(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 29/01/2021)

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Pulam por aí interpretações e piruetas sobre quem ganhou as eleições. O vencedor Marcelo, com o qual subitamente a extrema-esquerda se reconciliou num silêncio porque percebeu que é o que lhes resta entre a rocha e um sítio duro e porque continua enquistada com António Costa. E o vencedor Ventura. Que fez a entrada triunfal no “New York Times”, o símbolo máximo do reconhecimento nacional, como líder da extrema-direita, e fez uma entrada triunfal nas televisões, que se afadigavam em torno da estrela, como de costume. Até ficou rouco de tanto gritar no discurso inaugural do tempo novo. Todos os fascismos, mesmo os mais disfarçados, anunciam um tempo novo e um homem novo, sem cuidar de especificar no caso português. Os jornais e televisões estrangeiros falaram todos em “extrema-direita”, com todas as letras, mas em Portugal, país singular e bem formado onde o fascismo nunca existiu, a direita anunciou que os eleitores de Ventura não eram de extrema-direita. Era tudo gente “zangada com o sistema”.
O que é o sistema? Ninguém sabe. Ora na última sondagem, o sistema, apesar dos erros da gestão da pandemia, e dos erros e incompetências de alguns ministros, o sistema, repita-se, decidiu que ainda preferia António Costa a Rui Rio, aumentando a maioria socialista, e que preferia Marcelo a todos os outros, incluindo as luminárias que vimos candidatarem-se sem tino ou propósito. É este sistema, a que noutros lugares com massa crítica poderíamos chamar o centro, ou a moderação, o tal juste milieu dos franceses e da Monarquia de Julho. Este sistema, tão abominado pela extrema-direita, perdão, pela inexistente extrema-direita portuguesa, constituída apenas por gente zangada, tenta o meio termo entre a autocracia e a anarquia. Na tentativa, não decreta a abolição da liberdade de expressão ou o esmagamento dos direitos humanos, dois comportamentos típicos da extrema-direita e da extrema-esquerda dos quais os ideólogos respetivos se envergonham porque estamos no século XXI e estas coisas parecem mal.
A extrema-direita do burgo rejubila com a hipótese de retirar eleitores ao partido comunista, ou à esquerda, o que aconteceu nestas eleições no Alentejo. As razões pelas quais isto aconteceu implicariam entre outras coisas uma sociologia científica, coisa que a extrema-direita despreza, e uma sociologia criminal dirigida a uma etnia, para averiguar se existe ou não uma subcultura criminal associada à etnia cigana e, a existir, se é o resultado de uma economia de sobrevivência em função da exclusão social e da incapacidade de escolher, ou se é apenas uma subcultura criminal igual às outras. Ora a extrema-esquerda jamais admitiria uma sociologia, criminal ou não, em função de uma etnia, sinal de discriminação. Aqui chegados, em vez de tentar perceber o que leva uma pessoa que é ou não é de esquerda a votar na extrema-direita, somos enrolados no tapete das boas intenções que dispensam o juízo crítico. A extrema-esquerda não quer admitir que perdeu eleitores para a extrema-direita, e a extrema-direita não quer admitir que é de extrema-direita, porque quer e precisa converter mais eleitores do outro lado da barreira doutrinal, dando-lhes o osso com a carne do protesto em vez do osso sem carne do privilégio.
Toda a gente conhece muita gente de extrema-direita, gente que está zangada com o sistema e que é de extrema-direita. Aquela criatura que se sentou no cadeirão do Senado americano com o barrete de pele com cornos e corporais tatuagens, a criatura com a T-shirt Camp Auschwitz, os desordeiros e criminosos que achavam que a quebra da autoridade do Estado era tal que podiam fazer aquilo e escapar ilesos, são de extrema-direita. São, como tantos eleitores de Trump, incluindo os de classe média remunerada e os milionários, parte da gentalha da extrema-direita. Percebo, pela ausência de sofisticação da gentalha, pelo primitivismo ideológico e iletrado que não comporta outra variação que não a anarquia, a crueldade e a destruição da vida e da propriedade alheia que as redes sociais acolhem e expandem, ou a manutenção do privilégio de classe ou de fortuna, que os primos mais elevados se sintam envergonhados. Nós não somos assim, nós temos uma estrutura ideológica e identitária, nós lemos as bíblias do extremismo italiano e alemão, nós sabemos que existe uma distinção entre Coriolano e a plebe e entre o herói alemão Siegfried e o Siegfried dos Siegfried & Roy, domadores de tigres de Las Vegas vestidos de lentejoulas. Um deles foi comido vivo por um dos tigres.
A extrema-direita ideológica quer os votos pedestres, não quer as consequências. Quer os votos das baixas paixões, não quer admitir que esses votos lhe pertencem, apenas não eram consentidos e verbalizados. Durante décadas, o centro-esquerda esteve no poder em Portugal, alternando com o centro-direita. A extrema-direita não os aprecia, mas precisa deles, um como inimigo principal e outro como aliado. Esta conversa sobre as origens do Chega e do voto do Chega não tem o sumo da doutrina porque o Chega limitou-se a chegar e colher a fruta mais baixa, dando à extrema-direita uma oportunidade de retirar os fatos com naftalina escondidos no armário, e porque o Chega sem a extrema-direita ideológica a guiá-lo para resultados e objetivos, não passa de um ajuntamento de taberna dos indignados com os privilegiados e os oportunistas. O que o Chega precisa, e sabe que precisa, é de colonizar um partido. De preferência, um grande partido. Precisa da organização local.
O Chega será o que o PSD o deixar ser. Visto que os dois partidos do centro, numa traição ao eleitorado maioritário do “sistema”, decidiram ser inimigos e agredir-se mutuamente exceto para defender interesses comuns e aprovar expedientes de sobrevivência política, e para decidirem que é preciso que tudo mude para que tudo fique na mesma, o que resta é um destes partidos, o do centro-direita, fazer à extrema-direita o que o PS tentou fazer à extrema-esquerda, libertar-se dela. A experiência foi o que foi, e repare-se que quem foi punida foi a extrema-esquerda, e sobretudo o Bloco de Esquerda. Ou o PSD se alia ao Chega ou não.
A direita e os videirinhos do PSD querem que o partido se alie a Ventura, enquanto vai fingindo que não gosta de Ventura e analisando o fenómeno. E o grosso do PSD, o que constituía o centro do PSD, o resíduo utópico da social-democracia? Creio que fará o mesmo. Este PSD sabe que tem uma oportunidade de ocupar o poder, a única oportunidade, e quer o poder porque é um partido de poder. E o Chega também sabe. Precisam um do outro.
Nos Açores, o líder Rio, cada vez mais descomposto nas intervenções públicas em que se defende dos “comentadores” e alardeia a má consciência dos vilões, abriu a porta à extrema-direita. Instalou a extrema-direita no centro do espectro político. E sem necessidade, como diria o Diáconos. O Chega nunca viabilizaria mais um governo do PS.
No infeliz matrimónio, PSD e Chega arrastarão a democracia portuguesa pelas ruas. O único que percebeu isto na noite da vitória, e nunca subestimemos a inteligência de Marcelo, foi o Presidente. Ao falar nos 50 anos do 25 de Abril, no ano de 2024, o que ele quis dizer foi, a democracia não morrerá às minhas mãos. Acredito nele. Fico contente por ter votado nele.
Olha!
-Afinal a gaja sabe que há décadas antes do Ventura convivemos sem problema nenhum com uma extrema esquerda que defende modelos totalitários que praticam a pena de morte e trabalhos forçados em massa.
Quem te vê a conviver alegremente com o Daniel Oliveira, que passou toda a vida a militar em partidos totalitários enquanto diz que lhe repugna o totalitarismo… Mas só se for o totalitarismo do Ventura claro.
E sim, clarinha, é óbvio que toda a gente sabe que existe um problema grave de criminalidade “de rua” na comunidade cigana e em certas comunidades migrantes. Até tu e o Mamadu sempre o souberam.
São é uns granda mentirosos quando andam a fingir que não sabem. Vá lá, como a vitória do Ventura te está a assustar começaste a ter alguma preocupação em abordar estes assuntos com alguma honestidade.
Haver um problema grave de criminalidade “de rua” nessas comunidades não é nada de mais. Por exemplo a comunidade branca tem problemas graves de criminalidade a outros níveis, como a corrupção massiva da casta empresarial.
E todos nós criticamos as elites brancas.
A diferença é que quando não se pode criticar alguém por causa da cor da pele, começam os tais “zangados” que ironicamente, não gostam de discriminação racial, a ser arrebanhados por demagogos como Ventura.
E finalmente estás a começar a perceber clarinha.
A Clara está apaixonada parecendo uma menina rica perdida de amores pelo rapaz rebelde, só que sem coragem para admiti-lo. Está deslumbrada. E isso faz com que erre propositada e geograficamente o posicionamento partidário com que define os partidos políticos no seu texto. Toda a gente com memória sabe não ter existido diferença nenhuma na governação nos últimos 40 anos entre laranjas e rosas porque tão só são farinha do mesmo saco. Pequenas nuances talvez tenham existido, mais na rama do que no conteúdo, mais na casca do que no caroço, mas com o objetivo comum de restaurar e o repor dos privilégios dos derrotados do 25 A. Ninguém pode negar que a alternância do poder nos últimos anos foi uma questão de cor, entre amigos que frequentam o mesmo restaurante. Assim a Clara econtra a diferença que não existe e nunca existiu entre o que chama de centro-direita e centro-esquerda. Menina, isso não existe e bastará para tanto ler os nomes importantes dos militantes desses partidos. Savar-se-ao os ingênuos militantes “extremistas” que gravitam nas franjas desses partidos mas que nunca encontrarão protagonismo ou importância neles. Se lhes quiser chamar de Centro ainda percebo mas tire lá os acrescentos. Chamar de esquerda o PS é um insulto a esta. E ficar preocupada com a aliança do PSD com o chega, é branquear a aliança do PS com o CDS, ou com o PS com o queijo limiano. Ou já se esqueceu disto?
Boa questão….
Excelente texto. Obrigado.