Pouca saúde

(Carlos Coutinho, 15/09/2021)

Ainda sou daquele tempo em que se dizia: ”Ler jornais é saber mais.” Continuo a pensar o mesmo, embora nem sempre veja confirmada a minha fé. Mesmo ontem, o “Público” aparecia com uma despudorada manchete, num estilo tão rasca como o do “Correio da Manhã” e de outros, apregoando que o fenomenal Chega estava a receber candidatos de todos os partidos, incluindo o PCP.

Só que, nas páginas interiores do diário da Sonae, a apanhada candidata revelava, afinal, que nunca votara no PCP e que apenas uma vez tinha posto a cruzinha no quadradinho da CDU, influenciada pelas escolhas dos pais que eram membros do PCP e lhe mereciam toda a consideração filial.

A verdade é que, sem jornais, ou, sobretudo, sem jornalistas, eu não ficaria agora a conhecer com rigor o regabofe que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem sido para as empresas privadas do sector.

Dir-se-á que nunca houve nem nunca haverá leis perfeitas, mas a que permite a realidade presente só pode resultar de circunstâncias especiais e foi isso que eu mais uma vez confirmei. Por exemplo, como é possível que o SNS, uma das mais importantes e duráveis criações da Lei nacional pós-ditadura, tem vindo a ser paulatinamente degradado?

Óbvio: porque ao leme da barca legislativa tem estado e continua, discretamente ancorado, um número inusitado de deputados que são, afinal, juízes em causa própria.

Ou seja, legisladores que lucram com as imperfeições das leis que sub-repticiamente conseguem conformar em proveito dos seus proventos actuais e futuros.

A jornalista Alexandra Campos folheou um livro do neurologista Bruno Maia com o seguinte título: “O Negócio da Saúde: Como a medicina privada cresceu graças ao SNS” em que defende a tese de que os grandes grupos económicos que dominam o sector são alimentados pelas falhas do sistema público e pelas rendas do Estado”.

Nesse livro, fruto de uma vasta investigação, pode ler-se também que, com a suborçamentação crónica, o SNS vai acumulando listas de espera, degradando estruturas e equipamentos, sendo obrigado a contratar serviços ao privado, que vai ao sector público recrutar profissionais – os quais, por sua vez, “levam consigo doentes e serviços”.

Assim, a situação actual é resultado de decisões políticas que passaram pela “desestruturação das carreiras dos profissionais” através da empresarialização dos hospitais e da introdução de contratos individuais de trabalho – que representam já 40% do total.

Para os amantes da estatística aqui ficam os seguintes dados: dos 45 ministros e secretários de Estado da Saúde que tivemos depois do 25 de Abril de 1974 e até 2020, “40% apresentam ligações a empresas do sector”.

As mulheres com este pecado são minoritárias no bando, mas entre elas avultam pesos pesados como Leonor Beleza e Maria de Belém. Ambas foram deputadas.

Os dados mostram que os governantes da área da saúde mantêm ligações com os grupos económicos, além do próprio sector da saúde” e o grupo Espírito Santo (hoje Luz Saúde) e o grupo Mello são os “campeões das ligações ao Governo”. PS e PSD têm repartido entre si o grosso da fatia do bolo, deixando algumas migalhas para o CDS.


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Para além do Urban, o mundo dos cowboys

(José Soeiro, in Expresso Diário, 03/11/2017)

urban

Nunca fui ao Urban Beach. Mas tendo em conta os episódios de violência e de racismo permanentes (entre os quais o denunciado por Nélson Évora) e o conteúdo das dezenas de queixas apresentadas só este ano, a decisão tomada esta madrugada pelo Governo de encerrar o espaço é um exemplo de ação e de sanidade. Não basta que, de cada vez que vem a público mais um caso deste tipo, a direção do estabelecimento diga que o “abomina” até que aconteça a próxima agressão. É preciso pôr um travão a esta atrocidade e acabar com esta intolerável impunidade. Mas seria bom se a indignação que justamente sentimos pudesse ter consequências para além do Urban Beach.

Quem não se lembra de alguma vez ter sido no mínimo complacente com essas ocasiões de intervalo na lei que são os momentos em que se espera à porta de uma discoteca para entrar? Quantos não se lembrarão de alguma vez terem sido simultaneamente vítimas e cúmplices da arbitrariedade no exercício desse pequeno poder de selecionar quem entra e quem não entra, onde intervêm com frequência os mais preconceituosos e miseráveis critérios, não apenas racistas, mas também misóginos (as mulheres tratadas como uma “mais-valia” porque são o “isco” que atrairá os clientes masculinos), e onde abundam observações repugnantes de alguns porteiros sobre as pessoas que se amontoam à porta dos estabelecimentos, perante o silêncio conivente ou calculista de quem ouve e ignora enquanto aguarda a sua vez para entrar?

Não, não será sempre assim, é verdade. Mas a impunidade começa neste pequeno poder sem regra nem lei. E estende-se depois às práticas de intimidação e às agressões perpetradas por agentes da segurança privada, uma indústria que foi conquistando um espaço cada vez maior na noite das grandes cidades. E não só na noite.

Aprendi no primeiro ano de sociologia a definição clássica de Estado proposta por Max Weber: a entidade que detém o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território. Esse monopólio, atribuído às chamadas “forças de segurança”, pressupõe mecanismos de legitimação (designadamente a lei) e de fiscalização. Ora, ao longo dos últimos anos, assistimos à multiplicação de agentes privados a quem foram delegadas, com cobertura jurídica e até incentivo institucional, funções de segurança e uso da força. Refiro-me, designadamente, ao crescimento da segurança privada e de pavorosas indústrias como a das “cobranças difíceis”, cuja expansão durante o período da austeridade foi retratada de forma pungente no filme “São Jorge”, de Marco Martins (com uma interpretação absolutamente notável de Nuno Lopes). No caso destas últimas, estamos mesmo perante a usurpação de uma competência – a cobrança de créditos – que pela lei devia ser exclusiva de advogados e solicitadores, mas que foi entregue, por vezes com o amparo dos Tribunais, a empresas que recorrem a métodos inaceitáveis num Estado democrático: a intimidação de familiares e amigos dos devedores, a ameaça e a coação verbal – com mensagens agressivas, carros estacionados à porta, visitas a meio da noite –, a violência física.

Estamos perante um fenómeno grave ao qual não se tem dado a devida importância. É certo que a fiscalização aumentou. De 8.341 ações de fiscalização ao setor da segurança privada em 2015, passamos para 12.159 no ano 2016, com mais de 26 mil pessoas controladas, cerca de duas mil infrações identificadas, 123 crimes detetados e 39 pessoas detidas. Mas não chega. É o próprio Relatório de Segurança Interna que, na página 75, refere que “os grupos violentos e organizados continuam a promover os seus ilícitos criminais procurando, sempre, instrumentalizar sectores de atividade que lhes permitam obter proventos económicos elevados. A atividade de segurança privada, sobretudo aquela que é desenvolvida no contexto de diversão noturna, tem consolidado, ao longo dos últimos anos, o seu perfil atrativo para a infiltração deste tipo de grupos”.

A ação decidida neste caso da Urban Beach é, evidentemente, um bom começo. Mas há um mundo inteiro de impunidade que resulta de termos aceitado a proliferação de um negócio privado da segurança e dos seus subprodutos que têm sido, demasiadas vezes, viveiros de preconceitos, de discriminação, de violência e de criminalidade.

Evidentemente não se podem fazer generalizações sobre o setor de vigilância, onde muitos trabalhadores pacíficos fazem bem o seu trabalho, apesar das condições de precariedade que proliferam Mas há, de facto, todo um universo de cowboys que é incompatível com o Estado democrático e com as suas regras básicas.

Crepúsculo dos reitores, ou como se investiga às marteladas

(Nuno Peixinho, in Público, 08/08/2017)

 

peixinho

As universidades são, na verdade, dois sistemas onde o ensino e a investigação coabitam, mas sem união de facto.


O “regime de contratação de doutorados destinado a estimular o emprego científico e tecnológico”, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 57/2016 e alterado pela Lei n.º 57/2017, tem revelado a verdadeira face dos que sobrevivem cientificamente à custa dos bolseiros. As universidades desdobram-se em notas de imprensa com as suas posições nos rankings internacionais e com descobertas feitas pelos seus investigadores. Glorificam-nos, mas aparentemente só enquanto bolseiros, que apenas precisam de um “subsídio de manutenção mensal” que se presume manter-nos vivos e bem lubrificados. Um subsídio, sim, tal como o são o de acção social escolar e o de morte e funeral. Salários e contratos de trabalho? Jamais!

O reitor da Universidade de Coimbra (UC), professor doutor João Gabriel Silva, profetizou que “ficará registado quem foram os autores do mais grave atentado contra a escola pública, de direito público, em toda a democracia portuguesa”, não perdendo a oportunidade de dar a entender que o bom caminho seria transformar a sua escola pública numa de direito privado.

O reitor da Universidade de Lisboa, professor doutor António da Cruz Serra, por sua vez, declarou: “Eu preciso de professores na universidade, francamente, não preciso que me obriguem a contratar investigadores.” Mas quantos investigadores contratou até hoje? Zero! Como é evidente, precisa, de facto, que o obriguem.

O ex-secretário de Estado do Ensino Superior, professor doutor José Ferreira Gomes, consegue, porém, em meia página de um jornal, transcender tudo o que de mais humilhante um investigador bolseiro pode ouvir. Começa por enaltecer o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) por ter tentado — silenciosa e envergonhadamente — que a Presidência da República não promulgasse a Lei 57/2017. E, embora declare “que a situação era insustentável, não tenho dúvida”, não acredita no regime excepcional de concursos públicos para contratação, em substituição de algumas bolsas (porque não se trata de todas, nem pouco mais ou menos!), que a lei consagra como forma de impor alguma justiça. Afirmando, ainda, que nele também “não acreditam os actuais bolseiros que já tinham encontrado um lugar no sector não académico e agora recuaram para o conforto de um emprego que parece perpétuo e sem grandes exigências” — “Só aqueles poucos que sabem que só esse artifício lhes dá o passaporte para uma reforma garantida o poderão aceitar sem remorsos” —, desvirtuando o seu próprio emprego, sem vergonha nem remorsos, considerando-o confortável e sem grandes exigências, e inculpando sem pudor aqueles que exigem que se aplique a lei — lei pela qual se lutou anos a fio e que, mesmo assim, está muito aquém da verdadeira justiça.

Do seu discurso, eu gostaria só de perceber mais duas coisas: primeiro, como é que um bolseiro fora do sector académico tem um “lugar” se continua a ser bolseiro, sem direito a um contrato de trabalho?; e, segundo, quantos foram os que “recuaram” se nenhum concurso dos contratos de seis anos foi ainda aberto pelas universidades?

É aviltante ouvir da boca de colegas afortunados de uma geração que nunca foi bolseira que não é admissível que agora tenhamos direito a um contrato de seis anos e depois a um contrato de trabalho por tempo indeterminado, omitindo os muitos anos já acumulados em que trabalhámos com bolsas — eternamente classificadas como bolsas de formação — e o facto de ainda termos de passar dois concursos públicos e um período experimental para lá chegarmos. Uma geração que muito teve da universidade (e bem!): um contrato de Assistente Estagiário quando terminava o curso; a promoção automática para Assistente após o mestrado ou as Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica; a promoção para Professor Auxiliar após o doutoramento e, passados cinco anos, a tão ansiada nomeação definitiva que a colocava no quadro.

Era assim! Tal como na tropa se dizia que um coronel é um cadete que não morre, na Academia um professor era um assistente estagiário que não morria.

A 23 de Junho, em reunião com a Associação de Bolseiros de Investigação Científica (ABIC), a Reitoria da UC garantiu que abririam até ao final de Julho mais de 80 concursos para a carreira docente, aos quais os bolseiros doutorados poderiam concorrer e que, com este artifício legal, isso seria um cumprimento parcial da lei. Ora… Julho acabou. Quantos concursos abriram? Zero! E, mesmo que tivessem aberto todos, entendamos uma coisa: cumprir parcialmente a lei é não cumprir a lei. A lei ou se cumpre ou não se cumpre. Qual seria a reacção das universidades se, alegando falta de condições financeiras, os alunos pagassem só metade das propinas? Seriam meio multados, meio expulsos ou acabariam meio licenciados?

A UC, onde trabalho — ou melhor: “bolso”—, tem, agora, a tremenda oportunidade de contratar cerca de 300 investigadores por seis anos, pagos inteiramente pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e, num pranto, não o quer fazer porque findos os seis anos terá de abrir o mesmo número de concursos para lugares de carreira, afirmando, claro está, não ter condições financeiras para isso. Porém, simultaneamente, chora o seu quadro envelhecido e, numa incrível coincidência, dentro de seis anos terá aproximadamente menos 300 docentes e investigadores nos quadros devido a reformas. Alguém compreende, então, este pranto? Não, ninguém compreende!

O que ficou claro, desde o primeiro minuto, é que a questão fundamental para o CRUP não é, nem nunca foi, a garantia de financiamento futuro. A questão é que o modelo da união do ensino e da investigação nas universidades, que está inscrito nos seus estatutos, não lhes interessa. Embora se apregoem como universidades de investigação, tornaram-se meras escolas de instrução superior, “arrendando” os seus espaços aos centros de investigação, cobrando-lhes 20% de todo o financiamento que eles conseguem por si próprios, “renda” esta que não querem devolver à investigação nem para pagar meia dúzia de contratos. As universidades são, na verdade, dois sistemas onde o ensino e a investigação coabitam, mas sem união de facto.

O CRUP não reconhece que as suas universidades são hoje anãs aos ombros de gigantes, gigantes que são seus filhos, filhos que enjeita e devora. Julgam que se manterão fortes caminhando sobre andas de pau? Os seus líderes não são dignos da responsabilidade que lhes foi incumbida nem da oportunidade que lhes foi dada. E, no entanto, perguntava já Nietzsche: “Pode um burro ser trágico? — Sucumbir sob um fardo que não pode carregar nem sacudir?”

As opiniões veiculadas neste artigo não reflectem necessariamente a opinião da ABIC