A ditamole

(Daniel Oliveira, in Expresso, 05/11/2016)

Autor

                         Daniel Oliveira

As revelações feitas por François Hollande em “Un president ne devrait pas dire ça…”, um livro de dois jornalistas do “Le Monde”, estão a causar um terramoto político em França e no Partido Socialista Francês (PSF). O livro revela um presidente ideologicamente desorientado e sem qualquer sentido de Estado. No entanto, a ideia de que este livro é um suicídio político para Hollande e para o PSF parece-me otimista. Faz crer que um e outro ainda estão vivos, o que é manifestamente exagerado. O PSF é hoje uma vaga e desfocada memória do passado, Hollande o seu patético estertor. Nenhum partido consegue representar de forma tão eloquente a preocupante decadência da social-democracia europeia.

O que mais nos interessa neste livro é a confissão de que França combinou com a Comissão Europeia aldrabar as previsões do défice. Sempre previsto abaixo dos 3% e sempre com a certeza partilhada de que esse número não era para cumprir. Em 2014, perante a certeza de que tal meta não seria cumprida no ano seguinte, a Comissão Europeia terá dito a Hollande: “Nós preferimos que vocês apontem para os 3% porque desse modo podemos fazer frente a outros países (…), não vos atacaremos.” Um desses países era, como sabemos, Portugal. Tratou-se de um acordo secreto para isentar a França dos limites ao défice e esconder essa decisão para poder continuar a exigi-los a países politicamente mais fracos. Isto foi acordado com Durão Barroso, que no livro é retratado como um homem fraco e fácil de vergar (a sério?), mas continuou com Juncker. Isto vai resolver-se de forma simples: durante uns tempos ninguém chateia ninguém — Juncker já fez saber que Portugal não vai sofrer sanções nem corte de fundos — e depois volta tudo ao normal. Mas se o normal não fosse apenas o habitual, Barroso e Juncker estariam em maus lençóis e todas as regras orçamentais da zona euro seriam revistas.

Numa democracia nacional a revelação da subversão negociada e seletiva das regras levaria a um terramoto político. Só que a União não é uma democracia. É um corredor onde habitam milhares de burocratas, lobistas e políticos que não têm que lidar com a maçada das eleições. Tudo se resolve no torpor de reuniões que ninguém vê, conversas que ninguém ouve, relatórios que ninguém lê.

Como entidade democrática, a União Europeia é uma fantasia. Tem os poderes de um Estado mas é, contrariamente, dirigida pela opacidade dos jogos diplomáticos. E é por não ser uma democracia, por não ter mecanismos de controlo de poder, por não ter nem povo, nem executivos que respondam perante ele, nem oposição, nem governo, e ainda assim ter poderes que só damos aos Estados, que a União põe em perigo os alicerces das democracias nacionais, construídos com tanto sofrimento e luta. Nela, as regras são seletivas, o que permite aos Estados mais fortes determinarem todas as políticas fundamentais dos Estados mais fracos. A mesma Comissão que fez este acordo secreto tem, sem qualquer mandato político, poder sobre o documento essencial em democracias representativas: o Orçamento do Estado. Por coisas como estas se fez uma revolução nos EUA. Sentem alguma agitação nas capitais europeias? É por isso que, por mais que me incomode a retórica que levou ao ‘Brexit’, não consigo criticar os ingleses. Estarão a crescer na sua democracia os piores sentimentos. Mas ao menos têm uma democracia.

Um pensamento sobre “A ditamole

  1. Pois claro, ó Daniel, têm imã democracia, os USA também, Portugal idem aspas aspas!…é só democracias. É democracias democráticas! Era só o que faltava era que não fossem assim, não é verdade ó Daniel?!?!
    É o Zépovinho, ó Daniel? …onde é que está colocado nessas democracias???
    Mas o CAPITALISMO não existe, sequer, não é verdade ó Daniel?!?!?…quanto mais estar aí em vigor desde há mais de 400 anos!…só que, ao que parece, passa ao lado do Daniel, e assim, desse modo, lá vamos cantando e rindo, levados, levados sim!….

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