(Nicolau Santos, in Expresso, 09/07/2016)
O ‘Brexit’ é um míssil contra o porta-aviões europeu, cujo rating já baixou em dois níveis e que pode ter consequências mais devastadoras do que a crise financeira de 2008. O Deutsche Bank é uma bomba ao retardador na estabilidade do sistema financeiro mundial, segundo o FMI, e os seus efeitos podem ser superiores à falência do Lehman Brothers. Mas, para a Comissão Europeia, o facto de Portugal e Espanha não terem cumprido as metas orçamentais de 2015 (no caso português por apenas 0,2 pontos) é que ocupa toda a sua energia e a agenda mediática.
Como é óbvio, há um profundo mal-estar na Comissão Europeia por causa destas eventuais sanções. Em primeiro lugar, porque nunca foram aplicadas antes, quando havia razões para o fazer (e Alemanha e França foram as primeiras a furar o Pacto); em segundo, porque há um manifesto tratamento discriminatório entre Portugal e Espanha, por um lado, e França, por outro; em terceiro, porque não há qualquer procedimento contra a Alemanha, pelos sucessivos excedentes comerciais que tem vindo a acumular, apesar de lhe ter sido aberto um processo pela Comissão Barroso; e, em quarto, porque nestas matérias tem sido sempre considerado que o importante é a trajetória do défice e da dívida e não os valores apurados em cada momento (se não fosse assim, grande parte dos Estados-membros estaria a ser sancionada porque tem um rácio dívida pública/PIB acima dos 60%).
Todo este processo já está a funcionar como uma forte sanção a Portugal — na reputação e imagem externa do país — como a subida dos juros da dívida pública mostra
Esta semana, os comissários Valdis Dombrovskis e Pierre Moscovici tentaram dourar a pílula: que a Comissão Europeia reconhece os esforços e os sacrifícios que Portugal e Espanha fizeram para reduzir o défice nos últimos anos; que constata, contudo, que não cumpriram aquilo com que se tinham comprometido para o défice em 2015; que, no entanto, a Comissão não decidiu nada sobre sanções — o que fez foi passar a sua constatação ao Ecofin; se o Ecofin a confirmar, a Comissão enviará a sua proposta de sanções para o Conselho Europeu, mas será este a decidir — e pode reduzi-las, aplicar uma sanção simbólica ou não aplicar nenhuma.
O problema é que todo este processo já está a funcionar como uma forte sanção a Portugal — na reputação e imagem externa do país, no aumento do risco, na fuga de investidores —, como a subida das taxas de juro da dívida pública demonstram. O seu objetivo não é sancionar as contas de 2015, mas sim as orientações económicas de 2016. É isso que a linha dura neoliberal que domina em Berlim e no Eurogrupo pretende: causar dificuldades ao Governo português, obrigá-lo a ajoelhar, submetê-lo aos seus ditames — ou, em última instância, contribuir para o seu derrube. Os países não têm amigos, têm interesses. Na Europa, há muito que deixou de haver amigos. Há hipocrisia e vingança. E interesses pouco claros.
O cluster da indústria aeronáutica
O investimento em Évora e Alverca da empresa de aeronáutica brasileira Embraer (€400 milhões em onze anos) mostra agora os seus primeiros resultados com a apresentação do KC-390, um avião de transporte militar. O projeto tem tudo o que Portugal necessita: investimento estrangeiro estruturante, que potencia a afirmação de um cluster português na indústria aeronáutica, baseada nas indústrias de moldes; colaboração entre um laboratório do Estado, o CEIIA (Centro de Excelência e Inovação da Indústria Automóvel), as OGMA — Indústria Aeronáutica de Portugal, que fabrica a fuselagem central do novo avião e outras 14 empresas nacionais; a criação de 350 empregos altamente qualificados; e a utilização intensiva da engenharia portuguesa, que contribuiu com mais de 450 mil horas de trabalho de trabalho. É deste tipo de projetos, que deem origem à criação e desenvolvimento de novas fileiras industriais e à valorização dos nossos recursos humanos que precisamos. E se não eles não surgem da Europa, ainda bem que vêm do Brasil.
Por uma sociedade decente
Eduardo Paz Ferreira tem o enorme mérito de ser o grande dinamizador do debate sobre a crise de 2008 e das suas devastadoras consequências para a vida de milhões de pessoas. Mas o presidente do IDEFE e professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa tem, ele próprio, escrito sobre esses anos de chumbo. O seu mais recente livro, “Por uma Sociedade Decente”, termina com “uma proposta modesta”, meia dúzia de ideias contra a corrente. É necessário repensar o funcionamento e recuperar os valores da União Europeia; repor a centralidade do Estado como criador de equilíbrios e na luta contra as desigualdades, pela proteção social, pela modificação da fiscalidade e pelo fim dos offshores; combater os efeitos negativos da inovação tecnológica e das alterações climáticas; e que todos aceitemos trabalhar menos, por menos dinheiro, para que mais pessoas possam trabalhar. “Parece utópico. Parece ingénuo. Mas o modelo oposto só trará terror e desolação”, conclui Eduardo Paz Ferreira. É de leitura obrigatória.
Muitas vezes me tenho perguntado
o que faz com que os filmes tenham sempre
inspirado os poetas.
Responder é ser poeta e eu não sou
mais do que um observador admirado e perplexo
tantas vezes desatento aos presságios dos olhares
e indiferente aos subtis apelos dos rostos quotidianos
mas atento às sombras móveis do écran
onde as paixões simuladas dos actores
as lágrimas fingidas
os sorrisos emprestados
e a coragem dos heróis de hora e meia
me comovem como se assistisse ao espectáculo da vida
a roubar à morte o seu império.
É que ninguém nunca mais apagará
do frágil celulóide da memória
o olhar míope de James Dean para Julie Harris
o andar infalível de Henry Fonda em “O.K. Corral”
a sombra do chapéu sobre o rosto dividido de Ingrid Bergman
quando Bogart a manda embarcar no avião em Casablanca
o fio de saliva de Marilyn
pobre corista debruçada sobre um balcão do Texas
à espera de ser salva por um príncipe
vestido de vaqueiro.
O que todos sabemos nessa altura
incluindo os poetas transformados
por um instante em mortais espectadores do milagre
é que esses seres cuja vida parece depender
dum ténue foco de luz que atravessa
a poeira da sala
têm uma presença de deuses do Olimpo
mais vivos do que nós.
Nós que voltamos a enfrentar a chuva e o vento
à saída do cinema
e a suportar o peso insuportável
de estarmos vivos outra vez
para além da ilusão.
Nós que não podemos pousar eternamente
numa cadeira de cinema
o pesado fardo que é a total consciência
de termos um corpo vulnerável
e uma volúvel coragem.
Nós que não podemos esquecer a morte para sempre
como fizemos nessas horas breves
em que outros seres magníficos e perfeitos
nos confortaram na convicção inabalável
e sem preço
de que repetirão os mesmos gestos
sublimes
o mesmo olhar míope
o mesmo andar cativante
e dirão sempre aquela frase que deles esperamos
de cada vez que os voltarmos
a encontrar.
É esse talvez o mistério
dos filmes
que tanto comovem
os mortais poetas
que como nós
abandonam a vigília por momentos
nas salas de cinema:
ao contrário da vida cruel e imperfeita
e da traição imperiosa dos amantes
esses seres do ecrã — deuses que são —
nunca nos poderão desiludir
(António-Pedro Vasconcelos, ‘Da imortalidade’, poema inédito, 23/10/1985)
Obrigada pelo lindo texto de António-Pedro Vasconcelos sobre a magia do cinema.
As sanções contra o Portugal 2016 de António Costa são de facto uma vergonha desta Europa PPE e de todo o que gravita à volta. E claro tal como o Eduardo Paz Ferreira, eu (e muita gente suponho) ansiemos por “uma sociedade decente”