O peso cultural e social de se estar “em cima” ou “em baixo”

(Pacheco Pereira, in Público, 27/12/2025)

Pacheco Pereira

Um dos traços mais presentes no nosso povo, de cima a baixo, dos pobres e dos ricos, é a prevalência de comportamentos conformes ao lugar social de cada um.


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Nunca fui da escola da “identidade dos portugueses” que teve um papel relevante no Estado Novo e que, de vez em quando, emerge com a ascensão do nacionalismo, como se passa nos dias de hoje com formas bastante perversas. Uma delas foi o exemplo nacional que o primeiro-ministro resolveu dar aos portugueses com um jogador de futebol, o Ronaldo, que é hoje um pajem de um assassino saudita, o que, aliás, não é alheio aos momentos em que parece que apenas o futebol enche o peito da turba com Portugal. É irónico ver agitar as bandeirinhas de um estranho Portugal que em vez das quinas tem pagodes chineses, mas não deixa de ser um retrato da correlação forte entre o nacionalismo futebolístico e a ignorância.

Mas nasci em Portugal, sou português, patriota no sentido em que me honram a língua, a literatura e, quer queira quer não, fui feito pela nossa história, muitas vezes pela via mais próxima de uma família antiga e pela cidade que me “moldou”, o Porto. Por tudo isto, esta é também a minha identidade, e dá-me pena e preocupação que tudo o que nós temos de melhor, e nalguns casos de muito melhor, como é a nossa ímpar literatura e o seu instrumento, a nossa língua, estejam numa profunda crise, exactamente quando elas são, mais do que nunca, necessárias para a boa “identidade” dos portugueses. É por isso que é um insulto aos portugueses atirar-nos como modelo motivacional da psicologia barata o Ronaldo. Estamos ao nível do Big Brother.

Mas, como de costume, os nossos nacionalistas, que se excitam todos por se dizer que fomos um povo esclavagista, ficam cegos, surdos e mudos quando um país que teve Fernão Lopes, João de Barros, Fernão Mendes Pinto, Damião de Góis, Manuel Bernardes ou o Padre António Vieira — e não é por acaso que escolho estes nomes —​ aparece personificado por um jogador de futebol de uma forma que nunca teria sido usada para o Eusébio, a começar porque este era preto.

Uma das razões pelas quais quando se olha para Portugal com a obsessão identitária se comete um erro que não é inocente é esquecermos um dos traços mais presentes no nosso povo, de cima a baixo, dos pobres e dos ricos, é a prevalência de comportamentos conformes ao lugar social de cada um.

Quem esteja atento, percebe que quem está em cima sabe onde está e lembra-o a quem não o veja nesse lugar e não reconheça a sua autoridade social, assim como quem está em baixo sabe muito bem qual é o seu lugar e quais os custos de não o reconhecer na submissão, mesmo invisível. Quanto aos do meio, é mais complicado, porque é um mau lugar para se estar, muito incómodo, principalmente quando se olha para cima e nunca se é tratado como igual. Toda uma indústria vive deste dilema da classe média, a começar pelos reality shows, das revistas do jet set à moda e aos seus os locais, sejam ginásios, sítios de férias, restaurantes, viagens, espaços de consumos culturais. Mas numa sociedade profundamente desigual no plano económico, cultural e social os comportamentos fixam-se no lugar onde se está e onde se deve estar.

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Há muitos exemplos de como essa hierarquia se “respira” como o ar. Por exemplo, a GNR, que fazia durante a ditadura as prisões nos campos, sabia que lhes podia começar a bater mal entravam na carrinha, enquanto a PIDE torturava, mas não deixava de saber de que família vinha o preso e proceder em consequência. Por outro lado, o escritor que escreveu um romance histórico sobre o escândalo dos Ballet Rose cometeu um anacronismo quando colocou um nobre titular envolvido a almoçar com um agente da PIDE, coisa que ninguém da “alta”, criminoso que fosse, faria, porque um agente da PIDE não se colocava na mesma mesa de um conde ou marquês. Um outro exemplo é a crueldade dos pobres com os outros pobres. O recente episódio de o ministro da Educação — que tem, como se diz, origem “humilde” — achar natural dizer que os estudantes das classes baixas são pobres, porcos e maus, e que por isso estragam as residências universitárias, é outro exemplo.

A dificuldade de tratar o peso das hierarquias sociais em Portugal é que elas transportam no seu interior aquilo a que os marxistas chamam “luta de classes”, ou seja, remetem para a desigualdade e a exclusão, como se dizia em termos pedantes, para a Weltanschauung.

Percebo muito bem que olhar se pode ter sobre o que eu escrevi, no fundo, criticar o Ronaldo, atirar ao Chega os erros de ortografia, e confrontar os nossos governantes que estão todos a “reler o Eça” (a resposta mais comum à pergunta sobre que é que estão a ler) com Fernão Lopes padece de um total e completo snobismo. Talvez, mas, exactamente por aquilo por onde comecei, é que responder à bruta à ignorância agressiva dominante é a melhor maneira de ser patriota. Ah! E outra coisa: lutar para que os portugueses ganhem mais, saiam da pobreza, tenham mais opções na sua vida, tenham uma boa e justa vida, o grande objectivo da democracia, a felicidade.

Sexo e carácter

(António Guerreiro, in Público, 26/12/2025)

António Guerreiro

São as massas desfavorecidas que alimentam movimentos políticos contrários aos seus interesses objectivos.


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Num destes últimos textos que escrevi para o Ípsilon, propus que a única maneira de sabotar o discurso de André Ventura, nos debates que ele teve com os outros candidatos à Presidência da República, onde acaba sempre por triunfar, por mais que os adversários o denunciem em flagrante a martelar as suas mentiras e a seguir os caminhos do irracionalismo mais exacerbado, consistia em deitá-lo no divã e analisar o seu fluxo verbal enquanto sintoma de uma neurose caracterial. Tentar responder-lhe com uma argumentação propriamente política e economicista é inútil. Quando ele é arrastado para esse campo, utiliza um processo retórico próprio da extrema-direita, que dispensa ideias e teorias. Adorno chamou-lhe “técnica do salame” e explicou que consiste em tomar um conjunto complexo e cortá-lo em fatias — uma, depois outra, depois outra…

O método é fraudulento e pedante, mas serve como caixa de ferramentas que os correligionários utilizam para resolver todas as necessidades. Lembremos que Adorno, que nos anos 40 dedicou um monumental estudo à “personalidade autoritária” (a figura habitada por um potencial de teor fascista ou antidemocrático), na última década da sua vida regressou a esta investigação. Dela derivou uma conferência, para um auditório de estudantes, em 1967, já traduzida e publicada em Portugal (Aspectos do Novo Radicalismo de Direita, Edições 70, 2020), que tinha sido antecedida por uma outra conferência, também publicada nas suas obras completas, intitulada Desejo Autoritário.

Adorno, que tinha sempre rejeitado o “psicologismo”, envereda aqui por vias que conduzem à confluência da sociologia e da psicologia clínica, com algumas incursões em conceitos fundamentais da psicanálise, que ele julga serem ferramentas analíticas indispensáveis para compreender o fascismo e o nazismo.

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Esses estudos estavam no meu horizonte quando propus que se devia deitar Ventura no divã. Mas, entretanto, fiz uma outra leitura muito produtiva quanto à mesma questão: trata-se de um livro de Wilhelm Reich, Psicologia de Massas do Fascismo, escrito entre 1930 e 1933, no momento de ascensão do nazismo. Wilhelm Reich é um daqueles autores que ficou associado a teorias políticas e psicológicas (fazendo, aliás, convergir estes dois campos) que têm hoje um sabor e um tom muito anacrónicos. Na verdade, algumas ideias desenvolvidas neste livro não são hoje defensáveis. Mas isso não impede que haja nele aspectos a que é muito proveitoso regressar, já que está hoje no ar a ideia de que os anos 30 do século XX estão novamente diante de nós. Na categoria das “velharias”, há outro autor que, ainda muito mais do que Wilhelm Reich, está hoje a ser reabilitado (a sua obra completa está a ser publicada em Itália sob o patrocínio de Giorgio Agamben): trata-se de Ivan Illich.

Partamos então desta circunstância misteriosa: o partido de André Ventura, que anda desde há anos a defender a solução radical da castração química dos pedófilos, tem sido confrontado com frequentes casos de pedofilia, a um ritmo que não tem rival em nenhum outro partido (esta semana, mais um membro do Chega, que foi candidato autárquico na Azambuja, foi detido por fortes suspeitas de ter abusado sexualmente de dois rapazes). Apetece mesmo regressar ao psicanalista-marxista Wilhelm Reich que, baseado na tese freudiana segundo a qual o desejo sexual é o motor mais profundo dos processos psíquicos, procurou a origem dos comportamentos irracionais do fascismo na repressão dos desejos sexuais.

Reich desenvolveu assim a teoria de que a inibição sexual produz um carácter em geral avesso à revolta e, ao mesmo tempo, submisso a um chefe político que simbolicamente exerce um controlo sobre a sexualidade e impõe o superego do virilismo. Não é difícil notar que há uma circulação da libido em torno de Ventura. Uma aliança se estabelece assim entre um carácter psicológico e uma ideologia que tem um enorme poder de agir sobre o curso da História. Quando estas condições são largamente partilhadas, um grande número de pessoas com características comuns produz o fenómeno da psicologia de massa. E esse factor subjectivo vai determinar um processo histórico.

E é assim que Reich explica este paradoxo: são as massas desfavorecidas, por mais que lhes seja mostrado com toda a lógica e racionalidade que estão a defender uma ideologia (e os respectivos chefes e doutrinadores) contrária aos seus interesses objectivos, que alimentam os movimentos políticos que a difundem e promovem.

O irracionalismo, um carácter explicitamente reivindicado pelo fascismo histórico, mantém-se actual e continua a produzir os seus efeitos. Contra ele, não há argumentos racionais que vençam.


Polémica na Groenlândia revela à Europa a crua realidade do sistema internacional

(Por Lucas Leiroz, in SCF, 27/12/2025, revisão da Estátua)


Groelândia pode ser o fim do sonho liberal europeu.


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Uma recente polêmica envolvendo as declarações de Donald Trump sobre a Groenlândia e a atuação de seu enviado especial para o território ártico revela muito mais do que um simples ruído diplomático entre Washington e Copenhague. Trata-se, na verdade, de um choque direto entre a realidade crua da política internacional e as ilusões cultivadas por décadas pelas elites liberais europeias, que insistiram em acreditar numa ordem mundial “baseada em regras”, comprovada neutra, estável e garantida por instituições multilaterais.

As tentativas da Casa Branca de suavizar o discurso — como fez Jeff Landry ao afirmar que os EUA não pretendem “conquistar” ou “tomar” a Groenlândia — não resistem a uma análise minimamente realista. O próprio Trump já foi claro ao afirmar que a ilha é uma necessidade estratégica para os Estados Unidos e que sua incorporação ocorreria “de um jeito ou de outro”. A retórica conciliadora serve apenas para consumo diplomático e midiático, enquanto os fatos apontam para uma postura abertamente coercitiva.

Do ponto de vista da Dinamarca, o apelo ao direito internacional, às normas jurídicas e à suposta inviolabilidade da soberania estatal é tão compreensível, quanto profundamente ingênuo.

A história das relações internacionais demonstra, de forma inequívoca, que a soberania não é garantida por tratados ou declarações formais, mas pela capacidade concreta de defesa. Estados que não dispõem de meios materiais — políticos, militares e estratégicos — para proteger seus interesses acabam subordinados à vontade das grandes potências.

Guerras, anexações e conquistas nunca deixaram de existir. O que ocorreu, especialmente após o fim da Guerra Fria foi, segundo a construção de uma narrativa conveniente, que tais práticas foram superadas por uma nova ordem liberal. Essa “ordem baseada em regras” sempre foi, na realidade, um instrumento de dominação ocidental, com regras impostas pelos próprios Estados Unidos, então vistos como “líderes” do Ocidente Coletivo. Embora essa ordem servisse aos interesses de Washington, foi exaltada como modelo universal. Agora, quando os EUA demonstram disposição para ignorá-la abertamente, o mito desfaz-se.

A União Europeia, por sua vez, revela mais uma vez a sua impotência estratégica. Incapaz de agir de forma autônoma e dependente da tutela militar norte-americana, Bruxelas limita-se a declarações vazias e gestos simbólicos. A OTAN, invocada frequentemente como garantia última da segurança europeia, não oferecerá qualquer apoio real à Dinamarca em caso da crise se agravar. A aliança existe para defender os interesses dos Estados Unidos, não para confrontá-los. Esperar o contrário é desconhecer a própria natureza da organização.

Nesse contexto, a Groenlândia torna-se apenas mais um exemplo da lógica imperial que estrutura o sistema internacional. Sua localização estratégica no Ártico, seus recursos naturais e sua importância militar fazem dela um ativo valioso num cenário de competição crescente entre grandes potências. A autodeterminação dos groenlandeses, frequentemente invocada pelas autoridades americanas, aparece mais como pretexto de que como princípio genuíno, seletivamente aplicado conforme a conveniência política de Washington.

O caso também evidencia o contraste entre a postura russa e os países ocidentais. Moscovo, ao longo dos últimos anos, tem insistido numa leitura realista das relações internacionais, em que poder, segurança e interesses nacionais são elementos centrais. Essa visão pragmática foi essencial para a tomada de decisão russa pela defesa de sua soberania através do uso da força, após o esgotamento das vias diplomáticas, na Ucrânia. Essa abordagem, embora demonizada pelo Ocidente, mostra-se cada vez mais consistente diante do colapso das ilusões liberais.

Para a Dinamarca, a lição é dura, mas necessária. Não haverá salvação vinda de tribunais internacionais, resoluções da ONU ou promessas de aliados. O sistema internacional continua sendo um espaço de disputa, onde a força — em suas múltiplas dimensões — permanece decisiva. Ignorar isso é optar pela vulnerabilidade. A crise da Groenlândia não é uma anomalia, mas um sintoma do fim de uma era de autoengano europeu diante da realidade do poder global.

Fonte aqui