Três notas sobre a proposta de Orçamento

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 19/12/2019)

Alexandre Abreu

1. A centralidade da inflação

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A inflação está no centro das principais polémicas distributivas em torno desta proposta de Orçamento do Estado. Isso acontece mais do que em qualquer outro OE em muitos anos e deve-se ao facto do Governo jogar com a diferença significativa entre a inflação registada nos doze meses até Novembro de 2019 (0,3%) e a inflação prevista para 2020 (1,0% em termos do Índice de Preços no Consumidor e 1,4% em termos do deflator do PIB).

Os principais afectados por esta diferença são, desde logo, os contribuintes em geral. Ao propor-se actualizar os escalões de IRS em 0,3% num contexto em que a actividade económica deverá crescer 1,4% só por via do aumento dos preços, o Governo propõe-se implicitamente introduzir aquilo que se costuma designar por um efeito de ‘arrastamento fiscal’ (aumento da receita fiscal devido à inflação acima da actualização dos escalões) de muitos milhões de euros. Este efeito tem um impacto positivo nas contas públicas mas afecta negativamente o poder de compra dos contribuintes e é regressivo dentro do universo de quem paga IRS.

Os outros principais afectados são os funcionários públicos, cujos salários serão actualizados em 0,3%, e os pensionistas, com actualizações entre 0,2% e 0,7% (não contando ainda com algum eventual aumento extraordinário), em ambos os casos bastante abaixo da inflação prevista.

O Governo responde com a ideia de prudência: a inflação registada é mais certa do que a prevista. E isso é verdade, mas o Governo não pode ignorar os impactos reais que a inflação prevista, a registar-se, terá para estes grupos – principalmente quando, como sucede com os funcionários públicos, tudo isto sucede após uma década a perder poder de compra.

2. O peso das ausências

A segunda grande marca desta proposta de OE é tudo aquilo que lá não está – em vários casos inexplicavelmente, tendo em conta não só o debate público das últimas semanas como o próprio programa eleitoral do Partido Socialista.

Não está lá a criação de novos escalões de IRS de modo a acentuar a progressividade deste imposto e repor finalmente o número de escalões anterior à alteração regressiva levada a cabo pelo governo PSD-CDS. Não está qualquer alteração ao regime fiscal dos residentes não habituais, que é uma fonte inaceitável de injustiça fiscal, concorrência desleal internacional e pressão sobre o mercado imobiliário. Não está a eliminação séria e consequente das taxas moderadoras na saúde, apenas alguns avanços a passo de caracol. Não está a reposição do investimento público para níveis sustentáveis, pois continua a trajectória de investimento público líquido negativo (investimento público bruto abaixo do consumo do stock de capital público existente, tal como sucede desde 2011). Não está qualquer passo no sentido do englobamento em sede de IRS dos diferentes tipos de rendimentos, de modo a promover uma maior equidade entre trabalhadores e beneficiários de rendimentos de capital. E ainda estamos para ver o que é vai estar em relação ao IVA da electricidade.

3. Um jogo perigoso

Juntando aquilo que está na proposta de OE 2020 quanto à degradação real dos rendimentos de vários grupos e aquilo que não está em resposta a algumas reivindicações básicas de progresso social, a pergunta que há a fazer é: com quem é que o Governo conta para aprovar esta proposta de Orçamento do Estado?

Suponho que não seja com a direita, que está envolvida num processo de disputa interna e recomposição pós-eleitoral que a impede de dar a mão ao Governo. Mas dificilmente será com a esquerda, com quem o Governo se recusou a estabelecer qualquer processo negocial sério e a quem apresenta agora uma proposta de OE financeiramente ortodoxa, que abdica de avançar no sentido da justiça social e que nem sequer faz concessões em medidas com um custo relativamente baixo ou que até dariam mais receita (como o avanço do englobamento) mas que seriam importantes do ponto de vista simbólico.

Como no jogo dos medricas (“chicken”) em que dois concorrentes avançam em carros a alta velocidade em direcção um ao outro, o Governo aposta que alguém à sua esquerda não deixará de desviar-se primeiro – viabilizando o OE – para evitar ficar com o ónus de mandar abaixo o Governo logo no início do mandato, após quatro anos de colaboração e sem uma crise à vista. Porém, o Governo está a dar muito pouco espaço para que o façam: se os partidos à esquerda do PS viabilizarem esta proposta de Orçamento do Estado na sua versão actual, estão a ir contra o seu programa e o seu eleitorado e a abdicar da sua razão de ser.

Se o Governo, na injustificada arrogância de uma maioria apenas relativa, não se empenhar em garantir apoio parlamentar para a aprovação deste Orçamento, há um risco sério de este não ser aprovado e de caminharmos para um ano a duodécimos, enquanto decorrem os prazos constitucionais até novas eleições. O Governo deveria por isso olhar para o exemplo de Espanha, onde a intransigência do PSOE em negociar à esquerda levou apenas ao desperdício de muitos meses e à criação de uma oportunidade de subida vertiginosa para o Vox. É um jogo perigoso e irresponsável.

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