O que é que interessa saber quem é o pai da criança?

(Francisco Louçã, in Expresso, 02/04/2019)

Francisco Louçã


Acho tão natural a disputa de segunda-feira sobre a putativa paternidade da medida de redução dos passes sociais como que a esqueçamos logo no dia desta terça-feira. Sim, o Governo e o PS podem dizer que aplicaram a medida e até partilhar as cerimónias com autarcas de cores diversas, que aliás só compõem o ramalhete e reforçam a centralidade governamental nesta operação.

O facto é que a concretizaram, mesmo que tenham gerido o calendário de modo a adiar o processo até à primavera, e em parte até ao verão de 2019. Acusação de eleitoralismo? O primeiro-ministro não quer saber menos desse assunto, é-lhe indiferente, sabe que neste deve-e-haver ganha sempre. Vantagem para o PS. É campanha eleitoral? Claro que é, e depois, perguntará o primeiro-ministro, que atire a primeira pedra quem nunca fez campanha a partir do seu poder, agora sou eu quem está cá.

Vem então o PCP reclamar que há um projeto de resolução de há 22 anos que pedia o mesmo e que insistiu. Vem o Bloco dizer que o tinha proposto desde que existe há vinte anos e que colocou o assunto no acordo com o PS na Câmara de Lisboa. Tudo certo. E tudo isso tem a validade de um dia. O ponto é que saber qual dos pais da criança foi mais pai é razoavelmente indiferente para toda a gente que vai beneficiar do novo passe social e, portanto, os acessos de reivindicação proprietária de segunda-feira serão esquecidos na terça-feira.

Acho aliás tão expectável que o Governo e os parceiros da maioria parlamentar (Costa deve deliciar-se ao notar que este é um dos casos em que aquele partido que repete que não há acordos de incidência de maioria parlamentar a reivindica ferozmente) sublinhem o efeito redistributivo da medida, quanto que as direitas se mostrem incomodadas com isso. Caem na armadilha e com uma ingenuidade que mete dó. Sentir o silêncio contrastante de Cristas ou a multi-intervenção de Rio a fazer contas sobre Lisboa contra Bragança deve ser, para o Governo e as esquerdas, um conforto de alma. O PSD exige ao seu líder a energia de se afundar em acusações levianas e que vão contra o que toda a gente percebe da bondade da medida – eis a demonstração quimicamente pura de como a atmosfera das sedes do partido está intoxicada de insensatez. É um guião perfeito, que relembra como o PSD e o CDS se empenhavam em “empobrecer” Portugal, nas palavras do anterior primeiro-ministro Passos Coelho: eles não gostam do que as pessoas beneficiam. A história volta para trás e é isso, que as direitas deviam tentar fazer esquecer a todo o custo, que agora ajudam prestimosamente a relembrar. Se pusessem os olhos em Marques Mendes, o pai da teoria de que o-interior-é-que-está-a-pagar estes passes sociais e que se virou a tempo para elogios ditirâmbicos à medida que antes era tão desigualitária, perceberia como escorregaram na esparrela.

Lembrem-se: o mundo real bate à porta e vai ser no dia a dia que se vai medir o valor da medida. Haverá quem desconfie que faltou ambição e até cuidado na preparação desta mudança tão importante, tão tardia e que parece tão improvisada, com Centeno logo a alegrar a festa com o seu inevitável “não há mais dinheiro”

Mas que o Governo não se engane. Há sempre um choque de realidade. Ao contrário do que parecem pensar os planeadores centrais, os transportes públicos estão mesmo impreparados para um aumento significativo da procura, pelo menos em Lisboa, que conheço melhor. Ora, segunda-feira havia filas imensas nos guichês dos passes sociais, vai mesmo entrar mais gente nos transportes. Os autocarros que apanho para ir trabalhar estão apinhados e raramente cumprem horários. O Metro é uma desgraça, com tempos de espera inadmissíveis e sobrelotação homérica. Houve ligeiras alterações na Carris, é certo, mas no Metro nada, só tem piorado. Esta medida devia ter sido preparada ao longo de um ou dois anos com investimento em equipamento, contratação e formação de mais pessoal e o que foi feito nem chega a meio caminho. Vai haver muita gente a queixar-se e desconfio de que os ministros, lá nos gabinetes, nem se vão aperceber, contentes como estão com os grafismos das reduções de preços que os telejornais repetiram. Mas lembrem-se: o mundo real bate à porta e vai ser no dia a dia que se vai medir o valor da medida. Haverá quem desconfie que faltou ambição e até cuidado na preparação desta mudança tão importante, tão tardia e que parece tão improvisada, com Centeno logo a alegrar a festa com o seu inevitável “não há mais dinheiro”.

Dir-se-á, à boca pequena, que isto é tudo “português suave” e que estamos condenados a esta sina de nos irmos adaptando. Feroz engano, é demasiado arriscado deixar andar ou prometer e cumprir pouco de uma mudança deste calibre no quotidiano de tanta gente que se enfia nos autocarros e metros a abarrotar e que vai todos os dias para um trabalho pesado, para voltar ao fim do dia a casa, depois de tantas horas de labuta.

Uma coisa é certa: a vida quotidiana das grandes cidades entre transportes e habitação, entre cultura e trotinetes, entrou mesmo na agenda política. Não vai sair tão depressa e só se vai radicalizar. Ainda bem, a revolução urbana só está a começar e já veremos quem é capaz de a puxar para melhorar a vida de milhões de pessoas.


Passes: esta é a “geringonça” de que gosto

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 21/03/2019)

Daniel Oliveira

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Não é eleitoralismo um governo tomar uma medida que o eleitorado aprecia. É eleitoralismo tomar uma medida que o eleitorado aprecia e se sabe estar errada. E é eleitoralismo mentir sobre uma medida para ganhar votos. Querem um exemplo de eleitoralismo? Criar, no Portal das Finanças, em véspera de eleições, um simulador de devolução da sobretaxa do IRS que se revelou totalmente enganador. Isso é eleitoralismo e foi o muito sisudo Passos Coelho que o fez.

Até se poderia falar de eleitoralismo se estivéssemos perante uma medida de última hora, determinada pelas eleições. Ora, toda a gente sabe que esta medida começou a ser preparada depois das autárquicas, tendo como principais impulsionadores os dois presidentes de Câmara de Lisboa e do Porto. Ou seja, o seu calendário foi o autárquico e bem longe de novo ato eleitoral. Sobra o facto de a sua entrada em vigor ser neste ano. Seguindo essa lógica, perante o impacto que tem na carteira de tantos portugueses, quanto mais cedo entrasse em vigor mais votos renderia.

Querem saber de uma medida tomada em véspera das eleições? A concessão a privados dos STCP e Carris. Isso sim, um negócio de última hora, que se não tivesse sido revertido seria ruinoso para o Estado, para uma política de transportes e para os cidadãos destas cidades. Como foi a privatização dos CTT e da ANA, por exemplo. A função não era eleitoralista, é verdade. Era bem pior do que isso. O que não faz sentido é tratar como eleitoralista tudo o que beneficia a maioria do povo, e sobretudo os mais pobres, e como corajoso tudo o que tem o sentido inverso, como reduções do IRC ou dos impostos dos escalões mais altos. Governar permanentemente contra as necessidades da maioria mais carente não é sinal de coragem, é desrespeito pela democracia.

A redução do preço dos passes faz mais pela justiça social do que qualquer devolução de rendimento ou redução de impostos. O rendimento indireto garantido pelo baixo preço de serviços públicos fundamentais faz mais pela redistribuição da riqueza do que todos os sistemas fiscais e apoios sociais. Com efeitos no ambiente, na qualidade de vida urbana, na economia e na habitação

O outro argumento contra a brutal redução dos passes sociais é o desequilíbrio territorial da medida. Sou sensível à crítica. Mas ela não pode ignorar que os custos de mobilidade diária nas áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto tinham atingido níveis proibitivos. Estamos a falar de políticas diferentes para realidades que não se comparam. E é por isso que ESTE editorial do “Público” poderia compreender-se se fosse assinado por um demagogo à caça de votos através da divisão do país, é incompreensível como posição de um jornal de referência. Sim, “os pensionistas de Macedo de Cavaleiros vão pagar os passes em Lisboa”, assim como um desempregado do Fogueteiro paga o médico em Macedo de Cavaleiros ou a viagem de um açoriano. O problema de algum jornalismo é achar que Lisboa e o Porto são os bairros simpáticos que conhecem e que o resto é paisagem.

Todos nós pagamos os problemas uns dos outros e por isso somos um país. O principal problema das ilhas é a sua distância em relação ao resto do país — e por isso pagam menos para andar de avião e têm benefícios fiscais. E muitíssimo bem. Um dos principais problemas do interior é a fixação de quadros, e por isso há um programa governamental que garante um extra de 40% no seu salário, mais tempo de férias e preferência pelo cônjuge na lista de ordenação final dos candidatos, em caso de igualdade de classificação na candidatura a um lugar no Estado. Há mais coisas assim, com investimentos públicos per capita naturalmente mais altos, a impossibilidade da região de Lisboa ser elegível para fundos de coesão, Lisboa e Porto serem contribuintes fiscais líquidos. E podemos discutir mais umas tantas a criar, não misturando alhos com bugalhos.

Não podemos é discutir na base do que um paga coisas de que outros beneficiam. Se pensarmos assim nunca se faz nada que não tenha um efeito direto (isto tem um efeito indireto no conjunto do país) em toda a população. Há políticas específicas para os problemas da insularidade e outras para a interioridade e todos pagamos, e bem, por elas. São insuficientes e temos de ir mais longe. O principal problema das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, onde vive mais de metade dos portugueses, é a mobilidade quotidiana. E é um problema que atingiu proporções gravíssimas com efeitos sistémicos. Só Lisboa representa 40% dos movimentos pendulares de todo o país. Se juntarmos o Porto percebemos que é a esmagadora maioria. Ignorar a diferença de proporção do problema é pouco sério.

A crítica do dinheiro despendido é compreensível, mas não pode travar o avanço de uma medida que tem efeitos profundos na igualdade, no ambiente, na qualidade de vida urbana, na economia e até na política de habitação que afeta mais de metade dos portugueses. A convicção desta injustiça relativa deve levar a medidas urgentes de compensação na área dos transportes. Porque é disso que estamos a falar. Medidas como um verdadeiro programa de expansão e revitalização do ferroviário. Esse deve ser, aliás, um dos grandes compromissos do próximo governo.

O rendimento indireto garantido pelo baixo preço de serviços públicos fundamentais faz mais pela redistribuição da riqueza do que todos os sistemas fiscais e apoios sociais

Antes de avançar mais, é importante dizer que não houve apenas uma redução do preço dos passes. Houve a criação de dois passes únicos (metropolitano e municipal), que simplificam um sistema que tinha centenas de títulos e que tornam a redução de custos muito mais significativa para os que vivem mais longe do centro (mais penalizados e geralmente mais pobres) do que para os que vivem no centro (menos dependentes do transporte público e geralmente mais desafogados). A criação do passe metropolitano corresponde, para quem viva no Fogueteiro, a uma redução de quase 100 euros para 40 e, para quem viva em Mafra, de 154 para 40. Já o passe municipal, em Lisboa, representa uma descida de 36 para 30 euros. Na linha de Sintra as reduções vão de 40 a 100 euros, na Margem Sul de 50 a 120. Para os lisboetas, em que alguns editorialistas estão a pensar quando se dedicam a discursos demagógicos, a redução é mínima.

Esta medida faz mais pela justiça social do que qualquer devolução de rendimento e seguramente muitíssimo mais do que qualquer redução de imposto que, como sabemos, só marginalmente afeta a metade mais pobre do país. Tenho defendido que o maior erro da “geringonça” foi ter investido quase tudo na devolução do rendimento direto e ter descurado o rendimento indireto, garantido pelas funções sociais do Estado. É por isso que valorizo mais esta redução de tarifário dos passes, a redução das propinas ou os livros escolares gratuitos do que qualquer aumento salarial (não incluo aqui o aumento do salário mínimo nacional). Quem vier depois e quiser voltar a baixar os encargos fiscais dos que mais podem, reduzindo a solidariedade que a todos é exigida, terá muito mais dificuldade em fazê-lo. É mais fácil congelar salários do que duplicar o preço do passe social. O rendimento indireto garantido pelo baixo preço de serviços públicos fundamentais faz mais pela redistribuição da riqueza do que todos os sistemas fiscais e apoios sociais. Uma política de esquerda que ignore isto não é de esquerda. É normal que a direita ache isto eleitoralista. Mas é bom que a esquerda perceba que, pelo contrário, é apenas ser de esquerda.

Quanto ao ambiente, os efeitos são óbvios. Em 26 anos, o transporte público perdeu quase metade da sua quota e o uso do transporte individual subiu 35 pontos percentuais. Estamos a seguir o caminho inverso ao da maioria das cidades europeias. Todos os dias entram 370 mil carros em Lisboa, para além dos que já lá estão dentro. Aumentaram 20 mil em apenas três anos. No Porto o cenário é semelhante. A aposta nos transportes coletivos é condição para dificultar o uso do transporte individual sem tornar a vida das pessoas num inferno. Qualquer pessoa que conhece cidades mais avançadas na política de transportes públicos sabe como a qualidade de vida de todos melhora exponencialmente. E é condição para a utilização em massa dos transportes públicos eles serem bastante acessíveis. Sobretudo num país pobre e desigual. E é condição para o seu bom funcionamento haver menos carros nas ruas. E é condição para a sua viabilidade haver economia de escala, o que implica uma enorme adesão à sua utilização.


A direita e os passes sociais

(Por Estátua de Sal, 18/03/2019)

António Costa e os passes sociais


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Falando no final da cerimónia que juntou Governo e presidentes dos 18 municípios da Área Metropolitana de Lisboa (AML) para a assinatura dos contratos que criam um passe único no valor máximo de 40 euros para todos os concelhos da AML, o líder socialista prometeu para abril “a maior revolução nos transportes coletivos desde que os passes sociais foram criados, nos anos 70”. (Ver notícia aqui).

A direita anda em polvorosa e o comentador de serviço, Marques Mendes, disse ontem na sua prédica dominical tratar-se de uma bomba eleitoral.

Na verdade, abrangendo as áreas metropolitanas onde se concentra a maior parte do eleitorado – e sobretudo do eleitorado urbano onde a volatilidade de voto é mais significativa -, a medida, que vai originar um alívio importante no orçamento de muitas famílias, terá seguramente um impacto, talvez considerável, sobre a orientação de voto de muitos nas eleições que se avizinham.

É por isso que a direita está assustada e temerosa, acusando o Governo e o PS de eleitoralismo.

Ora, aquilo que a direita não faz é discutir a utilidade e a bondade da medida. Sobre isso, silêncio absoluto. Mas, é óbvio que a medida só pode ser boa para milhares de cidadãos, porque se não fosse boa a direita criticá-la-ia a pés juntos e não temeria que ela tivesse um efeito eleitoral benéfico para o Governo.

É claro que o timing do seu anúncio e entrada em funcionamento não são estranhos ao calendário eleitoral. Todos os governantes usam das mesmas tácticas. Mas, ao menos, que apresentem medidas verdadeiras e efectivas, não recorrendo a truques falaciosos como fez o governo de Passos Coelho em 2015 com a promessa da devolução da sobretaxa IRS, promessa que não passava de uma mistificação.

É nesse contexto que o Governo e o PS não devem ter qualquer pejo em ser eleitoralistas, desde que apresentem boas medidas. Os portugueses estão-se nas tintas para as lágrimas e as acusações do Marques Mendes. Querem é ver as suas condições de vida a melhorar e apoiam todas as acções que para tal contribuam.

Assim, que venham mais medidas desse jaez, eleitoralistas ou não, que os cidadãos agradecem. A única coisa que os eleitores podem lamentar é o facto de apenas haver eleições de quatro em quatro anos, só surgindo algumas benesses nas vésperas dos actos eleitorais. Mas isso faz parte da lógica dos ciclos políticos da democracia representativa. E, como diz o povo, mais vale tarde que nunca.