O Presidente mudo

(Vítor Matos, in Expresso Diário, 07/05/2019)

Mas que grande enxaqueca!

O país ressaca com a abstinência. A crise política acabou com as selfies, com os dichotes e com o jogo aberto do Presidente na praça pública. A crise durou três dias e o silêncio de Marcelo dura há seis. É à Cavaco, mas ao contrário de Cavaco.


“zzz–zzz–zzzzzz—zz—-zz” 
Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, em silêncio ao fim de seis dias de crise política

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17 valores no índice da gestão mais ou menos à Cavaco. Pode parecer estranho, mas esta citação é uma não-frase sobre a ação de um homem calado. Embora seja o contrário daquilo para que esta coluna foi feita, o não-dito neste contexto ganha formas de dito. Sejamos injustos, sim, cometamos essa terrível injustiça de comparar Cavaco Silva a Marcelo Rebelo de Sousa. Lá porque o Presidente está sem falar desde que aterrou da China (e entretanto já foi a Florença), isso não quer dizer que tenha tomado conta dele o espírito cavaquista dos antigos silêncios de Belém. Nem sequer que tenha trazido da China os ensinamentos de meditação do templo budista que visitou. Marcelo calado faz política.

Silêncio sim, mas cavaquista não. Aliás, esta é uma mudez que funciona ao contrário do anterior inquilino de Belém. Cavaco geria sobretudo silêncios, e fazia da “palavra”, como ele dizia, uma exceção, que dada a sua escassez era valorizada no mercado político (Cavaco até nisto pensava como um economista). Marcelo, que gere sobretudo a palavra – porque fala sobre tudo e sobre nada a todas as horas do dia e da noite -, tem nos silêncios a escassez que os valorizam. E nunca tinha passado tanto tempo calado.

Ora se para Cavaco a palavra era de ouro porque o silêncio era o seu pechisbeque, Marcelo, o anti-Cavaco, fala tanto que os seus silêncios reluzem de oiro. Tem sido o caso.

Sob pena de o país começar a ficar deprimido com a ausência do Chefe de Estado – sem selfies, afetos, beijos, abraços ou frases para condicionar o jogo político -, Marcelo Rebelo de Sousa tem mantido um sábio silêncio ao longo da crise da demissão por causa da direita apoiar a esquerda no caso das carreiras dos professores. Calado para fora, não quer dizer que se tenha mantido sem falar para dentro. Segundo a Renascença, o Presidente telefonou aos líderes partidários no fim de semana a fazer saber que concordava com António Costa e que PSD e CDS tinham caído numa armadilha política. Faz sentido. Marcelo conhece bem como se joga este xadrez e numa situação parecida quase de certeza faria o mesmo que Costa. Aliás, o Presidente já tinha explicado na RTP3 o que pensava do diploma dos professores: em resumo, com a aprovação do diploma passaria a haver a obrigação de repor tudo o que fosse cortado no futuro a toda a gente. Se não estava a avisar para um possível veto, parecia. Pelo menos, assinalava que achava o tema complicado (a explicação que deu foi bastante técnica, jurídica e intrincada).

Enquanto a crise não se desata, mais vale mesmo o Presidente não dizer nada do que aparecer no meio do ruído a dizer que nada vai dizer. Estamos a dias da campanha eleitoral. O Palácio de Belém não pode ou não deve mostrar-se ativo. Em circunstâncias normais, nenhum Presidente deseja a queda de um Governo e António Costa poupou-o. Daí que Marcelo também tenha neste caso algum interesses em poupar Costa. Interessaria a Marcelo eleições antecipadas com o primeiro-ministro mais bem posicionado para uma maioria absoluta e com a direita fragilizada?

No dia da declaração ao país, o primeiro-ministro usou de uma subtileza que aliviou o Presidente. Colocou o ónus da queda do Governo na aprovação do projeto de lei no Parlamento — e não no fim do processo legislativo: Augusto Santos Silva, número dois do Governo, tinha falado antes de Costa na conclusão do processo legislativo, o que punha toda a pressão sobre Marcelo. Se o Presidente vetasse, o Governo continuava, se promulgasse, o Governo caía. O Presidente está calado a ver os jogos a desenrolarem-se, a divertir-se e a espantar-se. O que poderia dizer?

ENTRE DUAS SELFIES

(In Blog O Jumento, 20/06/2018)
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Parece que cada vez que Marcelo Rebelo de Sousa vai à missa a Pedrógão Grande tem um momento de inspiração divida e ouvidas as preces e homilias chega à rua e define mais uma prioridade nacional, agora mandou uma diretiva ao António Costa: quer que as assimetrias entre o litoral e o interior acabem, mais ou menos na altura do fim do contrato que o Rui Patrício tinha com o Sporting Clube de Portugal.
Porreiro pá! Esperemos que a próxima missa abrilhantada com a presença do Presidente da República decorra na igreja da Cova da Moura e que terminadas as selfies junto á saída o Presidente da República tenha mais um dos seus momentos de inspiração e decrete que António Costa fica logo ali obrigado a acabar com as assimetrias entre aquele bairro da periferia de Lisboa e a Quinta da Marinha ou, de preferência, a Quinta Patino e que tal clique milagroso ocorra antes que o treinador Sinisa Mihajlovic seja despedido do SCP, depois de dizer que Bruno de Carvalho percebe menos de futebol do que as mulheres.
Que pena que nunca tenhamos tido um presidente tão realizador como aquele que temos agora, já decretou o fim dos incêndios, dos sem abrigos e agora decreta o fim das assimetrias entre o litoral e o interior. Tudo de uma penada, sem estudos, sem teorias do desenvolvimento económico, sem ter de se estudar o desenvolvimento regional, sem grupos de trabalho, sem a seca de ouvir economistas, nem mesmo o João Duque, que maravilha.
Como este país seria diferente se tivéssemos tido presidentes tão empreendedores, já não dizemos desde o tempo do Carmona, mas pelo menos desde o Eanes. Como teria sido bom se Eanes tivesse decretado que em três anos acabassem as assimetrias entre Portugal e a França, se Mário Soares determinasse por decreto presidencial que em três anos o Cavaco poria os portugueses a ganhar tanto quanto os suíços ou que uns anos depois, o Cavaco tivesse determinado a Guterres que em dois anos as vacas da Graciosa além de sorrirem também falassem inglês, para o caso de quererem emigrar para os EUA antes que viesse o Trump!
Tudo isto e muito mais, tanto quanto a imaginação permitisse, por mero decreto presidencial verbal, dito entre duas selfies no adro que uma qualquer igreja, sem estudo, sem cientistas, sem nada mais do que um breve momento de inspiração presidencial. Como tudo seria fácil.

E se os iludidos começarem a perceber o quanto têm sido enganados?

(Jorge Rocha, in Blog Ventos Semeados, 26/01/2018)

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Nunca tivemos um ator político que se deixasse fotografar em tantas selfies como Marcelo Rebelo de Sousa.

Exercício típico do narcisismo extremo, a selfie dá, a quem nela se figura, a ilusão de não ser a múmia a quem sucedeu. Se em tempos a filosofia propunha a regra «Penso logo existo», neste tempo de hiperindividualização ela tende a ser substituída pela sua versão moderna: «Selfo-me, logo existo». E, de facto, quem é verdadeiramente Marcelo para além dessa aparência, desse constante jogo de máscaras em que, ora afivela a plastificada face compungida pela dor (sobretudo se anda por alturas de Pedrógão!), ora a do sorriso rasgado de quem se julga em permanente estado de festa. Tornando ainda mais significativas as circunstâncias em que se furta a tal exposição: porque será que não se deixar selfizar com as operárias da Triumph?

Pressentimos que ele exista para além dessa imagem fútil e até lhe sugerimos a essência remanescente da família em que nasceu. Fascista se foi, fascista dificilmente se deixará de ser, não é assim?. Mesmo se só se apresente como cristão, que é forma disfarçada de se querer impor aos outros naquilo que eles não querem. Exemplo óbvio desses tiques de ditador sob a capa da mansuetude católica a sua determinante intervenção para que a lei da interrupção da gravidez ficasse adiada por dez anos. Em nome da ideologia impôs a quem nela não cria um modelo de comportamento, que se revelou trágico para quem lhe sofreu as consequências nesse período de espera até tal vontade já não determinar mais atraso em algo que se impunha como necessário.

Ciente da obsolescência do que pensa, do que é, com o contexto em que se comporta como ator, ele disfarça-se de cordeiro nessa constante multiplicação de selfies. Porque ela ilude tudo quanto dele se pressupõe. É a história da jovem turista que se coloca em primeiro plano com a Torre Eiffel por trás e diz que, sem a sua presença, o monumento é banalíssimo, porque dele já se tiraram milhões de fotografias. É ela, com a sua presença, que lhe dá relevância, o torna inédito a seu jeito. Mas quem é ela de facto para lá da sua imagem instantânea? E o que é o monumento perante o qual se coloca como modelo? Uma imagem, que vale apenas pelo que aparenta sem nada dizer do que se esconde nos olhares, nas poses estudadas.

Marcelo pensará isso mesmo: pondo-se a jeito para servir de «monumento» a milhares de caçadores de imagens, imagina-se menos banal, quiçá inédito na sua representação. Ou será que deixando-se fotografar lado a lado, julgará integrar-se no povo a que, por elitista, se sabe não pertencer, mas que entenderá judicioso parecer que o é?

selfie é a ferramenta que Marcelo achou oportuna para fingir que existe, que é mais do que um corta-fitas ou uma rainha de Inglaterra. E é o paradigma da banalização da função, que prometeu honrar e respeitar. Sem a gravitas, que lhe sugeriria algo de transcendente, de único.

E incorrendo num sério risco em que nunca terá pensado: aquele para que Cocteau alertara, quando dissera que até um espelho, antes de devolver a imagem, nela reflecte. O que acontecerá a Marcelo se quem por ora se deixa ludibriar pela frivolidade da aparência, começar a questionar o que ela efetivamente significa?


Fonte aqui