O Sacrossanto Martírio Universal

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 22/02/2020)

Clara Ferreira Alves

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Lembro o dia em que deixei o catolicismo praticante. Não é o mesmo que deixar Deus, ou a ideia de Deus. Deixei o ritual e a crença segundo o dogma. Ou, como dizem as crianças, deixei de ir à missa. Ainda vou à missa de vez em quando, uma missa de Páscoa cantada numa catedral, missas em igrejas por essa Europa fora, entradas à hora meditativa do crepúsculo. Continuo a achar a igreja, a luz que escorre dos vitrais, as cores esbatidas, a púrpura doirada das imagens, um lugar de paz e serenidade. E uma emoção ética e estética. Naquele dia estava em Espanha, no sul. Rodeada de espanhóis, no meio de família. Um desastre tinha vindo abanar aquelas terras e o país. Uma família titular, com um daqueles nomes sonantes de Espanha, acabara de perder cinco crianças, cinco meninas, num acidente de automóvel. Viajavam com a nanny, também morta. O choque e a estupefação, a funda e humana consciência do horror, o pavor do horror, tomaram conta das pessoas. Não se pode conceber tamanho sofrimento. Nos dias seguintes não se falava de outra coisa na imprensa e televisão.

Até que um dos membros da família, creio que o avô, deu uma entrevista a dizer que tinha sido a vontade de Deus. E que aceitavam o sofrimento que lhes levara aqueles “anjos “como vontade de Deus. Esta frase gerou uma discussão entre mim e os espanhóis, todos católicos praticantes (e o catolicismo espanhol não é como o português, é mais devoto, dogmático e fundamental) sobre a vontade de Deus, a ideia de Deus, e o martírio como expiação aceite com resignação e sacrifício. Com os ombros vergados à vontade divina. Argumentei pelo lado da racionalidade e todos me disseram que a única maneira de aguentar tamanho sofrimento era, justamente, concebê-lo como um ato vindo da transcendência. Na discussão, descobri como esta ideia se me tinha tornado estranha e equívoca, desumana no limite. Com aquele Deus que planeia a morte de cinco crianças como vontade, vontade de anjos, eu nada tinha a ver. Nem queria ter a ver. Um dos católicos argumentou que eu não era católica, talvez tivesse razão, se o reduto do catolicismo era a aceitação do extremo sofrimento físico e moral como uma emanação divina. A discussão foi longa e violenta. Lembro que fiquei moralmente exausta e exasperada pela teimosia dos crentes.

Até hoje, não mudei. Recuso o sofrimento e o martírio como uma obrigação perante Deus que implica toda a obrigação perante a vida. Do mesmo modo que recusei, numa longa conversa com um mestre budista, a ideia de que o sofrimento de uma criança doente, uma criança com uma doença terminal, era carma. Logo, natural. A minha racionalidade levou a melhor, nada daquilo fazia sentido e a busca de sentido deve nortear a consciência e os atos morais. Sei que esta recusa me afasta do catolicismo dogmático e me aproxima do Iluminismo e do antropocentrismo, mais de Newton e dos “Principia Mathematica” do que da Bíblia, se quisermos ser simples.

É uma ideia complexa, a de sofrimento, o pessoal e o alheio, o próximo e o distante. E é uma ideia inseparável do cristianismo, o maior legado doutrinário da Paixão de Cristo. Toda a ideologia e iconografia cristãs fazem assentar a redenção no sofrimento. Apesar de o próprio Cristo ter pedido ao Pai para afastar o cálice. A crucificação é o momento da redenção dos pecados, da salvação. Uma das conversas mais estimulantes da minha vida tive-a com um padre católico, sobre a hipótese “perversa” do suicídio de Cristo. Não sendo dogmático, e estando aberto a discutir a hipótese do suicídio como um ato volitivo predestinado, ainda vontade divina, do Pai, o padre negou-a em termos absolutos. Nunca seria um suicídio. Mais uma vez, coloquei-me do lado da racionalidade e não da fé, o lado do “advogado do diabo”, uma expressão que é uma revelação.

A ideia de martírio consentido enforma toda a religião, podíamos dizer todas as religiões monoteístas, e é inseparável da crença na vida como uma criação de Deus e no corpo humano como uma extensão de Deus. Só Deus os pode terminar, “naturalmente”. Aqui chegados, podemos ver como a ciência incorporou este conceito da sacralização da vida, um conceito religioso, ao ponto de rejeitar não só a argumentação racional sobre a negação ou alívio do sofrimento terminal como ao ponto de as ordens científicas, sobretudo as médicas, rejeitarem qualquer interferência jurídica no processo de terminação da vida, embora se aceite a pena de morte como punição. E é comum ouvirmos dizer, depois de um desastre ou fatalidade, que temos de aceitar e resignar, como uma forma nublada de expiação.

Esta ideia dominante é fortíssima. Muito mais do que a negação e prevenção da eugenia ou do homicídio, do extermínio ou, se quisermos ser latos, do mal, outras ideias prevalentes, a negação da morte assistida como ato volitivo humano, vigiado e condicionado, e a obrigação do sofrimento terminal, foram universalmente interiorizadas. A Paixão de Cristo tornou-se, e é um feito extraordinário que ultrapassa as questões de uma fé, a paixão da humanidade. Os budistas acham que a vida não passa de sofrimento e reencarnação para mais sofrimento, até ao dia da iluminação e do fim do carma. Buda continua a reencarnar. E o islamismo está hoje ligado, nas suas formulações martirológicas, ao radicalismo desviante e homicida do terrorismo ideológico. Uma ideia gerou outra bem mais perigosa.

Ao entrarmos no Museu Nacional D’Art da Catalunya, onde passei largos dias a ver decapitações por causa de um romance que estava a escrever, podemos verificar como as representações do martírio dos santos, os martírios místicos, inundam a arte gótica do Norte de Espanha. As representações são gráficas, cabeças cortadas, corpos despedaçados, assados no caldeirão, pregados, martelados, torturados, assassinados com crueldade. Os instrumentos e ferramentas entram na representação fazendo uso de imaginação digna das torturas chinesas descritas por Octave Mirbeau em “O Jardim dos Suplícios”.

No íntimo de cada um de nós espreita um assassino, e daí as reservas colocadas à terminação da vida por um estranho ao corpo a terminar. Já a condenação geral do suicídio como cobardia, desprezando a doença “moral”, entronca diretamente na fórmula cristã da vida como ato divino. Nos martírios dos santos, emulações da crucificação que querem ir ainda mais longe no sofrimento, e são desejadas e suicidárias, o misticismo é recompensado na vida para além da morte. O sofrimento torna-se uma delícia, um masoquismo visionário que distingue o mártir do comum mortal. A agonia torna-se êxtase. O sofrimento como condição da santidade. Os santos aparecem sereníssimos no martírio e nimbados da luz divina, a luz da aprovação da tortura e da morte. Eles sabem o que os espera e não se importam de morrer. Têm prazer em morrer. Na vida, não é bem assim.

Na era do cientificismo devocional que é a nossa, a ideia de que não estou autorizada a controlar ou terminar o sofrimento último recorrendo à ciência, não posso querer terminar a dor do meu corpo e o sofrimento moral da dor, que é posto de parte como um apêndice, continua a ser estranha à minha razão. Sem prescindir de um ente divino que usa a compaixão e abomina o martírio.


Velha estirpe

(Baptista Bastos, in Correio da Manhã, 18/05/2016)

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Baptista Bastos

Só um povo como este tem suportado tanta ignomínia com o estoicismo demonstrado.


Marcelo convidou Ramalho Eanes, o primeiro Presidente eleito na liberdade, a estar presente em Castelo Branco, para o facto ser assinalado. Nada mais justo, decente e honrado.

Eanes possui as virtudes republicanas, cada vez mais raras, de recusar a prebenda, as honrarias e a futilidade das homenagens vãs. Acresce a esta integridade de carácter a repulsa pela mentira e o desprezo pelo dúplice.

A fim de não cair no logro das ambiguidades, gravava todas as conversas que mantinha, à época, com o primeiro-ministro, em quem não confiava minimamente. Quando aparece ou fala em público é porque tem algo a dizer que possa servir de pretexto para reflexão. É um senhor à maneira antiga, para o qual o aperto de mão ou a palavra dada correspondem a demonstrações de honra e a compromissos que se não desdizem.

Nesta dimensão e com esta estirpe não há quem se lhe seja igual. E é pena. A nossa República tem sofrido tratos de polé, com insídias, mentiras, abocanhamentos e velhacarias, muitas vezes com a cumplicidade de estipendiados na comunicação social e de agrupamentos sórdidos para os quais a democracia ainda é um transtorno. Adianto: só um povo como este, o nosso, tem suportado tanta ignomínia e tal sofrimento com a dignidade e o estoicismo demonstrados.

Há uma frase, atribuída a Herculano e, por vezes, a Garrett, que abomino pela vacuidade e pela perfídia. Ei-la: “Portugal é um país pequeno; e não maior é quem o habita.” Sei Portugal de cor e salteado, e da história desta gente conheço-lhe o rasto, o rosto e o sonho. Nunca, por nunca ser, me deram razões de desconfiança ou de desprezo.

Pelo contrário: se aqui estou também é por eles e por ser deles. Jamais desistiram de lutar e de procurar ser felizes. Mesmo nas épocas mais ominosas. Ramalho Eanes pertence a essa estirpe que a grosseira inanidade dos tempos condena ao esquecimento. Bem-haja.