Um retrato realista da advocacia em Portugal

(Nuno Godinho de Matos, 08/07/2018)

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As férias judiciais chegam na próxima Semana. A nossa actividade, em termos de encontro com os tribunais, fica suspensa até Setembro de 2018.

Em Outubro deste ano, começarão a sentir-se os impulsos inerentes às eleições para os cargos da Ordem, que irão decorrer, no final do ano 2019.

Pensando no que vai ser esse combate e nos temas que vão ser debatidos, atrevo-me a, na despedida para férias, voltar a pensar no papel e no regime dos associados, nas grandes empresas comerciais, nacionais, multinacionais e estrangeiras de venda de serviços jurídicos.

O país é composto por uma população activa, entre os 25 e os 64 anos de: 5 672 187 habitantes.
Em 2015 os municípios com mais de 100 000 habitantes, contando com crianças e reformados eram:

Lisboa, 504 471;
Sintra 382 521;
Vila Nova de Gaia 301 172;
Porto 214 579;
Cascais 210 361;
Loures 205 570;
Braga 181 502;
Matozinhos 173 451;
Amadora 176 644;
Oeiras 173 339;
Almada 169 689;
Gondomar – 166 338;
Seixal – 164 625;
Guimarães – 154 920;
Odivelas – 154 462;
Coimbra – 134 578;
Santa Maria da Feira 139 478;
Vila Franca de Xira 140 614;
Maia 135 678;
Vila Nova de Famalicão 133 028;
Leiria – 126 721;
Setúbal 117 780;
Barcelos 118 605;
Funchal 105 562;

Desta lista, de 24 municípios, são engolidos por Lisboa, em termos de prestação de serviços jurídicos: Sintra – Cascais – Loures – Amadora – Oeiras – Almada – Seixal – Odivelas – Vila Franca de Xira.

Do mesmo modo são engolidos pelo Porto: Vila Nova de Gaia – Matozinhos – Gondomar – Santa Maria da Feira e Maia
Permanecem, como centros económicos autónomos: Braga – Guimarães – Coimbra – Vila Nova de Famalicão – Leiria – Setúbal – Barcelos e Funchal.

Com menos de 100 000 habitantes, mas mais de 50 000 habitantes, incluindo crianças e reformados, surgem os seguintes municípios: não áreas urbanas, dado que não sei, como essa realidade se delimita: Viseu – Valongo – Viana do Castelo – Paredes – Vila do Conde – Torres Vedras – Barreiro – Aveiro – Mafra – Penafiel – Santo Tirso – Loulé – Ponta Delgada – Oliveira de Azemeis – Moita – Faro – Póvoa do Varzim – Palmela – Santarém – Figueira da Foz – Felgueiras – Alcobaça – Évora – Paços de Ferreira – Amarante – Castelo Branco – Portimão – Ovar – Pombal – Marco de Canavezes e Vila Real com 51 850 habitantes.

Depois restam os municípios ou cidades com menos de 50 000 habitantes.

Este é o país, onde 31.326 mulheres e homens, trabalham, como advogados, segundo a Prodata, com dados de 31 de Dezembro de 2017.

Procedendo-se à mais simples de todas as operações, dividir a população activa (dado que os menores e os reformados dificilmente procuram um advogado) pelo número de advogados, encontra-se: 5 672 187: 31.326 = um resultado teórico de 181 possíveis clientes por advogado!

Este rácio evidencia que não existe trabalho para todos aqueles que, na Ordem, estão inscritos como advogados. 181 cidadãs, ou cidadãos, por profissional é uma anedota. Não existe. Não há mercado. Não vale a pena pensar nisso.

Além disso, no interior, existem diferentes realidades, no que diz respeito ao mercado: uma coisa é a área urbana de Lisboa, outra a do Porto, e depois as cidades com mais de cem mil habitantes, as que ficam entre os 100 e os cinquenta mil e, finalmente, as outras.

Em Lisboa, o mercado da advocacia dos negócios e empresarial é completamente dominado pelas empresas estrangeiras e nacionais, como a PLMJ, a Galvão Telles, a Garrigues, a Abreu e muitas outras.

No Porto, o panorama só não é idêntico por que, nessa cidade, existiu uma burguesia comercial, cujas empresas eram dirigidas por pessoas singulares e não por “nomenclaturas”, as quais mantiveram, até meados dos anos 90, o hábito de escolher o “seu advogado”.

Porém, actualmente, o Porto, freneticamente, corre para ficar igual a Lisboa, até por que tem sido canibalizado por essas grandes empresas comerciais.

Em Lisboa, existem cinco tipos de titulares da cédula
profissional.

1.º) Os donos e patrões das empresas comerciais de venda de serviços jurídicos estrangeiras e nacionais, os ditos “partners” com os seus “Chief Executive Officers” ;

2.º) Os empregados subordinados destas empresas, sempre, contratados a recibo verde, mais precários que uma empregada doméstica, com horário de entrada e sem horário de saída;

3.º) Os donos e sócios das sociedades tradicionais de advogados, que se reúnem para partilhar despesas de instalação, e que, com frequência, não têm advogados empregados subordinados, pois não têm volume de trabalho que o justifique;

4.º) Os advogados em prática individual. E entre estes, uma distinção, os que trabalham há vários anos, pessoas com 40 anos ou mais com escritório e clientes próprios e os novos, alguns dos quais têm de fazer o escritório no café, pois trabalham em casa;

5.º) Os advogados de empresa, igualmente empregados subordinados das suas entidades patronais, só que, neste caso, sujeitos ao regime laboral do contrato individual de trabalho, auferindo 14 meses de salário por ano; tendo direito a processo disciplinar, para serem despedidos e horário de trabalho.

O Porto é idêntico, embora em menor escala.

Quanto ao resto do país, a realidade divide-se entre: Os advogados com mais de 40 anos, implantados no mercado, com clientes fidelizados e com uma prática da profissão consolidada. E os mais novos, que entram na profissão, todos os anos, ou com menos de dez anos de exercício, os quais não têm clientes e, para terem algum trabalho, inscrevem-se no apoio judiciário.

Os 31.000 profissionais inscritos como se dividem por todas estas classes?

Não é possível fornecer uma resposta rigorosa, dado que a Ordem, embora detenha um conjunto de dados que permitiria apresentar resultados, não os divulga, guardando-os para si, com muita prudência. Comportamento no qual se irmanaram todos os bastonários até ao momento.

Admita-se, porém, que, nas grandes empresas nacionais e estrangeiras, sejam sócios e patrões 1.000 titulares de cédula profissional. O que constitui um exagero. Mas prefiro pecar por excesso, contra o meu pensamento.

Admita-se, que, nas mesmas grandes empresas, sejam empregados subordinados, a recibo verde, 2.500 trabalhadores.

Que em Lisboa, existam uns 2.000 advogados tradicionais, com a sua situação económica consolidada e segura. Bem como em igualdade de condições uns 1.000 no Porto.
Se estes números não constituírem um absurdo, mencionam-se 6.500 pessoas, desde os empregados subordinados a recibo verde, até aos detentores da faculdade de exigirem aos primeiros o cumprimento das suas ordens, por que, se não as cumprirem: “out, you are fired”!

Então, dos 31.000 – 6 500 = 24 500

Isto é, existe um número que rondará os 24 000 advogados, no quais se encontram os advogados à antiga, consolidados no século passado, e os novos, dependentes do SAD.

O que significa que, seguramente, sem a mínima sombra de dúvida, existe um conjunto de cerca de 23.000 advogados que vivem com uma mão atrás e outra à frente, sobrevivendo graças ao SAD.

Isto ocorreu pelo efeito conjunto de duas razões:

1-º) surgiram imensas faculdades a vender cursos de direito, dado que os mesmos não exigiam qualquer investimento, para lá da remuneração dos professores e da existência de uma biblioteca;

2-º) Tendo o regime democrático (e muito bem) limitado o filtro social de acesso ao ensino superior, passaram a existir toneladas de licenciados em direito que pedem a inscrição na Ordem e, depois, não têm trabalho, pela simples razão que não há mercado para eles.

Como consequência desta evolução, os bastonários deixaram de ser grandes advogados, em fim de vida (cujo último exemplo foi o Senhor Bastonário Pires de Lima) para passarem a ser advogados, normais, em busca da representatividade e visibilidade que o cargo lhes fornece.

Após a eleição daquele Grande Advogado, ocorreu um acto voluntarista, do Exmo. Sr. Dr. Miguel Júdice e, a seguir, só foram eleitos candidatos que o eleitorado admitiu poderem gerar a mudança, no estatuto profissional e de vida dos advogados.

Foram: Rogério Alves, em 2005; Marinho e Pinto, em 2008; Elina Fraga em 2014.

Rogério Alves nada mudou, mas teve o grande mérito de ser manter sem alianças difíceis de entender.

Marinho e Pinto nada mudou. Apresentou um discurso que sugeria a possibilidade da concretização da mudança e, do mesmo modo, manteve-se sem alianças difíceis de entender.

Elina Fraga, candidata criada e apontada por Marinho e Pinto, apesar de eleita por um imenso desejo reformista, não alterou o que quer que fosse e manteve uma política própria de alianças.

O actual Senhor Bastonário foi eleito pelo desejo de retorno ao modelo representativo dos advogados tradicionais, só que, padece de falta de substância, história profissional e diferenciação. E isto é assim por que, desde meados dos anos 90, deixaram de existir Grandes Advogados, tendo sido substituídos por “marcas”.

Já não existem grandes advogados. Talvez o último, no Porto, seja o Senhor Bastonário Lopes Cardoso e em Lisboa, Daniel Proença de Carvalho, o qual compreendeu que tinha de se diluir numa grande empresa comercial, para deixar uma parte da sua profissão aos seus herdeiros.

Assim, a realidade é: existe um universo de cerca de 23.000 advogados, pauperizados, que se esforça por sobreviver, graças ao SAD.

Depois, existem 6 000, consolidados no exercício da profissão e financeiramente autónomos, entre os quais se contam os patrões, donos das empresas comerciais, os quais são poderosos, têm muitas relações sociais, imensas conexões em Portugal e no exterior, o que os torna interessantes, apetecíveis, investidos na deliciosa volúpia da sedução e tudo o mais que a proximidade com os ricos gera.

Assim e por isso, as pessoas que exercem cargos de direcção em organizações representativas de classes profissionais procuram: burilar arestas, evitar clivagens, gerar ligações, consensos, amenizar tudo e todos. Isto é: unir a água e o fogo e fugir de rupturas, dado que, quanto mais o fizerem, maior será a sua capacidade de influência, de acção e o seu poder. Mas sempre, numa perspectiva pessoal, que nada tem que ver com a razão pela qual foram eleitos.

Pode-se, então, escrever que existem cerca de 23.000 advogados que vivem em condições de dependência do SAD; nada se podendo fazer contra essa realidade, dado que, a criação do “numeros clausus”, para a inscrição na Ordem, estaria, infectada por uma grosseira e putrefacta inconstitucionalidade.

Assim sendo, a única realidade que se pode tentar alterar é a das empresas comerciais vendedoras de serviços jurídicos, combatendo a precaridade do estatuto dos seus empregados subordinados, contratados a recibo verde e, para tanto, basta:

1.º) Iniciar a luta para que os associados das sociedades, com mais de dez inscritos na Ordem, incluindo os sócios, passem a estar sujeitos ao regime do contrato individual de trabalho. Tal como sucede, desde sempre, com os advogados de empresa, sem que jamais qualquer virgem sacerdotisa se tenha atrevido a gritar pela salvaguarda da pureza da deontologia;

2.º) Desencadear a luta para que as empresas comerciais vendedoras de serviços jurídicos, onde esses advogados trabalham, como empregados subordinados, sujeitos à maior das precaridades e arbitrariedades, passem a suportar 23% do seu salário, como desconto legal, para a CPAS.

Estas duas medidas, se forem concretizadas, contribuirão mais do que dez anos inteiros de discursos, a 24 horas por dia, para acabar com a hipocrisia do dito pensamento, segundo o qual:

“Os Advogados não têm sabido retirar da diferença e do pluralismo que ressaltam das diferentes formas de estar na profissão, os devidos benefícios para si e para os cidadãos que representam. Aquilo que deveria enriquecer a vivência e a capacidade de intervenção na vida judiciária e na sociedade civil, derivou em intolerância entre pares.”

E farão com que, quando se olha para Ordem não se veja a mesma dividida:

“em perpétua convulsão. As mais das vezes, contudo, a pugna é artificial, dado que se constrói sempre sobre o pano de fundo de uma, quiçá mirífica, luta de classes… Há sempre: “nós” e “eles”; “pobres” e “ricos”; “acesso ao direito” e “fora do acesso ao direito”; “maus” e “bons”.”

Resta saber se aparecerá algum candidato que as subscreva?

O que, seguramente, não irá ocorrer, dado que, tal como sucedia em Roma, os cargos são procurados, não para servir, mas para os seus titulares beneficiarem do prestígio e representatividade que lhes é inerente.  Desculpem a extensão.

Boas férias, para aqueles que as possam ter.

NA PROA DOS MOLICEIROS, CARAGO!

(José Gabriel, 14/06/2018)

moliceiro

“Universidade de Aveiro anuncia estágios com salários de 120 euros para licenciados”- lê-se no Jornal de Negócios. (Ver notícia aqui ).

Perante isto, o nosso primeiro impulso – que, a bem dizer, costuma ser o certo – é dar um murro na mesa, em a havendo – somos pela paz – e gritar: cambada de crápulas! – notem, apesar de tudo, a contenção. Depois, pensamos bem e a coisa merece uma análise mais fina.

Ora, sabendo nós que a palavra “salário” tem a sua origem no latim “salarium” , o soldo, pagamento do soldado que era feito em sal, logo nos apercebemos de que a iniciativa da Universidade de Aveiro é uma aposta na economia local, já que todos conhecemos a importância da produção do sal nesta região.

São, pois, só vantagens. Excepto para os contratados, claro, mas esses vão tornar-se, por esta via, funcionários públicos os quais são, asseguram-nos quase todos os comentadores televisivos, um bando inúteis com demasiados privilégios.

Deste modo, não só se aproveitam os recursos locais como, por esse facto, se dá força ao movimento municipalizador com que o nosso governo quer livrar-se de problemas, entregando a sua resolução aos poderes locais que, no caso de Aveiro, são de uma formosura democrática e de uma tradição progressista da qual já muitos de nós tivemos explosiva – literalmente – experiência.

E mais: levando às últimas consequências a etimologia deste pagamento, a vida dos contratados não apresenta grande esperança, uma vez que bem sabemos do efeito do consumo de sal nas doenças cardiovasculares, dando assim novo sentido à ideia de contrato a prazo. 

Como se vê, a Universidade da chamada – por um pobre de espírito, é verdade – “Veneza de Portugal”, rasga novos caminhos para a Nação. Desta vez não são caravelas, são barcos moliceiros de passear turistas, mas é o que se arranja com a boa vontade local.

Elevado por este espírito inovador, eu próprio proponho para a dita Universidade um novo hino académico: 

“Sapore di sale
Sapore di mare
Un gusto un po’ amaro
Di cose perdute
Di cose lasciate
Lontano da noi
Dove il mondo è diverso
Diverso da qui”

A cunha de Assunção Cristas

(Isabel Moreira, in Expresso, 07/05/2017)

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Cunha. Foi a palavra feita figura de estilo que a líder do CDS utilizou para caracterizar a integração dos precários no Estado. Mais rigorosamente, a expressão de Cristas foi esta: “institucionalização da cunha”.

Assunção Cristas faz de vez em vez afirmações deste tipo. No PSD também não faltam ataques anacrónicos ao sindicalismo.

As afirmações são graves, ainda que não surpreendentes. Graves porque a democracia cristã e a social-democracia usavam saber (e defender) o papel histórico e permanente dos sindicatos numa democracia real.

O governo anterior demonstrou que a ideologia clássica dos dois partidos (PSD/CDS) foi substituída pela ideologia dos cortes. Cortes nos direitos dos mais fracos e aposta ideológica numa flexibilização laboral selvagem (aqui e ali travada pelo então odiado Tribunal Constitucional) na crença absurda (porque desmentida pela história) de que quanto mais flexibilidade laboral, mais empregabilidade.

Como se viu, a receita desumana teve o resultado oposto, como tantas pessoas advertiram, gente da área política de quem governava, e não apenas os “empecilhos” dos sindicatos.

Agora, na oposição, escutamos variadíssimas vezes o PSD a atacar o sindicalismo, o mesmo é dizer a atacar a sua própria história enquanto partido, atirando-se para um admirável mundo em que os trabalhadores devem “fazer-se à vida”.

O CDS aderiu ao estilo e, sem pudor por ter sido coautor da precaridade, atira-se ao programa de regularização extraordinária de vínculos precários na administração pública e no setor empresarial do estado. Neste sistema, regulado pela Portaria nº 150/2017, dá-se, evidentemente, um papel fundamental aos interessados, mas também se conta com as estruturas de representação coletiva dos trabalhadores, na medida em que estas podem conhecer e comunicar situações de precaridade de que tenham conhecimento. Pretende-se assim um sistema abrangente com a colaboração de todos, desde logo os que representam os trabalhadores e as trabalhadoras.

Acontece que para Assunção Cristas um sindicato representa um obstáculo ao seu mundo do cada um por si cheio da sorte que calhe ao mérito com que nasça.

Por isso, descaracteriza intencionalmente a função histórica e atual dos sindicatos e atreve-se a dizer que este sistema de regularização dos precários é a “institucionalização da cunha”.

É uma afirmação extremista, triste e em bom rigor ridícula. Usada como recurso retórico populista. Uma espécie de cunha oratória.