Os cães de guarda

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 14/10/2015)

         Daniel Oliveira

                        Daniel Oliveira

Recentemente Arons de Carvalho escreveu um texto no “Público” onde demonstra como, ao contrário do passado, em que havia jornais sem alinhamento político, outros alinhados à esquerda e outros alinhados à direita, hoje temos apenas jornais mais ou menos desalinhados e jornais claramente posicionados à direita. Apesar de considerar que se trata de um problema democrático, conseguiria viver com isto se os jornalistas mantivessem intacto o rigor informativo e não cedessem a agendas estranhas ao seu próprio ofício. Acontece que não é isso que se está a passar. Não foi isso que se passou na campanha eleitoral, não é isso que já se está a passar na campanha presidencial – deixo para outro momento o gravíssimo episódio da despedida de Marcelo Rebelo de Sousa, na TVI, poucos dias depois de se lançar na corrida a Belém – e, acima de tudo, não é isso que está a acontecer no acompanhamento do processo negocial para a possível e legítima formação de um governo de esquerda.

A total ausência de equilíbrio no comentário político – já assisti a vários debates televisivos onde todos os participantes se opõem aos entendimentos à esquerda é apimentada por manchetes sensacionalistas que lançam o pânico, simulando um ambiente pré-PREC.

Com uma queda de 2% no PSI-20 (no início de setembro caiu 2,5% por causa da incerteza na economia chinesa, sem que isso merecesse grande atenção) o “Correio da Manhã” permitiu-se este título: “Medo de Catarina assusta a bolsa”. Mas não seria honesto fazer uma análise do comportamento da comunicação com base num pasquim. Sou exigente e por isso tenho de referir um dos melhores jornais portugueses: aquele onde escrevo. No site, um título anuncia: “Ações descem e juros sobem com medo de um governo de esquerda”. Uma frase arriscada, já que não é fácil estabelecer relações causais evidentes, de uma forma que um jornalista possa afirmar ser objetiva. Ainda mais porque o próprio texto modera essa certeza, explicando que a bolsa nacional “também é afetada pela descida das pares europeias, que seguem a tendência já registada na Ásia” e referindo que “novos dados negativos na China reforçam receios sobre o crescimento da economia a nível mundial”. Na realidade, sem que nada de especial tivesse acontecido, os juros da dívida portuguesa estavam ontem de manhã a subir a dois anos e a cair a cinco e a dez anos. O que terá acontecido ao governo de esquerda que explique isto?

Helena Garrido, uma das mais ferozes defensoras do atual Governo, ajudou a lançar, no “Jornal de Negócios”, o pânico. Dados financeiros absolutamente naturais perante o cenário de incerteza política são transformados numa catástrofe sem precedentes. Não é a primeira vez. Já aconteceu antes, quando, perante a possibilidade de queda do anterior governo, no episódio “irrevogável”, os defensores de Passos Coelho se juntaram para mostrar que os efeitos do BES e do BPN eram uma brincadeira de crianças quando comparados com os efeitos de qualquer mudança política em Portugal.

O alinhamento editorial contra a possibilidade de um entendimento à esquerda (totalmente natural na generalidade das democracias europeias) atravessa a generalidade da comunicação social. Do “Público” ao “Correio da Manhã”, da TVI à SIC, passando pelo “Expresso” e pela TSF. Não me espanta. Estamos a falar numa alternativa real. Agora é a doer. António Costa, se insistir neste caminho, vai ficar a perceber quem manda e como manda. E como a maioria dos supostos “livres pensadores” não se atrevem a desalinhar com a posição de quem manda.

Acompanhar a campanha eleitoral e acompanhar estes momentos tem sido muito instrutivo sobre o estado em que se encontra a comunicação social portuguesa. Não vou aqui apelar a tempos do jornalismo imaculado, em que a maioria dos jornalistas resistia sem vacilar aos poderes político e económico. Esses tempos nunca existiram. A comunicação social não é, nunca foi, um contrapoder. É um palco onde os poderes se digladiam e onde domina o mais forte. Mas não tenho memória de, em democracia, ter visto uma comunicação social tão alinhada com o poder.

Os jornalistas parecem acreditar que a partir de uma determinada fronteira estão dispensados de qualquer isenção política. Catarina Martins, extraordinária quando roubava votos ao PS e podia assim permitir a vitória da coligação, passou a ser uma perigosa radical quando começou a garantir uma maioria de governo. Catarina, a revelação, passou a ser Catarina, a destruidora da bolsa nacional. Nada disse de novo. Pelo contrário, até moderou o discurso.

Recordo-me de Paulo Rangel ter falado da “asfixia democrática”. Entrei para um jornal em 1989. Não me recordo, nestes 26 anos, de ter alguma vez sentido um ar tão difícil de respirar no pluralismo informativo. Sentiu-se na campanha eleitoral, com uma vergonhosa parcialidade em quase todos os órgãos de comunicação social, e continua a sentir-se agora, com um cerco a um processo negocial legítimo, onde é quase impossível ouvir na televisão alguém a defender esta solução. Carlos Silva e Sérgio Sousa Pinto foram transformados nas mais relevantes figuras do Partido Socialista, deixando para segundo plano figuras secundárias como Carlos César, Ferro Rodrigues, João Soares ou António Arnaut.

A questão a que os jornalistas têm de responder é se querem ser o mensageiro ou uma parte na contenda. Depende da escolha que fizerem a sustentabilidade dos órgãos de comunicação social onde trabalham.

O título deste artigo é inspirado no livro do jornalista Serge Halimi, sobre o papel dos media, “Os novos cães de guarda”.

4 pensamentos sobre “Os cães de guarda

  1. Cães de guarda de quem? Das várias expressões da classe dominante, a dita burguesia, cujo nome raramente é pronunciado como a quererem calar a sua opressora existência… Um nojo estes media…

    • Se a grande maioria das pessoas tem a opinião que escreve e descreve aqui, pergunto-me porque será? Será que são todos uns mentecaptos antidemocratas e cuja opinião apenas a é porque não respeitam a democracia? Ou será que corresponde ao sentimento maioritário das pessoas que no dia 4 foram exercer o seu direito de voto? Se fossem todos fiéis subservientes da solução que defendem ainda se entenderia, tentar, explicar a sua opinião com a antidemocracia. No entanto o que se repara é que as, quase, únicas opiniões que divergem da maioria são precisamente as das forças que estão a tentar conseguir este arranjo de governo (e mesmo assim nem de perto nem de longe unânimes no interior dessas forças).

      Estará toda a gente enganada?

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