O óbvio, menos óbvio, disparates e imperfeições

(António José Teixeira, in Expresso Diário, 15/10/2015)

António José Teixeira

(Nota: Não sei se António José Teixeira é de esquerda, de direita ou do centro. Apenas sei que este texto, em relação ao unanimismo alinhado e propagandístico que vai ululando pela comunicação social escrita e televisionada, é de destacar. No meio de tanto ruído e propaganda encapotada e servida como sendo informação, este texto de AJT é um texto limpo, sério e refletido. Uma pérola no meio do enviesamento pafioso que vai grassando pelo Expresso, jornal que já foi dito “de referência” mas é cada vez mais “de reverência”. AJT ainda é dos poucos que restam pelo Expresso com autonomia para pensar pela sua cabeça. Eu não sei, é se já não haverá alguém a segredar entredentes, qual Cícero: “Quo usque tandem abutere, António José Teixeira, patientia nostra?”) – Estátua de Sal, 15/10/2015.


Pois é. Passos Coelho tem razão. O PS perdeu as eleições e passou esta semana em tamanha ronda de contactos que até parece que foi ele que as ganhou. É óbvio que o Presidente da República se deixou ultrapassar. Menos óbvio é o convencimento do PSD e do CDS de que a sua manutenção no poder é inquestionável. Menos óbvia é também a capacidade de iniciativa de António Costa. E ainda menos óbvia é a disponibilidade do PCP para viabilizar um governo PS sem por condições. É talvez por esta soma de situações menos óbvias que se têm dito tantos disparates. Um deles é a ideia de que uma solução governativa que não passe pelo partido vencedor das eleições é ilegítima. A representação do eleitorado não são os deputados do vencedor. A representação dos portugueses é a totalidade da Assembleia da República. E como não há votos mais importantes do que outros também não há mandatos mais ou menos importantes. Não há nada que impeça entendimentos, a não ser a vontade dos próprios deputados. Os governos podem ser feitos à direita e à esquerda e só cumprirão a legislatura se o Parlamento o permitir. O Presidente da República não é politicamente responsável pelo governo, apenas pode demiti-lo se estiver em causa o regular funcionamento das instituições.

Outro disparate é a ideia de que um entendimento do PS com os partidos à sua esquerda trai o eleitorado. Não se considera o mesmo se o PS se entender com a coligação. O PS não disse na campanha eleitoral que se apoiaria no BE e no PCP. É verdade. Nunca determinaremos em absoluto a motivação de cada um dos votos. Mas alguém poderá dizer, sem nos rirmos, que os votantes socialistas exprimiram a suas vontades a pensar na coligação? Se pensaram, foi decerto para a contrariarem… Ou alguém deu conta nesta campanha de um qualquer indício de de colaboração do PS com a direita? Dir-se-à que não nunca poderemos assegurar que o voto no PS tinha uma largura de banda que apanharia inevitavelmente o BE e o PCP. Também é verdade. Ainda assim, importa recordar dois factos. António Costa contestou há muito o designado ‘arco da governação’, associado a três exclusivos partidos: PSD, PS e CDS. Fez questão de dizer que ninguém pode ser excluído de uma solução governativa, nomeadamente o PCP e o BE. Mais, prometeu chumbar um Orçamento da coligação, o que lhe valeu muitas e justificadas críticas… Aqui chegados, fazem pouco sentido as críticas morais ou de legitimidade. Farão sentido, obviamente, todas as observações políticas. É de política, afinal, que se trata. Apenas isso.

Qualquer solução de governo deve assegurar condições de estabilidade e compromisso com as nossas responsabilidades internas e externas. No horizonte apenas se vislumbram duas soluções plausíveis. Um governo minoritário da coligação ou um governo minoritário do PS

O diálogo à esquerda, encetado por António Costa, poderá produzir um governo. Não é certo. Certo é que deixará fissuras graves no PS. Há traumas vivos do passado e figuras importantes que têm dificuldade em virar a página. E há também divergências profundas não negligenciáveis. Pior, vire à direita ou à esquerda, a divisão do PS é inevitável. Na derrota, o partido charneira é uma escapatória vital. E um risco enorme. Só um acordo blindado com os partidos à sua esquerda e um governo bem sucedido podem garantir alguma coesão. E ainda assim… Tenho dúvidas sobre a consistência de um governo destes. Mas estou certo de que é um insulto à inteligência e à democracia a ideia de que só pode haver governos da direita até ao PS. Quando as diferenças são grandes impõe-se ainda maior racionalidade. Ao Bloco de Esquerda e ao PCP passou a não lhes ser indiferente um governo de direita ou um governo PS. Se os socialistas não fizerem o possível por tirar partido desta atitude sem precedente dificilmente voltará a abrir-se nova oportunidade à esquerda. As motivações do PCP e do BE serão as mais oportunistas – quais não são no jogo político? – mas nem por isso deixam de ser um contributo importante para a respiração do nosso sistema democrático. Induzem abertura, mudança, renovação, menos barreiras ao compromisso.

Qualquer solução de governo deve assegurar condições de estabilidade e compromisso com as nossas responsabilidades internas e externas. No horizonte apenas se vislumbram duas soluções plausíveis. Um governo minoritário da coligação, mais forte por si só, mas insuficiente, sempre dependente do PS. Ou um governo minoritário do PS, menos forte por si só (não ganhou as eleições), mas com apoio maioritário em questões essenciais. Tudo indica que Cavaco Silva nomeie Passos Coelho, ainda que seja confrontado com uma alternativa mais forte. Mesmo perante uma rejeição de um governo da coligação, talvez seja tentado a impedir um executivo alternativo em nome de um alegado ‘governo contra natura’. Em democracia não há governos contra natura. Haverá governos que o Parlamento não suporta. Pode um Presidente da República deixar um governo falhado em gestão, havendo uma solução com apoio maioritário? Pode. Mas não deve. O País não tem tempo a perder. E os riscos da democracia são inerentes à sua imperfeição.

13 pensamentos sobre “O óbvio, menos óbvio, disparates e imperfeições

  1. Admiro acima de tudo a forma como leva os seus entrevistados a dizerem o que pensam sem qualquer tipo de pressão. A sua entrevista faz-me lembrar Joaquim Letria (hoje não) no pós 25 de Abril. São coisas sérias sem servir o estabelecido. Tinha lido o texto e gostaria de poder saber dizer, sobre o mesmo, o que foi dito por si. Nem todos temos a mesma capacidade de exprimir o pensamento mas sem sombra de dúvida estou plenamente de acordo com o texto e o que escreveu sobre o mesmo.

  2. A ideia da golpada radica de uma visão futebolística da Política. O PS perdeu as eleições e logo (‘ai dos vencidos’) tem que servir de muleta à Direita para ela continuar a fazer mais ou menos o mesmo. As intenções de Costa a este respeito eram absolutamente claras e não votei seguramente nele para o PS agora capitular sem dar luta. Pode bem ser que o PS tenha mesmo que deixar passar um Governo da Direita, por falta de Convergência à Esquerda, mas pelo menos a Direita que deixe de tentar assassinar politicamente Costa ou tentar falar em nome dos eleitores do PS. Quem não votou no PS e disse dele cobras e lagartos durante a Campanha (incluindo a Esquerda que está agora a negociar) deve deixar que sejam os Socialistas a decidir o que devem fazer a seguir…

  3. O que tenho dito desde 5 outubro , o que já me valeu alguns aborrecimentos com ” Socialistas ” ! Claro que jornalistas assim são escassíssimos no nosso Panorama Jornalístico ! Já tinha lido o artigo mas agradeço as suas Pertinentes observações e obviamente concordo ! Os melhores cumprimentos

  4. Nunca me imaginei a dizer isto mas, lá vai:
    na actual conjuntura, RADICALMENTE DE CENTRO !!!.
    As virgens da dita esquerda radical, que nunca pecaram e que sempre que lhes deu jeito, foram as primeiras a atirar-me as pedras, agora querem-me
    As promiscuas da direita, que sempre me desdenharam e me queriam por uma noite só, agora desejam-me acasalada com elas
    eu que só pretendo passar de cabeça erguida, distribuindo sorrisos à esquerda e à direita, balouçando o arame, amasso aqui, beliscão acolá, entre promessas, apenas promessas de um “menage à trois”.
    AC, acredito que o capital politico se consolida quando lideramos sózinhos nos momentos mais dificeis.

  5. Mas será que não jornalistas/entrevistadores destes na televisões?… que se deixam ir na conversa dos entrevistados que, com voz firme, olhar arregalado e argumentação aparentemente bem apresentada, os levam a aceitar sem questionar? Mas será que esta questão da coligação após as eleições é assim tão grave?!… Quem ainda está a governar não foi assim que fez? Inúmeras vezes ao longo desta nossa ainda jovem democracia!

  6. Ora bem. Eu até concordo com grande parte do que AJT escreve. Mas no fundo aborda o tema de uma forma superficial com uma análise predominantemente pragmática e politica. Mas o problema está nos detalhes onde mora o DIABO e o caminho passa por lá. É óbvio que existe uma maioria parlamentar composta por PS,PCP e BE, é só fazer as contas. Mas não podemos ficar só por aí. Muito mais à que aferir nos tais detalhes que podem fazer toda a diferença. Convenhamos que por de acordo os 3 partidos de esquerda exige uma ginástica muito dura. E sem conhecermos em pormenor os tais detalhes não sabemos bem onde nos vamos meter. Não sei porquê mas isto faz-me lembrar a história do Capuchinho Vermelho (escolham quem é o Capuchinho e o Lobo Mau). O tema comum que é falado pelos 3 partidos é a anti austeridade, mas como, a que preço, e no resto não se mexe ?. E à que analisar os porquês, os antecedentes próximos e mais longínquos para tentar perceber o que se passa. Depois o PCP e o BE não querem lugares no Governo, o que isto quer dizer ou encobre ? Qualquer politico que se preze tem ambição de poder. O Costa diz que derrubou os últimos pilares do muro de Berlim para impressionar os incautos. Tudo isto e muito mais é mais que suficiente para causar sérias dúvidas de que um governo com estes intervenientes dê certo. Eu no fundo até que gostaria de um governo de esquerda mas assim o risco é muito grande, não inspira confiança e é disto que se trata.

  7. Um texto bem urdido,mas de evidencias.
    Depois da abertura inesperada para o PS e PCP,dialogarem,um duplo/triplo(BE) salto mortal,interessaria, como na ginástica, saber, visualizar a sua execução, ou seja,o que poderá ser o PS no Futuro, e quais as consequências dessas mudanças para Portugal?

    Embora isto seja bastante futurologia é mais interessante que os jogos florais.

    Deixo o registo,aqui na net.

    O que importaria era uma análise profunda ao que se está a passar e porquê, e que caminhos/descaminhos(?) abre para o Futuro,,sobretudo quanto à vida.renascer da matriz social-democrática do PS,ou sua morte.?
    andrade da silva

  8. Gostei mesmo sem a sua leitura total!
    Fa-lo-eu na viagem de comboio de regresso a Figueira da Foz.
    Não me admira a honestidade deste homem. Também por isso a intelectual.
    Conheço os seus pais e irmão.
    Gente honesta e Boa. DA GUARDA!

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