(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 27/07/2021)

Ramalho Eanes foi adversário de Otelo em quase todos os dias do pós-25 de Abril. Prendeu-o após o 25 de novembro. Representou contra ele, nas eleições presidenciais de 1976, o campo político que veio a ganhar a hegemonia política no nosso país. E, no entanto, foi a voz mais digna da direita portuguesa no momento da morte do seu adversário e amigo, mostrando o que os aproximava e o que os separava, sublinhando o papel histórico do organizador da ação militar que derrubou a ditadura e não deixando de criticar a sua ação posterior. Há nesta atitude uma grandeza e um equilíbrio que merece respeito.

O contraste entre Eanes e a cacofonia das direitas sobre Otelo não podia ser mais evidente. Enquanto Ventura e Melo disputam encaloradamente o campeonato da ignomínia, rastejando em ajustes de contas em que se fantasiam de heróis em batalhas que não disputaram, Eanes, que unificou a direita de então e o PS nas escolhas que definiriam o regime, teve uma palavra certa, reconhecendo a Otelo um lugar histórico que é só dele. A diferença entre uma vingança parola e a justiça que não quer falsificar o passado é monumental.
No entanto, no atual campeonato mesquinho entre as extremas-direitas há mais do que uma reveladora falta de carácter, ou até de uma saudade da ditadura que agora é exibida como uma medalha. Embora a tentativa de usar a morte de uma figura pública para certificar uma tese ou para criar um espantalho ideológico não tenha sido inventada por Ventura ou por Melo, ou pelos que correm atrás deles, as invectivas usadas contra Otelo, ou o silêncio de algumas figuras de que se esperaria o mínimo de dignidade, dizem muito sobre o que é hoje essa direita. Ventura tocou a rebate para explicar como aplicaria a sua pena de prisão perpétua (ou pena de morte?), sem sequer se dar conta da cobardia que constitui nunca o ter dito enquanto Otelo era vivo. É um valentão que insulta um morto, desafiando quem não lhe pode responder. Melo, que repete sempre Ventura em versão fidalga, explicou candidamente que Otelo só conseguiu ser um chefe militar “por um dia” porque a ditadura lhe ensinou o mando com a paciência dos santos. É a isto que estão reduzidas as vozes mais gritantes da direita, a disputar a escala da injúria, se não mesmo a da falta de imaginação. Os outros, a pretexto de não haver um consenso histórico, como se alguma vez tal coisa aparecesse no cimo de uma azinheira, preferem esquecer o assunto: Rio ficou por umas palavras de circunstância, Chicão não faço ideia do que tenha dito.
Que o passado está sempre em disputa, disso não restam dúvidas. Que os vencedores procuram freneticamente fabricar a memória e justificar-se, tão pouco há nessa constatação alguma surpresa. Talvez por isso a dignidade de Eanes, ao reconhecer o papel histórico de Otelo, contrasta com o modo como as direitas de hoje se agitaram para fazer da própria morte do capitão de Abril uma nova vítima. Em tempo de política da raiva, olhar para trás para domesticar a revolução de Abril é uma prioritária missão cultural da direita que quer fazer a ponte com o regime repressivo e colonial. O que nessas manobras está em causa não é a aventura criminosa das FP25 (ou sequer compará-las com outras bandas políticas, como se o paralelo fosse justificativo para uns ou para outros) ou as frases soltas de um período em que a intriga se fazia no Procópio e as ruas estavam cheias de gente, de ilusões e de paixões; o que verdadeiramente importa é que o povo se revoltou contra uma ditadura e a sua burguesia pindérica e essa falta não pode ser perdoada por quem olha para o futuro como a promessa da ressurreição desse Velho Portugal. Homenagear Otelo, ou reconhecer o facto da sua coragem determinante na revolução fundadora da vida democrática, é por isso mesmo a única forma de respeitar, viver e conviver agora com a liberdade.
Bom comentário do Francisco Louçã, com passagens deliciosas.
Concordo a 100% no tocante a Otelo.
A posição de Eanes no tocante a Otelo é a minha.
Otelo foi um herói, uma das figuras da história de Portugal. Mas também foi um terrorista que tentou instaurar uma ditadura.
Embora para mim Eanes seja demasiado à direita. Agradeço-lhe que tenha salvo Portugal de uma ditadura totalitária de esquerda tal como, capitão de Abril, tal como Otelo, nos tenha tamvém salvo de uma ditadura de extrema direita conservadora. Mas é um facto que o regime actual é parcialmente democrático/plutocrático,. O ideal seria uma verdadeira social democracia como as dos países nordicos. Enfim.
Já a parte do Louçã aludir a uma suposta pena de morte do Ventura, que o mesmo sempre se declarou contra, vindo da parte de um defensor de regimes que usaram a pena de morte em massa…
Louçã é trotskista-leninista assumido.
Ora o regime leninista usou a pena de morte em larga escala, muitas vezes decidida admnistrativamente.
Milhões de pessoas foram condenafas a deportação para campos de concentração ou à morte, sem sequer um simulacro de julgamento, como no assassinato da familia real e dos seus criados.
Ainda hoje tento compreender que crime poderiam ter cometido as crianças ou o cozinheiro do Czar.
E depois os defensores deste tipo de regimes andam sempre a choramingar pelos direitos humanos e tal. É como se um nazi dissesse que gosta muito de judeus.
Como diz a cara estátua, é de vómito.
(…) a gente do PS para provar que estar “em cima do muro é que se está politicamente correcto”, expressa-se por clichés. Estafados. Que já ninguém utiliza. Nem os comunistas desde que se institucionalizaram por via parlamentar e assumiram a Democracia utilizam mais as categorias do leninismo – ditadura do proletário, reforma agrária ….
Que branqueamento da memória. Mas o M. Soares não foi socialista antes do o meter o gaveta, e “inventar o socialismo democrático”?? Que é, ideologicamente, o modo envergonhadamente eufemista de assumir a social democracia. Sigam o exemplo do Costa que se assume ideologicamente como tal. Ainda que na prática desenvolva politicas liberais. Que mais liberais seriam se não fosse a Geringonça.
Eanes, é um militar. E perfilha valores militares dessa entidade castrense: honra na defesa da Ordem, (seja ela qual for) denodo, heroísmo, que é da sua tradição. E por isso politicamente expressam-se com os mesmos atributos da água; são insípidos, incolores e inodoros. Não têm expressão critica ao regime que servem.
A excepção, foi revolucionária. Quando os militares da Abril, resolverem reagir á loucura do regime fascista. A que se juntou a vontade reprimida de um povo, reorientado pelos lideres que chegaram do exílio. Depois é o 25 de Nov. que impediu que a nação acreditasse em horizontes de maior justiça social, e a propaganda, que lhe seguiu, infundiu o medo, por referência a outras revoluções, cujas nações e a sua história, nada tinham a ver com a nossa.
E aqui que está Eanes, e o grupo dos 9 a enviesar os caminhos da revolução sob o lema Soarista, de que vinha aí uma ditadura. E ainda hoje existem grafonolas de repetição a debitar o mesmo cliché. Quando a história escrita, por quem foi ás fontes, testemunha que os putativos ditadores evitaram a guerra civil e defenderam a via democrática. O gaúdio da verdade é que, apesar das versões, mais ou menos, intencionalmente pérfidas, a seu tempo será resposta no seu lugar da História. Vivemos a Democracia que os plutocratas e o Ocidente quer que vivamos.