O CDS vai fazer falta mas a culpa não foi de “Chicão”

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 10/02/2022)

Daniel Oliveira

O CDS foi europeísta e eurocético, populista e conservador, democrata-cristão e liberal. A indefinição do partido tinha os dias contados e o taticismo de Portas acentuou-a, transformando-se ele próprio, e só ele, no único elemento identitário do partido. Rodrigues dos Santos foi um desastre, mas a tenaz da IL e do Chega já estava montada. Portas teve 15 anos para mudar o CDS. Pô-lo na sua dependência. Pronto para morrer com a sua partida. “Chicão” só apagou a luz.


A antiguidade não é um posto. Não é por ter fundado a nossa democracia que o CDS era fundamental para a sua saúde. É porque o CDS funcionava como barragem à direita profunda, herdeira de meio século de ditadura. Uma direita que mantinha vivo o racismo estrutural do saudosismo colonial, o ódio aos pobres de uma sociedade desigual e classista, o desprezo por uma democracia vista como sinónimo de corrupção e desordem e um conservadorismo beato alheio a qualquer ideia de laicidade.

A tudo isto, o CDS acrescentou moderação. O saudosismo concentrava-se em questões estritamente simbólicas, expressões como “espoliados do ultramar” ou uma justíssima (mas pouco consequente) preocupação com os ex-combatentes. O classismo era adocicado pela doutrina social da Igreja. E muitos fascistas foram convertidos em democratas contrariados, mas inofensivos. O conservadorismo era o que mais o distinguia do PSD, mas ainda longe das guerras culturais de hoje.

No resto, era o típico partido liberal de direita de país pobre – defensor de muito Estado no apoio às empresas, pouco Estado nos impostos, pouquíssimo Estado no controlo de instrumentos económicos, Estado todo nas funções de segurança. Como já escrevi, aquele era o último apeadeiro onde desembarcava quem não tinha mais direita para onde ir. Depois daquilo, só havia marginais, com muito pouco a ver com a tradição da direita autoritária portuguesa.

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Mesmo tendo tido na cúpula do PPD alguns opositores ao Estado Novo, a nossa direita é filha da transição da ditadura, onde está o seu berço, para a democracia, onde teve de se reinventar. A vergonha é evidente nos nomes – um partido de centro-direita que se chama “social-democrata” e outro de direita que é de “centro” – e de muitos equívocos no debate ideológico português, que seria incompreensível para qualquer estrangeiro. Essa crise de identidade haveria de ser um problema quando já nenhum político e poucos eleitores viessem do tempo da direita envergonhada. E foi.

A total indefinição ideológica do PSD tem a mesma origem do permanente transformismo do CDS, que já foi europeísta e eurocético, populista e conservador, democrata-cristão e liberal. Nasceram num tempo em que toda a sua identidade tinha de ser mitigada. E mantiveram-se nessa indefinição muito para lá do que seria normal. Chegou o tempo da clarificação.

Francisco Rodrigues dos Santos não é a causa do falhanço do CDS. É a consequência. Durante 15 anos (repartidos por dois mandatos), Paulo Portas moldou o partido ao seu próprio taticismo absoluto. Inventou Manuel Monteiro, reerguendo o partido, que passa de 5 para 15 deputados, com um discurso populista e eurocético. Quando Monteiro já tinha desempenhado o papel de rampa de lançamento de Portas, foi sacrificado. Assim como Ribeiro e Castro começou a ser torpedeado mal venceu ao candidato de Portas. Portas fez crescer e deu poder ao partido, mas sufocou-o.

Sempre que as coisas ficaram mais difíceis, Portas não hesitou em usar tudo o que o CDS supostamente travava. Não foi Ventura que começou com a conversa sobre os subsidiodependentes para estigmatizar os benificiários do então Rendimento Mínimo Garantido. Não foi o primeiro a chamar ao RSI “financiamento da preguiça” ou que pela primeira vez se referiu a “ciganos do rendimento mínimo garantido”. Nem o primeiro a usar os imigrantes no confronto político, alimentando uma falsa relação entre imigração e criminalidade. Nem o primeiro a socorrer-se do populismo penal, defendendo, entre outras coisas, a redução da responsabilidade penal para os 14 anos. Foi Portas, sempre que se sentiu eleitoralmente apertado.

Muitos dirão que estas cedências de Portas foram o dique que adiou a chegada da extrema-direita a Portugal, ficando-lhe com bandeiras sem ultrapassar alguns limites que o Chega viria a romper sem pudor. O mau resultado de Assunção Cristas, em 2019, pode dar razão a essa tese. Ao contrário do que muita esquerda achava, talvez levada pela impaciência de António Costa com a líder do CDS, ela moderou o discurso do CDS. Mas, na realidade, já pouco havia a fazer.

A indefinição do partido tinha os dias contados e o taticismo absoluto de Portas nunca a resolveu. Pelo contrário, acentuou-a, dando guinadas atrás de guinadas e transformando-se ele próprio, e apenas ele, no único elemento identitário do partido. Todos os que o tentaram superar fracassaram. E, por mais brilhante que seja Portas, isso nada diz das suas qualidades, mas dos seus defeitos. Se alguém se torna indispensável a uma instituição quer dizer que liderou mal.

Francisco Rodrigues dos Santos foi um desastre. Leva-nos a pensar na credibilidade de revistas como a “Forbes” perceber que aquele citador frenético e sem mundo foi, quando dirigia a JP, assinalado como uma promessa de futuro para a política portuguesa. Mesmo como líder de uma “jota”, não havia ali qualquer consistência para além do verbo.

Mas não foi “Chicão”, como sintomaticamente nunca deixou de ser tratado, que matou o CDS. Quando ele chega à liderança do CDS já estava montada a tenaz que o iria estrangular. Liberais radicais de um lado, extrema-direita do outro. Os dois vindos de dentro do PSD e do CDS. Talvez sobrasse, como defendi, uma nesga que permitisse uma pequena representação parlamentar, adiando a morte e permitindo, talvez, uma coligação ou fusão com o PSD. Fosse o caminho de Adolfo Mesquita Nunes, resistindo em versão mais moderada à pressão da IL, fosse o de Nuno Melo (de assinalar a coragem de se candidatar à liderança de um partido sem representação parlamentar), resistindo em versão mais moderada à pressão do Chega. Mas o mal estava feito. Portas teve 15 anos para mudar o CDS. Pô-lo na sua dependência. Pronto para morrer com a sua partida.

Agora, já não há dique algum. A direita que sempre tivemos regressou, com menos delicadeza e maneiras. Neste cenário, não havia futuro para o CDS. Vamos sentir a sua falta. Sobretudo o PSD, que deixou de ter, ao seu lado, com quem conversar sem se queimar. Mas era inevitável. Francisco Rodrigues dos Santos só apagou a luz.


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O Universo, o mundo, a minha paróquia

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 30/12/2021)

Miguel Sousa Tavares

1 O James Webb partiu para o seu posto de observação no espaço exactamente no dia de Natal e essa foi practicamente a única notícia boa que o planeta Terra teve neste Natal. De resto, o bom Papa Francisco repetiu os seus apelos, que ninguém escuta, à concórdia em lugar dos conflitos e à solidariedade entre nações em lugar dos egoísmos; mais uns quantos imigrantes morreram a tentar atravessar o Mediterrâneo da miséria para a esperança e a covid continuou a condicionar, envenenar e adiar as nossas vidas, enquanto alguns idiotas persistem em exigir que se faça como se nada se passasse. Talvez daqui a seis meses o James Webb nos possa começar a explicar, mais uma vez, como somos insignificantes habitantes de um planeta precioso, num universo demasiado vasto para a nossa capacidade de entendimento. Como somos um frágil milagre num imenso céu pejado de luzes por decifrar.

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ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

2 Em Janeiro, depois da sua conferência virtual com Vladimir Putin, Joe Biden iniciará conversações bilaterais Estados Unidos-Rússia, à revelia dos “Doctors Strangelove” da NATO — esses falcões histéricos que todos os dias colocam artigos supostamente sé­rios na imprensa ocidental, incluindo a nossa, sobre a iminente invasão russa da Ucrânia, mas que nunca se detêm a meditar naquilo que Putin disse na sua tradicional conferência de imprensa de Natal para os correspondentes estrangeiros: “Eles só falam de guerra, guerra, guerra. Mas não fomos nós que colocámos tropas nas fronteiras de Inglaterra ou dos Estados Unidos e que planeamos colocar lá mísseis nucleares; foram eles.” Há poucos anos, de visita a Moscovo, conheci alguém próximo de Vladimir Putin — não um empresário, mas um operacional. Ofereceu-me, a mim e à minha pequena comitiva, um fabuloso jantar no Pushkin, um dos mais sofisticados restaurantes da Europa. Quando lhe perguntei por que razão a Rússia pós-soviética não se assumia como potência europeia de pleno direito, respondeu-me, soberbo: “Porque nós não somos uma potência europeia; somos uma potência euro-asiática.” A tal Rússia dos 12 fusos horários, 60 etnias, 30 nações e 20 religiões de que falou Gorbachov uns anos antes, na Gulbenkian. Uma Rússia que só se pode entender verdadeiramente lendo a sua história, e não os artigos encomendados pelos generais e políticos avençados da NATO. Uma Rússia imperialista, sim, como o são, hoje ainda, os Estados Unidos, a China, a Turquia, Inglaterra ou França. Uma Rússia que esmaga, como sempre o fez, os seus opositores, até no estrangeiro, e que interfere quanto pode no processo democrático das sociedades ocidentais, mas que também não tem um Trump, nem um QAnon ou outras ameaças igualmente graves às democracias liberais. Uma Rússia que vive no terror milenar do cerco e na obsessão da independência. E que, por isso, devia ser compreendida e escutada, e não desprezada — ou porque não significa nada no grande conflito sino-americano ou porque nada mais é para a Europa do que um gasoduto, que, todavia, tem o poder de a condenar ao frio e à paralisia. No “Público” desta terça-feira, Teresa de Sousa — de longe a nossa melhor colunista em temas internacionais e de leitura obrigatória — alinhava pela tese ofi­cial da ameaça russa sobre a Ucrânia e a Europa. Segundo ela, o “problema é que Putin não aceita o status quo actual nem tenciona cumprir as regras” (quais regras — as ditadas pela NATO?). Na explicação de Teresa de Sousa há duas razões por detrás da atitude do Presidente russo: “Ser reconhecido como o chefe de uma grande potência mundial” e “redesenhar a arquitectura de segurança europeia, garantindo o congelamento das fronteiras da NATO”. Se tivermos em conta que estamos a falar de um gigante mundial em termos geográficos, e não só, e da segunda potência nuclear do mundo, não vejo como é que qualquer das razões pode ser descartada como “inaceitável” sequer para discussão.

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3 Assisti, entre o divertido e o apiedado, ao vídeo de Natal protagonizado por Francisco Rodrigues dos Santos, o “Chicão”, tendo como tema a direita e as eleições. Algum cérebro de propaganda iluminado pela quadra pariu um cenário de mesa de Consoada em que na cabeceira estaria o CDS, como anfitrião, em frente o Chega, à direita do anfitrião o PSD e à esquerda o Iniciativa Liberal. Depois, entre árvore, musgo e presépio, um sorridente “Chicão”, disfarçando a angústia que lhe deve ir na alma, percorria a mesa, explicando: aqui, o Iniciativa Liberal não pode ser convidado, porque, embora tenha algumas ideias boas (iguais às nossas), não se preocupa com os pobrezinhos como nós; aqui, o Chega também não pode ser convidado, porque não tem maneiras à mesa; e aqui, o nosso velho amigo, o PSD, não pode vir porque este ano resolveu baldear-se com novos amigos so­cialistas. Conclusão do vídeo: o CDS passou o Natal sozinho. Olha, que descoberta! E se fosse só o Natal…

Há um telescópio gigante no espaço, uma mesa de patetas vazia na Consoada e uns patos a provocarem um urso.

André Ventura espera que o Chega tenha entre 8% e 12% dos votos e entre 15 a 25 deputados em 30 de Janeiro. A minha aposta é de que nunca passará dos 10% e a minha esperança é de que a campanha eleitoral sirva para mostrar que o Chega é um partido de um só discurso, de nenhuma solução e de um só homem. E que, uma vez saídas as tropas para o terreno, o país se dê conta do imenso vazio e da indigência intelectual e política daquela gente. Mas, se não for agora, será depois: o pior que pode acontecer a André Ventura, a prazo, é eleger e expor perante o país um grupo parlamentar de simples idiotas de extrema-direita.

O mesmo, acredito, acontecerá com Rui Tavares e o seu Livre: os eleitores terão ocasião para se dar conta de que, tirando um conhecimento adquirido em alguns dossiers europeus durante a sua passagem pelo PE, ele nada mais tem para dizer que valha a pena ouvir. E espero que o PAN se comece a esvaziar como um balão de vacuidades e demagogia e uma simples muleta de ocasião que é e está disposto a continuar a ser. Divertido, divertido mesmo, vai ser continuar a assistir às piruetas que o BE e o PCP fazem para se lamentarem das “inúteis eleições” que eles próprios provocaram e do perigo do bloco central que agora espreita. Mas todos podem espernear em vão: tudo o centro vai esmagar.

4 António Costa foi esclarecedor e directo em muitas coisas na sua entrevista à CNN Portugal: quer maioria absoluta; não renovará o acordo com as esquerdas, pelo menos agora; não aceita o acordo de mútua viabilidade de governação proposto por Rui Rio, pelo menos a dois anos; demitir-se-á de secretário-geral do PS se não ganhar as eleições, e jamais será candidato a Presidente da República (assim contrariando as previsões de algumas pitonisas ofi­ciais da nação). Porém, não esclareceu ainda com clareza: a) o que é não ganhar as eleições; b) o que fará se as vencer sem maioria absoluta, e c) o que recomendará que o PS faça se for o PSD a vencê-las sem maioria absoluta. E deixou uma previsão, a de que é provável que um dia Pedro Nuno Santos chegue a primeiro-ministro, “se for essa a vontade da generalidade dos socialistas”. Mas aqui sou eu que faço de pitonisa: tal jamais acontecerá. Até pode acontecer que a generalidade dos socialistas queira um dia fazer prova de garotice, mas daí até os eleitores fazerem também prova de instinto suicidário vai uma enorme distância: pelo menos um milhão de votos, os dos que pagam impostos a sério.


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As eleições legislativas e o PSD

(Carlos Esperança, 11/12/2021)

Rui Rio, mal refeito ainda da vitória interna contra Paulo Rangel, já tinha os adversários a exigir-lhe os lugares das listas de deputados, a liderança dos círculos eleitorais, enfim, o poder.

Roma não pagava a traidores, e, no PSD, eram esses que exigiam o pagamento. Rui Rio fez o habitual, despediu os mais venenosos e juntou alguns aos que lhe foram leais, para não ter apenas indefetíveis, que reduzem a massa crítica do partido, que aspira ao poder.

Enquanto os derrotados procuram digerir e explicar os resultados, incluindo o PR, quem perde é que explica, Rio faz jus à sua tradicional heterodoxia de fazer campanha. Não se lhe pode negar a coragem. É capaz de cometer erros primários e de ser intuitivo e sagaz, incluindo a decisão de abandonar o CDS ao naufrágio e deixar a comissão liquidatária à porta da Assembleia da República.

O CDS deixou de fazer falta à democracia depois de se tornar o refúgio de reacionários, esgotado de eleitores e a viver dos negócios de secretaria de Paulo Portas, mera muleta do PSD, independentemente de quem fosse o líder.

Rui Rio, convicto de que os quadros de algum valor irão abrigar-se no PSD, obrigou o CDS a imolar-se. Não será o único partido a perder o líder, mas o único capaz de perder todos os deputados.

O PSD está habituado a lutas internas, que cessam quando chega ao poder. Rui Rio sabe isso e pode ser o sacrificado. Quando o obscuro salazarista, Cavaco Silva, chegou a PM, após a improvável ascensão à liderança, derrotando João Salgueiro, apoiado por jovens intriguistas, Marcelo, Júdice, Santana Lopes, Durão Barroso e António Pinto Leite, no Congresso da Figueira da Foz, passaram a ser líderes os piores, a chegarem ao poder os mais próximos do salazarismo.

Rui Rio é exceção. A sua queda, com a ajuda de Marcelo, recolocará o PSD, no lugar a que Cavaco e Passos Coelho o conduziram, a tralha que tanto se aliava ao CDS como se coligará com o partido fascista. Mesmo com Rui Rio, o PSD não abdicará do poder por alergia aos fascistas. O partido racista, xenófobo, defensor da castração e pena de morte já se encontra no Governo Regional dos Açores.

O PR não ponderou os prejuízos para o País ao precipitar as eleições. Se a correlação de forças partidárias se mantiver, inviabilizada a repetição da maioria de esquerda do XXI Governo Constitucional no próximo (XXIII), há de perguntar-se para que serviram.

A simpatia e impunidade de que o PR goza nos media permitem que seja ele a colocar no PSD e no Governo um homem de mão. Não lhe faltam Moedas de reserva. Em vez de ser julgado pela opinião pública, será ele o juiz do novo Governo.

Só a improvável maioria absoluta do PS ou de direita anularia os intentos de Marcelo e a absurda e inconstitucional deriva da democracia parlamentar para presidencial.

Rui Rio ameaça estar na origem de um terramoto partidário. Numa época perigosa, não deixa de ser aliciante seguir o desespero e a estridência dos arautos da direita.

É justo reconhecer a Rui Rio a coragem e a diferença dos salazaristas que afrontou.


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