O retrato de Dorian Gray

(Daniel Oliveira, in Expresso, 08/04/2016)

Autor

                              Daniel Oliveira

O capitalismo financeiro global não se sujeita às leis nacionais e não teme qualquer meio de coação das leis internacionais. O que o torna incontrolável. Quando Francisco Assis, para reagir a esta minha convicção, me compara a Marine Le Pen e prescreve a social-democracia para regular os excessos, demonstra não compreender que o mundo mudou muito e também mudaram a fronteiras ideológicas do passado. A social-democracia só sobreviverá se conseguirmos recuperar alguns espaços nacionais de poder em que as democracias se sustentam. Mas Assis não é o único que ainda vive no doce embalo das memórias do século XX. Vemos bancos falirem e não compreendemos como podem falhar tão clamorosamente as instituições de regulação nacionais que aperfeiçoámos durante décadas. Vemos a desigualdade fiscal aumentar, obrigando a classe média a suportar sozinha o fardo da despesa pública, e aceitamos que o problema está na despesa pública que nos garante hospitais, escolas, polícias, juízes e pensões, e não nas empresas e nos milionários que legalmente conseguem fugir ao pagamento da sua parte da fatura. Vemos uma confluência entre o poder financeiro e o submundo da criminalidade e não compreendemos como a lei tem tanta dificuldade em distinguir mafiosos de homens de negócios. Há um erro de escala: para continuarmos a controlar o capitalismo ou limitamos a sua globalização ou globalizamos a democracia. A primeira é muito difícil, a segunda é impossível.

As democracias ocidentais mantêm, apesar da crise de confiança, um ar respeitável. Por vezes há banqueiros que são presos, há leis e reguladores, há impostos e crimes fiscais. E não estamos totalmente anestesiados. Ao contrário do que acontece na Rússia, na China ou na Arábia Saudita, o primeiro-ministro islandês demitiu-se depois de ser apanhado neste arrastão jornalístico. Porque os cidadãos não precisam de saber se há alguma ilegalidade na existência de uma empresa offshore para a considerarem ilegítima. No entanto, este consenso público não leva os Estados a combaterem os paraísos fiscais, que oferecem a quem os procura duas vantagens: fuga ao fisco e segredo sobre a origem, destino e titularidade do dinheiro. As duas, na ética política e económica que sobreviveu do século XX, são ilegítimas. As duas, na realidade do capitalismo financeiro globalizado do século XXI, são essenciais.

No Panama Papers estão todos os pecados banais do capitalismo moderno. Pecados que vivem longe do olhar cândido dos cidadãos, entretidos com indignações domésticas. Em privado, o dinheiro não conhece a lei e empresários e políticos tidos como honestos vivem paredes-meias com traficantes. Em público, os mercados são fiscais do bom comportamento das nações, os avençados da banca são oráculos da opinião pública e exigem-se aos governos reformas que libertem a economia do espartilho do Estado.

Não foi a descoberta de um escândalo que levou à indignação global desta semana. Para haver escândalo é preciso haver surpresa. O choque foi o mesmo que Dorian Gray sentiu quando destruiu o quadro onde repousavam os seus vícios e que permitia que ele se mantivesse jovem e belo aos olhos de todos. Esta semana, o mundo viu o rosto do capitalismo à solta, liberto dos limites das leis dos Estados. Viu o seu próprio rosto. Tão envelhecido como o mais banal dos crimes.

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