódio. O anticlímax, ditado pela necessidade de retirar o ator de cena. E começamos com um funeral. Not good. Mr. Big morre numa bicicleta Peloton, e logo se seguiu um vendaval de marketing da Peloton para demonstrar que as suas bicicletas não provocam ataques cardíacos. O anúncio da Peloton, com Mr. Big/Chris Noth vivo e de boa saúde em companhia de uma vívida treinadora, acaba por ser a única gargalhada, lateral. Na América nada se perde, nada se cria e tudo se transforma.
Nos anos 90, para quem não o saiba, o politicamente correcto já ia de vento em popa nos EUA… em Manhattan, na Ivy League e arredores.
Estragou tudo no fim do 1º parágrafo. A fútil facilidade com que a, uma vez varredora de tapetes de bilderberg, declara que o liberalismo da década de 90 «deu ao mundo ocidental uma prosperidade nunca vista» varrendo para debaixo dos tapetes o brutal endividamento que escondeu a baixa generalizada dos salários que iria amarrar às galeras a classe média por décadas, a brutal baixa (e fuga legalizada) de impostos, que iria destruir o estado social europeu que nunca existiu do outro lado do oceano, a brutal destruição da legislação laboral que descambou muito além da precarização, na uberização da miséria, enfim, a abertura do fosso da desigualdade que não pára de se aprofundar, só se pode dever às linhas brancas de ideologia dominante que lhe entram pelo nariz.
Nova yorque das luzes é hoje mais bem cenário de uma fita infinda de mortos vivos, é tempo houve que foi de draculas, os bebedores de sangue, mas de há uns tempos a cidade tornou-se um pesadelo de mortos-vivos, e não sei que graça essa gente ianque tem pelas coisas sem graça, exageradas, anormais, coisas feias, cidade de mortos-vivos