A Nova Guerra Fria e a Venezuela

(Boaventura Sousa Santos, in Público, 06/02/2019)

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O que se está a passar na Venezuela é uma tragédia anunciada, e vai provavelmente causar a morte de muita gente inocente. A Venezuela está à beira de uma intervenção militar estrangeira e o banho de sangue que dela resultará pode assumir proporções dramáticas. Quem o diz é o mais conhecido líder da oposição a Nicolas Maduro, Henrique Capriles, ao afirmar que o Presidente-fantoche Juan Guaidó está a fazer dos venezuelanos “carne para canhão”.

Ele sabe do que está a falar. Sabe, por exemplo, que Hugo Chávez levou muito a sério o destino da experiência socialista democrática de Salvador Allende no Chile. E que, entre outras medidas, armou a população civil, criando as milícias, que obviamente podem ser desarmadas, mas que muito provavelmente tal não ocorrerá sem alguma resistência. Sabe também que, apesar do imenso sofrimento a que o país está a ser submetido pela mistura tóxica de erros políticos internos e pressão externa, nomeadamente por via de um embargo que a ONU considera humanitariamente condenável, continua entranhado no povo venezuelano um sentimento de orgulho nacionalista que rejeita com veemência qualquer intervenção estrangeira.

Perante a dimensão do risco de destruição de vidas inocentes, todos os democratas venezuelanos opositores do governo bolivariano fazem algumas perguntas para as quais só muito penosamente vão tendo alguma resposta.

Porque é que os EUA, acolitados por alguns países europeus, embarcam numa posição agressiva e maximalista que inutiliza à partida qualquer solução negociada? Porque é que se fazem ultimatos típicos dos tempos imperiais dos quais, aliás, Portugal tem uma experiência amarga? Porque foi recusada a proposta de intermediação feita pelo México e o Uruguai, que tem como ponto de partida a recusa da guerra civil? Porque um jovem desconhecido do povo venezuelano até há algumas semanas, membro de um pequeno partido de extrema-direita, Voluntad Popular, directamente envolvido na violência de rua ocorrida em anos anteriores, se autoproclama Presidente da República depois de receber um telefonema do vice-presidente dos EUA, e vários países se dispõem a reconhecê-lo como Presidente legítimo do país?

As respostas virão com o tempo, mas o que vai sendo conhecido é suficiente para indicar por onde surgirão as respostas. Começa a saber-se que, apesar de pouco conhecido no país, Juan Guaidó e o seu partido de extrema-direita, que tem defendido abertamente uma intervenção militar contra o governo, são há muito os favoritos de Washington para implementar na Venezuela a infame política de regime change. A isto se liga a história das intervenções dos EUA no continente, uma arma de destruição maciça da democracia sempre que esta significou a defesa da soberania nacional e questionou o acesso livre das empresas norte-americanas aos recursos naturais do país. Não é difícil concluir que não está em causa a defesa da democracia venezuelana. O que está em causa é o petróleo da Venezuela.

A Venezuela é o país com as maiores reservas de petróleo do mundo (20% das reservas mundiais; os EUA têm 2%). O acesso ao petróleo do Médio Oriente determinou o pacto de sangue com o país mais ditatorial da região, a Arábia Saudita, e a destruição do Iraque, da Síria, da Líbia, no Norte de África; a próxima vítima pode bem ser o Irão. Acresce que o petróleo do Médio Oriente está mais próximo da China do que dos EUA. Enquanto o petróleo da Venezuela está à porta de casa.

O modo de aceder aos recursos varia de país para país, mas o objectivo estratégico tem sido sempre o mesmo. No Chile, envolveu uma ditadura sangrenta. Mais recentemente, no Brasil, o acesso aos imensos recursos minerais, à Amazónia e ao pré-sal envolveu a transformação de um outro favorito de Washington, Sergio Moro, de ignorado juiz de primeira instância em notoriedade nacional e internacional, mediante o acesso privilegiado a dados que lhe permitissem ser o justiceiro da esquerda brasileira e abrir caminho para eleição de um confesso apologista da ditadura e da tortura que se dispusesse a vender as riquezas do país ao desbarato e formasse um governo de que o favorito pró-norte-americano do futuro do Brasil fizesse parte.

Mas a perplexidade de muitos democratas venezuelanos diz especialmente respeito à Europa, até porque no passado a Europa esteve activa em negociações entre o governo e as oposições. Sabiam que muitas dessas negociações fracassaram por pressão dos EUA. Daí a pergunta: também tu, Europa? Estão conscientes de que, se a Europa estivesse genuinamente preocupada com a democracia, há muito teria cortado relações diplomáticas com a Arábia Saudita. E que, se a Europa estivesse preocupada com a morte em massa de civis inocentes, há muito que teria deixado de vender à Arábia Saudita as armas com que este país está a levar a cabo o genocídio do Iémen. Mas talvez esperassem que as responsabilidades históricas da Europa perante as suas antigas colónias justificassem alguma contenção. Porquê este alinhamento total com uma política que mede o seu êxito pelo nível de destruição de países e vidas?

A pouco e pouco se tornará claro que a razão deste alinhamento reside na nova guerra fria que entretanto estalou entre os EUA e a China, uma guerra fria que tem no continente latino-americano um dos seus centros e que, tal como a anterior, não pode ser travada directamente entre as potências rivais, neste caso, um império declinante e um império ascendente. Tem que ser travada por via de aliados, sejam eles num caso os governos de direita da América Latina e os governos europeus, e, noutro caso, a Rússia. Nenhum império é bom para os países que não têm poder para beneficiar por inteiro da rivalidade. Quando muito, procuram obter vantagens do alinhamento que lhes está mais próximo. E o alinhamento tem de ser total para ser eficaz. Isto é, é preciso sacrificar os anéis para não se irem os dedos. Isto é tão verdade do Canadá como dos países europeus.

Tenho-me reconhecido bem representado pelo Governo do meu país no poder desde 2016. No entanto, a legitimidade concedida a um Presidente-fantoche e a uma estratégia que muito provavelmente terminará em banho de sangue faz-me sentir vergonha do meu Governo. Só espero que a vasta comunidade de portugueses na Venezuela não venha a sofrer com tamanha imprudência diplomática, para não usar um outro termo mais veemente e verdadeiro da política internacional deste Governo neste caso.


Director do Centro de Estudos Sociais

 

5 pensamentos sobre “A Nova Guerra Fria e a Venezuela

  1. O senhor Sousa Santos certamente terá muita razão em muita coisa que aponta neste texto e até talvez acerte em alguma das futuras desgraças que prevê irem acontecer na Venezuela. Eu tenho lá familiares luso-descendentes que tenho ajudado como é possível e posso e receio tudo o que lhes possa acontecer. Estavam tratando da papelada para regressar e agora já não sei se os deixarão sair enquanto Maduro ser Maduro como tem sido.
    Para mim o petróleo em abundância e transformado em único recurso de um país é sempre subversivo porque subverte os imperialismos velhos ou nascentes e sobretudo corrompe e subverte as elites internas que se apoderam do poder para enriquecerem pornograficamente. Tem sido assim em todo o lado onde o petróleo jorra como água engarrafada.
    Diz o autor que o Chávez tomou nota do que se passou no Chile e criou as “milícias”. Pois é, este ainda assim soube manter a população activa e forças vivas dos campos e das cidades sem lhes impor administrativamente o que devem produzir e os preços de venda e com isso manteve uma certa unidade elástica na sociedade venezuelana e até ganhar por eleições reconhecidamente livres, contudo, o Maduro, bronco como é aproveitou-se dos esquemas de controlo totalitários iniciados para fazer a normal fuga prá-frente em direcção ao “socialismo real” que é o habitual expediente totalitário dos ditadores.
    O petróleo explica muita coisa mas não tudo e muito menos porque se chega a tal situação como a actual na Venezuela. O petróleo explica o depois e não o antes, explica com lógica clareza a actualidade mas não nos esclarece porque o petróleo, desde o primeiro momento, num país rico dessa matéria prima o não usou criteriosamente para o desenvolvimento e enriquecimento harmonioso dos povos desses países.
    A ganância não é um exclusivo dos imperialismos, é também uma atracção à corrupção interna para o enriquecimento individual pornográfico de elites e famílias inteiras que usam a ditadura para o seu bom uso na arte da cleptocracia.

  2. Que texto tão sábio, tão esclarecedor da realidade na Venezuela. As vozes lúcidas que apelam à PAZ nos países e à não ingerência externa são muito importantes. Já vimos como aconteceu na Líbia,na Ucrânia e na Síria para não falar de outros…em vez do “espalhar da democracia” destruíram-se, assassinaram-se e roubaram-se povos inocentes e países. Tenho apoiado o Governo, mas agora sinto vergonha dele e em especial de Santos Silva. Eu e muita gente não se sente representada por eles. Como é possível que apoiem, à revelia do direito internacional, da diplomacia e do humanismo, um miúdo de extrema direita e passem por cima de todas as regras internacionais?? A Itália não o fez, por exemplo. Portugal coloca em risco milhões de pessoas daquele país e também os nossos emigrantes ao apoiar os senhores da guerra norte americanos que só querem roubar as riquezas da Venezuela. John Bolton já o afirmou claramente. O Governo só perde em apoiar tais criminosos. Não podia estar quieto? Somos assim tão servis? Vergonhoso!! E o dinheiro que vai gastar com esta palhaçada que pode dar em guerra civil? Também quer já mandar armas e tropas portuguesas? Vão vir de lá num caixão e a direita ficará feliz. Estão a dar um claro tiro no pé que lhe pode sair caro e quem pagará a factura seremos nós todos. Repensem a posição portuguesa e coloquem-se ao lado do diálogo e da paz!! Vá, não sejam idiotas úteis.

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