(Daniel Oliveira in “Expresso Diário”, 25/02/2015)
Festejavam, por essa Europa fora, os partidários da via única e indiscutível da austeridade a derrota histórica do Syriza. Nada sobrava das suas promessas, provando-se que levantar a cabeça à Europa só nos poderia levar a um beco sem saída. Na melhor das hipóteses, claro. Mais certo seria ser um precipício que atiraria quem se atrevesse a tanto para fora do euro. Até que chegou da Grécia a lista de propostas de Tsipras e Varoufakis. A evidência da sua justeza é tal que quase deixa desconsertado quem tem defendido o indefensável. O “conto de crianças” é afinal o óbvio. E é o óbvio que a Europa se tem recusado a ver.
Infelizmente, a propaganda e a ideologia fazem o seu caminho, transformando um acordo onde nenhuma nova medida de austeridade é imposta em troca de financiamento numa estrondosa derrota do governo grego. Uma narrativa bem resumida aqui no “Expresso”, num texto em que se desafiam as leis da física dizendo que Varoufakis “mantém o recuo”. Ou o Syriza conseguia tudo ou, mesmo que conseguisse o que nunca ninguém conseguiu, tinha uma derrota. Só ganhava se não negociasse. Claro que se não negociasse não havia acordo. Perdia sempre. É assim que se disfarça a derrota de que a tese de que lutar conduz os países á desgraça. Não só não houve desgraça como houve ganhos. Só ganhos, na realidade.
A prioridade absoluta do governo grego vai para o combate à corrupção, à lavagem de dinheiro, ao contrabando e à cunha e compadrio no recrutamento de funcionários do Estado. Mais do que o fisco esmifrar os trabalhadores, como faz em Portugal (enquanto reduz o IRC, recorde-se), o compromisso é combater a evasão e tornar a política fiscal mais justa, simples e equilibrada. Há mesmo o compromisso de criar uma base de dados da riqueza que ajudará as autoridades tributárias a aferir da veracidade dos rendimentos declarados. O ataque à evasão fiscal terá especial atenção, explícita na proposta, para os setores mais abastados da Grécia.
Os cortes na despesa far-se-ão sobretudo através da racionalização do que não corresponde a salários e pensões. Há um compromisso de combate à fraude nos benefícios sociais. Vão ser eliminadas as perversidades que existem na segurança social grega e que tantas anedotas mais ou menos distantes da realidade provocaram, trabalhando para a sustentabilidade do sistema de pensões. O governo compromete-se a garantir assistência especial aos trabalhadores entre os 50 e os 65 anos, com um esquema de Rendimento Básico Garantido, travando assim a pressão política e social para as reformas antecipadas. Assim se impede que a alternativa à reforma antecipada seja a fome. Aponta para o fim dos cortes salariais na administração pública, mas racionalizar e reduzir a multiplicação de benefícios não salariais.
O que a Grécia conseguiu nas piores circunstâncias possíveis pode perfeitamente ser superado por qualquer outro governo. É mesmo só uma questão de vontade política.
Sem se concentrar apenas na dívida pública, quer “reestruturar” as dívidas privadas das famílias e das pequenas empresas. Distinguindo calotes estratégicos e incapacidade de pagar; e empresas e indivíduos com comportamentos criminosos (sobretudo nos grupos de maior rendimento) das que têm reais riscos de falência. Este esforço inclui colaboração com os bancos com vista a alterar o seu comportamento junto de pequenos proprietários de casas com reais dificuldades de pagar o seu empréstimo ao mesmo tempo que se punem os caloteiros que aproveitam o momento.
Em vez de, como tem sido costume, se prometerem mais e novas privatizações, garante-se que serão revistas as que ainda não foram iniciadas. Um recuo extraordinário, dizem os que defendiam que a continuação das privatizações era impossível de travar. Irão ser procuradas garantias que a provisão de bens e serviços fundamentais que dependem de empresas privatizadas estarão garantidas.
Na lei laboral é-se propositadamente vago. Reafirmando a morte da troika (já garantida com a saída do FMI de tudo isto), os novos parceiros técnicos nesta área serão a OCDE e a OIT, com políticas muito mais sensíveis a preocupações sociais do que os do passado. Podem escrever o que quiserem: a Grécia deixou de negociar com os burocratas da troika. A troika morreu, como até Jeroen Dijsselboem já reconheceu. A parte relativa ao trabalho temporário para desempregados pode ter, como sabemos pela nossa experiência, várias interpretações, nem todas boas. Só o tempo dirá para onde vai. Apesar do linguajar europeu cuidadoso, o aumento faseado do salário mínimo está garantido dando, mais uma vez, um papel técnico central à OIT. Assim como o parceiro para combater as barreiras à competitividade e desburocratizar o Estado será a OCDE.
Muito da política de emergência definida pelo Syriza no “Programa de Salónica”, que passa por apoio a quem não pode pagar eletricidade, um programa de “cupões de refeição” para famílias sem rendimento e a extensão a mais pessoas do projeto piloto de Rendimento Mínimo garantido, sobrevive neste programa. No total, são dois mil milhões de euros aos cofres gregos compensados pela racionalização do Estado e o combate à corrupção, ao desperdício e à evasão fiscal. A medida relativa aos cupões de refeição para famílias sem rendimentos é especialmente interessante. Não é a sopa dos pobres. É, na prática, a capacidade do governo emitir uma espécie de moeda própria para acudir aos mais pobres. Volta-se a garantir acesso ao universal ao Serviço Nacional de Saúde, que a troika retirou aos desempregados.
Em resumo, o “conto de crianças” que Tsipras e Varoufakis conseguiram ver aprovado em troca de mais financiamento foi um programa de combate à evasão fiscal, à corrupção e ao desperdício. De extensão de apoios sociais, com garantias de fiscalização. De reposição de rendimentos e de aumento do salário mínimo. De combate ao endividamento das famílias e de mais justiça fiscal, com os ricos a pagar mais. Do fim do processo de privatizações. Da morte definitiva da troika, com a valorização de parceiros bem mais civilizados, como a OCDE e a OIT. E de aplicação de um programa de emergência social. Podem tentar transformar isto numa derrota. Se um governo nosso conseguisse, sem que Portugal esteja no aperto que a Grécia está, metade disto eu festejaria.
Isto é só um começo de uma guerra que será dura. Mas é um bom começo. Como fica evidente com o torcer de narizes do BCE e do FMI. Este compromisso está ainda longe do programa eleitoral do Syriza. No entanto, ele incorpora muito do que se considerava urgente, antes das eleições, para responder à crise humanitária que se vive na Grécia. Em vez de fazer o que fez Hollande ou o centro-esquerda italiano – já para não falar dos governos de direita, como o português ou o espanhol -, o Syriza não começou, um dia depois das eleições, a fazer o contrário do que prometera, porque a Europa a isso obrigava. Foi à luta. Ganhou numas coisas, perdeu noutras. E com as vitórias e derrotas aproximou-se o mais possível dos seus compromissos, fazendo o país avançar para o caminho que defendeu e não para o oposto, como tem acontecido no passado com outros governos.
A Grécia conseguiu esta viragem (que todos os que nos vendem a tese da inexistência de alternativas tentarão sempre transformar em derrota e cedência) a uns dias de ficar sem financiamento, tendo em vigor a intervenção externa e estando pouco mais do que sozinha na Europa. Imagine-se o que poderia um governo com igual coragem num País onde, apesar de tudo, as coisas não sejam, do ponto de vista institucional, tão dramáticas. O que a Grécia conseguiu nas piores circunstâncias possíveis pode perfeitamente ser superado por qualquer outro governo. É mesmo só uma questão de vontade política.
Um pensamento sobre “O conto de crianças é uma incómoda possibilidade”