Para além do Urban, o mundo dos cowboys

(José Soeiro, in Expresso Diário, 03/11/2017)

urban

Nunca fui ao Urban Beach. Mas tendo em conta os episódios de violência e de racismo permanentes (entre os quais o denunciado por Nélson Évora) e o conteúdo das dezenas de queixas apresentadas só este ano, a decisão tomada esta madrugada pelo Governo de encerrar o espaço é um exemplo de ação e de sanidade. Não basta que, de cada vez que vem a público mais um caso deste tipo, a direção do estabelecimento diga que o “abomina” até que aconteça a próxima agressão. É preciso pôr um travão a esta atrocidade e acabar com esta intolerável impunidade. Mas seria bom se a indignação que justamente sentimos pudesse ter consequências para além do Urban Beach.

Quem não se lembra de alguma vez ter sido no mínimo complacente com essas ocasiões de intervalo na lei que são os momentos em que se espera à porta de uma discoteca para entrar? Quantos não se lembrarão de alguma vez terem sido simultaneamente vítimas e cúmplices da arbitrariedade no exercício desse pequeno poder de selecionar quem entra e quem não entra, onde intervêm com frequência os mais preconceituosos e miseráveis critérios, não apenas racistas, mas também misóginos (as mulheres tratadas como uma “mais-valia” porque são o “isco” que atrairá os clientes masculinos), e onde abundam observações repugnantes de alguns porteiros sobre as pessoas que se amontoam à porta dos estabelecimentos, perante o silêncio conivente ou calculista de quem ouve e ignora enquanto aguarda a sua vez para entrar?

Não, não será sempre assim, é verdade. Mas a impunidade começa neste pequeno poder sem regra nem lei. E estende-se depois às práticas de intimidação e às agressões perpetradas por agentes da segurança privada, uma indústria que foi conquistando um espaço cada vez maior na noite das grandes cidades. E não só na noite.

Aprendi no primeiro ano de sociologia a definição clássica de Estado proposta por Max Weber: a entidade que detém o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território. Esse monopólio, atribuído às chamadas “forças de segurança”, pressupõe mecanismos de legitimação (designadamente a lei) e de fiscalização. Ora, ao longo dos últimos anos, assistimos à multiplicação de agentes privados a quem foram delegadas, com cobertura jurídica e até incentivo institucional, funções de segurança e uso da força. Refiro-me, designadamente, ao crescimento da segurança privada e de pavorosas indústrias como a das “cobranças difíceis”, cuja expansão durante o período da austeridade foi retratada de forma pungente no filme “São Jorge”, de Marco Martins (com uma interpretação absolutamente notável de Nuno Lopes). No caso destas últimas, estamos mesmo perante a usurpação de uma competência – a cobrança de créditos – que pela lei devia ser exclusiva de advogados e solicitadores, mas que foi entregue, por vezes com o amparo dos Tribunais, a empresas que recorrem a métodos inaceitáveis num Estado democrático: a intimidação de familiares e amigos dos devedores, a ameaça e a coação verbal – com mensagens agressivas, carros estacionados à porta, visitas a meio da noite –, a violência física.

Estamos perante um fenómeno grave ao qual não se tem dado a devida importância. É certo que a fiscalização aumentou. De 8.341 ações de fiscalização ao setor da segurança privada em 2015, passamos para 12.159 no ano 2016, com mais de 26 mil pessoas controladas, cerca de duas mil infrações identificadas, 123 crimes detetados e 39 pessoas detidas. Mas não chega. É o próprio Relatório de Segurança Interna que, na página 75, refere que “os grupos violentos e organizados continuam a promover os seus ilícitos criminais procurando, sempre, instrumentalizar sectores de atividade que lhes permitam obter proventos económicos elevados. A atividade de segurança privada, sobretudo aquela que é desenvolvida no contexto de diversão noturna, tem consolidado, ao longo dos últimos anos, o seu perfil atrativo para a infiltração deste tipo de grupos”.

A ação decidida neste caso da Urban Beach é, evidentemente, um bom começo. Mas há um mundo inteiro de impunidade que resulta de termos aceitado a proliferação de um negócio privado da segurança e dos seus subprodutos que têm sido, demasiadas vezes, viveiros de preconceitos, de discriminação, de violência e de criminalidade.

Evidentemente não se podem fazer generalizações sobre o setor de vigilância, onde muitos trabalhadores pacíficos fazem bem o seu trabalho, apesar das condições de precariedade que proliferam Mas há, de facto, todo um universo de cowboys que é incompatível com o Estado democrático e com as suas regras básicas.

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