Como salvar os multimilionários

(Francisco Louçã, in Expresso, 16/11/2019)

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A mera hipótese de englobamento dos rendimentos prediais tem provocado sobressalto e gritos de alarme entre alguns proprietários, agências financeiras e advogados dedicados à magia fiscal, e esta turba já é uma coligação poderosa. É provavelmente tudo um boato, e o Governo pode vir a recuar num ápice, mas os situacionistas têm razão: estão a defender um privilégio e para tanto o melhor é assanharem-se. A sua força, aliás, mede-se facilmente, é a regra dos 28%, ou seja, um proprietário afortunado paga menos IRS sobre os seus rendimentos do que um trabalhador com um salário razoável, cuja taxa de IRS será superior. Considerando a vantagem de quem vive de rendimentos prediais elevados, isto significa uma distorção e desigualdade fiscal que favorece a propriedade contra o trabalho. Péssima escolha para uma economia em que é preciso investir, trabalhar e inovar.

UM POUCO MAIS DE JUSTIÇA

A aplicação do comando constitucional do englobamento seria por isso duplamente vantajosa. Em primeiro lugar, é a Constituição, o que já não é de menos (um dia se discutirá esta leveza que permite que algumas normas constitucionais sejam interpretadas como imperativas e outras como poesia parnasiana, como esta do englobamento, ou a do ensino tendencialmente gratuito). Em segundo lugar, introduz uma correção de justiça fiscal, que se chama progressividade e é o princípio constitutivo do IRS em Portugal. Ou seja, haverá quem pague menos, tendo rendimentos prediais baixos, e quem pague mais, tendo rendimentos elevados.

Presumo que, mesmo que um dia seja aceite esta velha reivindicação da esquerda para o englobamento dos rendimentos prediais elevados, e é difícil que isso aconteça com este Governo, ainda maior será a resistência a alargar o princípio onde ele se tornaria mais relevante, os rendimentos de capital. E, então isso nem pensar, o Governo não cogita um imposto sobre as fortunas, o mais tremendo dos crimes de lesa-majestade. Mas é isso mesmo que se discute em todo o lado.

FICO A CONTAR OS CÊNTIMOS

A mais recente investida para relançar a proposta de imposto sobre as fortunas foi de Thomas Piketty, com o seu estudo sobre “o capital do século XXI”. A sua teoria é simples: ao longo do século XX e XXI, o que mais acentuou a desigualdade foi o facto de os rendimentos do capital crescerem a uma taxa superior à das economias desenvolvidas no seu todo. Deste modo, o capital acumulou uma vantagem, que se reproduz socialmente e é improdutiva, pelo que a resposta deve ser um imposto sobre as fortunas para reequilibrar a sociedade.

O tema ganhou relevo nas eleições norte-americanas, desde a campanha anterior de Bernie Sanders. Dois dos coautores de Piketty elaboraram a proposta de Sanders, que defende a aplicação de uma taxa de 5% para fortunas acima de mil milhões de dólares e de 8% para as que estão acima de 10 mil milhões. Elizabeth Warren, outra candidata às primárias democratas, apresentou um pacote de medidas fiscais incluindo uma taxa de 3% para fortunas acima de mil milhões, além de uma contribuição de 15% para a Segurança Social para rendimentos acima de 250 milhões de dólares.

Vários multimilionários protestaram veementemente. Bill Gates, o segundo homem mais rico do planeta, que tem 106,8 mil milhões de dólares, veio dizer que teria de passar a contar os cêntimos que sobrariam (os tais 92%, na pior das hipóteses). Jamie Dimon, chefe do JP Morgan Chase, um dos maiores bancos do mundo e que ganhou 31 milhões de dólares em bónus no ano passado, garante que esta medida “insulta as pessoas bem-sucedidas”, que deviam ser “aplaudidas” (fiscalmente).

SE ISSO BASTASSE

Um estudo recente, publicado em setembro por uma instituições de referência nos EUA, o NBER, calcula os “ganhos de eficiência de tributação da riqueza”. Fatih Guvenen e os seus coautores comparam um imposto sobre ganhos de capital com um imposto sobre as fortunas e concluem que o segundo é mais eficiente, reduzindo desigualdades e favorecendo o investimento. O argumento, certamente polémico, é que o montante do imposto sobre o rendimento de capital cresce com o valor do sucesso, ao passo que o imposto sobre as fortunas desloca o peso da tributação para os que não realizam investimentos. Isso pode não ser assim se os rendimentos de capital estiverem protegidos por regras fiscais favoráveis ou por um poder que blinde as suas obrigações, o que acontece com frequência. Em todo o caso, é evidente que o imposto sobre fortunas afeta sobretudo quem vive da propriedade e de aplicações e não de rendimentos gerados na atividade económica.

Na campanha eleitoral norte-americana, a perceção da desigualdade e do fosso fiscal constituído pelo privilégio levou aqueles candidatos a apresentarem programas ainda mais ambiciosos. Sanders e Warren retomam a ideia da separação entre os bancos comerciais e os de investimento, e a última pretende aplicar um acréscimo de 7% sobre os lucros de empresas acima dos 100 milhões de dólares, ou determinar a responsabilidade integral das agências financeiras quanto a investimentos de fundos de pensões (e não só até ao valor da sua responsabilidade limitada), além de substituir o sistema privado de seguros de saúde, que gerem um mercado de 530 mil milhões de dólares, por um serviço público universal. O efeito conjugado de todas estas medidas seria que os ganhos de capital, que pagam em média 23,8%, passariam a pagar 37%, e os 0,01% mais ricos, que pagam 33% em IRS, subiriam para 61% (no tempo de Roosevelt passava os 80%). Acresce ainda que estes dois candidatos pretendem impor o desmembramento legal dos impérios digitais e os gigantes industriais: o Facebook teria de vender o WhatsApp e Instagram, a Bayer teria de alienar a Monsanto. Como é que então se podem salvar os multimilionários? Defendendo cada um dos seus privilégios fiscais e votando Trump.


As barbaridades

Diz Cotrim de Figueiredo (na foto) que exige tempo para responder em cada sessão parlamentar às barbaridades que vão sendo ditas. Que tenha tempo, na proporção da sua representação, é reclamação óbvia. Que comente barbaridades ou que diga barbaridades, isso já é ponto de vista. Mas deve reconhecer-se que, como promotor do “Compromisso Portugal”, essa chiquérrima lista da elite empresarial que, é sabido, tem feito brilhar a pátria com os seus negócios, ele exibe um conhecimento superior sobre os interesses, pelo que se lhe deve conceder a voz exuberante que o dinheiro merece; e, como experimentado gestor da linha de mercadejos do Banco Privado Português, o seu momento superior no liberalismo aplicado e que triunfou até ao fatídico dia em que pediu esmola ao Estado, só pode ser aplaudido. É uma escola de vida e percebe-se que exija que o povo se desbarrete perante a sua grandeza.

Há nisto um recado e não é subtil. Para Figueiredo e para Ventura, o jogo é o dramalhão. As propostas são para esquecer, até porque são confrangedoras, aquela de se reduzir para 15% o IRS de quem tem mais rendimentos (IL) ou a outra de acabar com a prestação de cuidados médicos no Serviço Nacional de Saúde (Chega!); melhor que ninguém as ouça ou, se ouvir, que nem perceba, o que importa é a pose.

Eça advertia para essa transformação do Parlamento numa chicana, onde se gera o bafo da confusão e da demagogia: “A câmara não tem seriedade. Quem não viu ainda uma sessão? Aí o sussurro, o barulho, a confusão são perpetuados. Vota-se sem saber o que se discutiu, e continua-se a conversar. As questões pessoais estão constantemente na ordem do dia. Insultam-se os partidos contrários. Cruzam-se os desmentidos. Entra em cena a alusão pungente e o escárnio. A câmara tem apoiados que são apupos, outros que são insultos! Estabelecem-se a cada momento diálogos, ironias, motejos, graçolas. Uma luz bastarda cai sobre tudo aquilo. E das galerias o público assiste ao espetáculo, melhor diríamos ao escândalo.” É bem sabido o que se alimenta deste tipo de cambalacho.

Quem leva a sério a política como escolha e como disputa social bem faria em perceber estes sinais precursores e em lhes responder, com o humor que coloca tudo em perspetiva, sobretudo a fanfarronice, e com as propostas e ações concretas que fazem a vida da gente.


“Que força é essa?”

(Luís Aguiar-Conraria, in Público, 21/08/2019)

Os números da vergonha nacional

(A publicação deste texto é dedicada ao comentador de serviço deste blog, RFC, fã declarado do autor. Pela primeira vez a Estátua subscreve a 100% a prosa deste escrevente… 🙂 )


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Entre 2004 e 2017, o peso do rendimento do trabalho no rendimento total de Portugal caiu de 66 para 55%. Estes valores, publicados em Julho deste ano, são calculados pela Organização Internacional do Trabalho. Dos debates que li durante a semana de greve dos camionistas, percebi que muitos estão convencidos de que aquele facto é um resquício dos anos da troika. Infelizmente, não é. De 2004 a 2011, anos socialistas, digamos assim, o peso do rendimento do trabalho desceu de 66 para 60%. Durante o governo PSD caiu para 55%, valor que se manteve estável até 2017. (Não há ainda dados para 2018.)

A desvalorização do factor trabalho é, portanto, uma tendência longa. Tão longa que, segundo vários académicos, recua até aos anos 80 do século XX. Mas o que se passou em Portugal desde 2004 não tem paralelo noutras regiões comparáveis. Por exemplo, na Europa Ocidental, o rendimento do trabalho mantinha em 2017 os 62% de 2004. Se tomarmos os 28 países da União Europeia, a queda foi de 59 para 58%; em Espanha, de 63 para 61%.

Quer isto dizer que, para se perceber o motivo da quebra em Portugal, não basta ficarmo-nos por explicações comuns a todos os países, como a revolução das tecnologias de informação, a globalização, a automatização, etc. Tem de haver um motivo para que a diminuição seja tão acentuada em Portugal. Penso que a greve da semana passada nos dá pistas.

Como muitos frisaram, fazia parte do programa da troika a flexibilização do mercado laboral. Mas poucos se recordaram que esta é em Portugal uma tendência com várias décadas. Só os mais novos não se lembrarão da greve geral de 1988, que juntou a UGT e a CGTP pela primeira vez, contra a reforma laboral do Governo de Cavaco Silva. Até hoje, sucessivas revisões das leis laborais tiveram sempre o mesmo sentido, o da flexibilização. Nesse domínio, a troika nada trouxe de novo. A sua novidade é que queria, a par da liberalização no mercado de trabalho, um aumento da concorrência no mercado do produto. E este segundo ponto é o essencial.

O mercado livre funciona bem quando há concorrência: um trabalhador que não gosta de um trabalho pode mudar de emprego e um consumidor que é mal servido pode procurar quem melhor o sirva. Mas se poucas empresas dominam o mercado, o consumidor fica sujeito aos seus ditames. Aposto que o principal motivo pelo qual ainda não mudou o seu serviço por cabo é simples: sabe que também há muitas queixas sobre as duas ou três alternativas de que dispõe. Da mesma forma que estas empresas lhe fornecem um serviço caro e de má qualidade, as que controlam os mercados de trabalho impõem más condições laborais e salários artificialmente baixos.

Olhemos para o sector energético. À privatização do sector não correspondeu um aumento da concorrência. Pelo contrário, criaram-se grandes empresas com enorme poder de mercado. Já entre os transportadores de combustível há muito mais concorrência. O resultado é que as grandes empresas impõem condições leoninas e as transportadoras sujeitam-se. Quem não gostar é facilmente substituída por outra e não tem alternativas. Os motoristas destas transportadoras sofrem as consequências e têm contratos indignos.

Havendo empresas com grande peso no mercado, a melhor forma de garantir boas condições de trabalho é ter entidades reguladoras fortes e independentes, que obriguem as empresas monopolistas a comportar-se de forma concorrencial. Não havendo, aos trabalhadores resta uma única força negocial: o poder de fazer greve.

Imaginemos, por momentos, que a greve tinha sido bem-sucedida. A melhoria das condições laborais traduzir-se-ia num aumento de custos para todas as empresas transportadoras. A palavra-chave é “todas”. Como a subida de custos era para todas, as grandes empresas petrolíferas não teriam hipótese de evitar que as transportadoras aumentassem os preços. No fim, o encargo com o aumento da remuneração do trabalho recairia em grande medida sobre as grandes empresas monopolistas e rentistas.

O que se passou foi o oposto. O Governo pela forma quer como definiu os serviços mínimos quer como se precipitou para a requisição civil esvaziou completamente a greve. Uma picada de mosquito incomodou mais do que esta greve. Greves dos transportes públicos, professores, funcionários das escolas, médicos, estivadores tiveram efeitos muito mais disruptivos do que esta, que nem se sentiu. Pior ainda, este governo deu armas aos próximos para fazerem exactamente o mesmo. Como disse António Costa, “no limite, pode não haver diferença entre os serviços mínimos e os normais”.

Provavelmente, o leitor está contente com o facto de as suas deslocações não terem sido afectadas pela greve. Mas acho que faz mal. Cada vez mais estudos, para vários países, mostram que as empresas usam o seu poder no mercado de trabalho para manter salários artificialmente baixos. É, aliás, uma das melhores explicações, se não mesmo a melhor, para que aumentos de salário mínimo não tenham tido efeitos perversos no emprego.

Quero com isto dizer que o que se passa no sector dos transportes de combustíveis é uma caricatura do mercado laboral no resto do país. Um mercado laboral extremamente flexível controlado por empresas, ou associações de empresas, que conseguem impor as suas condições. Os sindicatos tradicionais falharam. Vê-se isso quando se olha para a evolução dos rendimentos do trabalho na economia nacional. Os novos sindicatos correspondem a uma tentativa dos trabalhadores de se reorganizar e aumentar a eficácia das suas formas de luta, reforçando a sua capacidade reivindicativa.

Acabo como comecei. Em 13 anos, o peso do rendimento dos trabalhadores na economia nacional caiu 17%. Ao mesmo tempo que se flexibilizava o mercado de trabalho, permitia-se que a falta de concorrência entre empresas fosse a regra em vários sectores, criando uma economia rentista e deixando os trabalhadores à sua mercê.

Depois de termos visto o governo socialista, suportado por toda a esquerda parlamentar, capitular no combate às rendas excessivas — dizendo que há ganhos excessivos para a EDP e renováveis mas que não os vai cortar —, vemo-lo a colocar-se contra os trabalhadores e usando a força repressiva do Estado para alistar trabalhadores à causa dos empregadores, recorrendo a leis pré-constitucionais mais adequadas a situações de emergência. Fê-lo para que a greve perdesse todo e qualquer efeito, desarmando assim os motoristas.

Depois de décadas de deterioração das condições laborais, não é de esperar que a tendência se inverta.

Professor da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

Os malefícios dos benefícios

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 20/06/2019)

Alexandre Abreu

Um bom sistema fiscal deve ser simples, transparente, justo, proporcionar os recursos adequados à atividade do Estado e não implicar custos excessivos (incluindo em termos de dispêndio de tempo) nem para a administração fiscal nem para os contribuintes. Sobre isto é possível toda a gente ou quase concordar, independentemente da posição política – ao mesmo tempo que naturalmente se diverge sobre quão progressiva deve ser a fiscalidade e sobre qual deve ser o alcance da provisão pública.

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O uso – ou abuso – generalizado dos benefícios fiscais no sistema fiscal português é, à luz dos critérios em cima, um fracasso em toda a linha. O grupo de trabalho criado pelo Governo há um ano para estudar esta questão apresentou esta semana as suas conclusões, tendo encontrado 542 benefícios fiscais diferentes que, no seu conjunto, implicam uma despesa fiscal (perda de receita fiscal estimada) correspondente a perto de 12 mil milhões de euros – cerca de 6% do PIB, ou mais do que o orçamento anual do Estado para a saúde.

Mais grave do que isso, concluiu o mesmo grupo de trabalho, é o facto de não estarem contabilizados de forma minimamente rigorosa e sistemática nem os custos nem os benefícios da grande maioria dos benefícios fiscais que têm vindo a ser criados de forma ad hoc ao longo dos anos. Cerca de um quarto destes benefícios nem sequer tem uma função definida – não se conhece ao certo o objetivo económico ou social que se pretende com eles alcançar.

O sistema português de benefícios fiscais é um emaranhado de exceções, lacunas e escapatórias, principalmente em sede de IRS e IRC, que é tudo menos simples e transparente, servindo interesses particulares mal definidos e beneficiando desproporcionalmente quem melhor domina os meandros labirínticos da legislação e consegue fazer-se valer disso.

A essa dimensão de injustiça acresce a que resulta do facto de os benefícios fiscais serem em geral uma forma socialmente regressiva de despesa. Veja-se o exemplo da proposta, ainda esta semana retomada pelo CDS, de os residentes no interior do país pagarem metade do IRS. Quando temos em conta que perto de metade das famílias portuguesas (as de menores rendimentos) não paga IRS devido a não terem rendimentos suficientes para tal, percebemos facilmente que esta medida beneficiaria essencialmente as famílias do interior que auferem maiores rendimentos – as mais pobres não teriam qualquer vantagem – e que o benefício será tanto maior quanto mais elevados forem os rendimentos das famílias em questão. Por baixo de uma capa aparentemente benigna, esconde-se uma proposta fortemente regressiva em termos sociais, nomeadamente face à alternativa de reforçar o investimento público e os apoios sociais dirigidos ao interior, que têm um efeito muito mais transversal e progressivo.

Os benefícios fiscais reduzem os recursos que permitem financiar a atividade do Estado, aumentam a opacidade e complexidade do sistema fiscal e são uma fonte importante de injustiça e regressividade. Devem por isso ser excecionais, rigorosamente avaliados nos seus custos e benefícios e preverem mecanismos automáticos de caducidade. Em boa hora este grupo de trabalho começou a olhar para este problema, avançando com propostas neste sentido que o Ministério das Finanças parece ver com bons olhos. Resta agora agir em conformidade.