Uma lástima o triste legado de Barack Obama

(Cornel West, in The Guardian, 09/01/2017, Tradução de António Gil, in Facebook)

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Nota do tradutor: Traduzi este artigo do Guardian, para tod@s aqueles que não entenderam os 8 anos de seus dois mandatos nem a minha posição sobre ele e sua cúmplice, Hillary Clinton. Senhoras e senhores, apresento-vos o porteiro de Trump e o parteiro do neo-fascismo americano.


Há oito anos atrás, o mundo abeirava-se de uma grande celebração: a estreia de um brilhante e carismático presidente negro dos Estados Unidos da América. Hoje abeiramo-nos de um abismo: a tomada de posse de um mitómano e catártico presidente branco em sua substituição..

Este é um declínio deprimente no mais alto cargo do mais poderoso império da história do mundo, capaz de produzir um penetrante cinismo e introduzir um venenoso niilismo . Existe realmente alguma esperança de verdade e justiça neste tempo decadente? Será que a América tem mesmo a capacidade de ser honesta consigo mesma e de aceitar o seu vício auto-destrutivo, o culto ao dinheiro e à xenofobia cobarde?

Ralph Waldo Emerson e Herman Melville – os dois grandes intelectuais públicos da América do século XIX – lutaram com questões semelhantes e chegaram à mesma conclusão que Heráclito: o carácter é o destino (“semeia uma personagem e colherás um destino”).

A era de Barack Obama pode ter sido a nossa última chance de romper com a alma neoliberal. Estamos enraizados e orientados para um mercado que maltrata a integridade e para políticas voltadas para o lucro que trucidam o bem estar geral.
O nosso mundo “pós-integridade” e “pós-verdade” é sufocado pela diversão e por actividades lucrativas que pouco ou nada têm a ver com a verdade, a integridade ou a sobrevivência do planeta a longo prazo.Testemunhamos a versão pós-moderna da gangsterização do mundo em grande escala.

O reinado de Obama não produziu o pesadelo Donald Trump – mas contribuiu para isso. E os entusiastas de Obama que se recusaram a reconhecê-lo carregam alguma responsabilidade.

Alguns de nós imploraram e suplicaram a Obama para romper com Wall Street, socorrendo em vez disso «a rua principal». Mas ele seguiu o conselho de seus consultores neoliberais “inteligentes” para salvar a primeira. Em março de 2009, Obama reuniu-se com os líderes de Wall Street e proclamou: Eu estou entre vós e os carrascos. Eu estou do vosso lado e vou.vos proteger, prometeu. E nenhum criminoso executivo de Wall Street foi para a prisão.

Pedimos que fossem responsabilizados os torturadores (dos EUA) de muçulmanos inocentes e exigimos transparência nos ataques com drones dos EUA a civis inocentes. A administração de Obama disse-nos que nenhum civil tinha sido morto. Mais tarde admitiram que alguns haviam sido mortos. E ainda mais tarde disseram-nos que talvez 65 ou mais tivessem sido mortos. No entanto, quando um civil americano, Warren Weinstein, foi morto em 2015, houve uma conferência de imprensa imediata com profundas desculpas e compensação financeira. E hoje ainda não sabemos quantos inocentes foram mortos.

Nós descemos às ruas novamente com o movimento Black Lives Matter e outros grupos e fomos detidos por protestar contra a matança de jovens negros pela polícia. Nós protestámos quando as Forças de Defesa israelitas mataram mais de 2.000 palestinos (incluindo 550 crianças) em 50 dias. No entanto, Obama respondeu com palavras sobre a difícil situação dos policias, com investigações do departamento (sem ninguém sendo punido) e com os $ 225 milhões adicionais no apoio financeiro do exército israelita. Obama não disse uma palavra sobre as crianças palestinas mortas, mas chamou “criminosos e bandidos ” aos jovens negros de Baltimore .

Além disso, as políticas de educação de Obama beneficiaram a iniciativa privada e as forças de mercado que fecharam centenas de escolas públicas. 1% de privilegiados obtiveram quase dois terços do crescimento da renda em oito anos, mesmo quando a pobreza infantil, especialmente a pobreza das crianças negras, permaneceu assustadora. As revoltas dos trabalhadores de Wisconsin, Seattle e Chicago (vigorosamente reprimidas pelo prefeito Rahm Emanuel, um confidente próximo de Obama) foram silenciadas.

Em 2009, Obama considerou o governador de Nova York, Michael Bloomberg, um ” governador notável”. No entanto, ignorou o facto de mais de 4 milhões de pessoas detidas e esbulhadas sob a «ordem» da Bloomberg. Juntamente com Carl Dix e outros, sofri uma detenção arbitrária, dois anos mais tarde, por protestar contra essas mesmas políticas que Obama ignorou ao elogiar Bloomberg.

No entanto, os mídia e o meio acadêmico não conseguiram destacar essas verdades dolorosas ligadas a Obama. Em vez disso, a maioria dos especialistas bem pagos na TV e rádio comemoraram a «marca» Obama. E a maioria dos porta-vozes negros defendeu descaradamente os silêncios e os crimes do presidente em nome do simbolismo racial e de seu próprio carreirismo. Que hipocrisia vê-los agora pretensos defensores da verdade, quanto ao poder branco, quando a maioria ficou muda e quieta face ao poder negro. A autoridade moral deles é fraca e suas militâncias recém-descobertas são superficiais.

O grosseiro assassinato de cidadãos norte-americanos sem o devido processo após ordens directas de Obama foi omitido por partidários neoliberais de todas as cores. E Edward Snowden, Chelsea Manning, Jeffrey Sterling e outros testemunhas de verdade foram demonizados, assim como os crimes que expuseram foram pouco mencionados.

A maior conquista legislativa do presidente foi a de fornecer cuidados de saúde para mais de 25 milhões de cidadãos, mesmo se outros 20 milhões ainda não foram abrangidos. Mas manteve-se uma política baseada no mercado, criada pela conservadora Heritage Foundation e da qual foi precursor Mitt Romney no Massachusetts.

A falta de coragem de Obama para enfrentar os criminosos de Wall Street e a sua falta de carácter ao ordenar ataques de drones levou a revoltas populistas de direita em casa e cruéis rebeliões islâmicas fascistas no Médio Oriente. E como deporter-in-chief – expulsou 2,5 milhões de imigrantes prenunciando os planos bárbaros de Trump.

Bernie Sanders tentou audazmente gerar um populismo de esquerda, mas foi esmagado por Clinton e Obama nas desleais primárias do partido democrata . Eis-nos agora entrando numa era neofascista: uma economia neoliberal de esteróides, uma atitude reacionária em relação aos “estrangeiros” domésticos, um armário militarista ávido de guerra e a negação do aquecimento global. Ao mesmo tempo, assistimos a um eclipse da verdade e da integridade em nome da «marca» Trump, facilitada pelos mídia corporativos esfaimados de lucro.

Que triste legado para o candidato que representava a nossa esperança de mudar – mesmo para nós guerreiros que ainda agitamos os desbotados nomes da verdade e da justiça.


Artigo original aqui

Tradução in Facebook aqui

 

O meu avô Júlio César

(Baptista Bastos, in Jornal de Negócios, 08/01/2016)

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 Baptista  Bastos

Obama é um homem que chora. O Presidente dos Estados Unidos anunciava as medidas para endurecer o escrutínio, vigilância e controlo do comércio de armas. Não conteve as lágrimas ao falar nas crianças mortas numa escola primária em Newtown.

O meu avô tinha nome de imperador, Júlio César, e toda a vida foi descarregador de carvão. O que dele sei obtive-o através de conversas com velhos narradores da família, de retratos delidos e de esparsas cartas. Era um homem enorme, espadaúdo, bondoso, ajeitado às suas convicções, republicano, e frequentador de reuniões de classe, estava o sindicalismo a dar os primeiros passos indecisos. Teve seis filhos, três rapazes e outras tantas raparigas, e ficou viúvo muito novo, levada a minha avó, Angelina, pela tísica. O meu avô chegava a casa ao fim da tarde, quase noite, todo enfarruscado, e a minha avó ajudava-o a tomar banho, com água fria, numa selha de zinco, Inverno ou Verão que fosse.

Todos os seus filhos e filhas tinham nomes de imperatrizes e imperadores, Agripina, Iolanda Adriano, Francisco José, e assim. Talvez quisessem, os padrinhos, ludibriar a miséria e o infortúnio com os nomes refulgentes dos poderosos. Talvez. Um dos meus tios, Manuel, morreria, muitos anos depois, na Guerra Civil de Espanha, no lado republicano, é bem de ver, na última barricada de Madrid. Não se falava muito neste tio e neste episódio, mas, quando a ele se aludia, o tempo era mau para essas façanhas, fazia-se com um lastro de orgulho.

O meu avô aprendeu a ler passara muito a idade das primeiras letras. Dizem que lia tudo o que lhe chegava à mão. Não possuía biblioteca que se visse, mas deixou dois livros, “Germinal”, de Émile Zola, e “Mentiras Convencionais”, de Max Nordau, muito manuseados, com algumas partes sublinhadas.

Ser descarregador de carvão era um trabalho muito procurado pelas classes populares, naqueles anos longínquos e ingratos. O meu avô descarregava o carvão vindo em barcaças, do Alto Tejo até aos cais de Alcântara, de Pedrouços e das Naus. Colocavam uma prancha entre as amuradas das barcaças e os cais, as pranchas estremeciam com o andar dos descarregadores, eles equilibravam-se com bravura e denodo e, que se conheça, só houve dois acidentes em todos esses anos.

O meu avô morava para o Socorro, e dava-se muito com os estivadores de Alfama, em especial dois deles, com os quais gostava muito de conversar e de beber. Aos sábados, já se sabia: petiscos e vinho tinto e, às vezes, uns cantos ao fado nas tabernas antigas.

Na calçada dos Cavaleiros até ao Martim Moniz corria um elevador. Certa vez, o elevador descarrilou, cheio de gente, sobretudo de miúdos, que saíam da escola. Desarvorado, o elevador descia a calçada, entre os gritos de medo dos miúdos e das pessoas que assistiam à desgraça iminente. Foi então que o meu avô Júlio César, enorme e generoso, cheio daquela coragem que nasce não se sabe bem de onde, abriu os braços e colocou-se nos carris, gritando: “Há-de parar! Há-de parar!” E parou, travado pelo corpo daquele homem poderoso. O meu avô Júlio César foi parar ao hospital de São José, ossos partidos e corpo em nódoa negra, mas sobreviveu. Nenhum jornal publicou a notícia, por desinteressante. No mesmo dia, o foco de importância incidia numa grandiosa festa de casamento, no Estoril, festa que se prolongou pela missa, celebrada pelo cardeal Cerejeira, e por um lauto e elegante almoço, na quinta privada de um banqueiro que também se dedicada à filantropia.

O meu avô morreu também ele novo, com os pulmões cheios do pó do carvão. E triste por estar sozinho, viúvo da mulher que sempre fora sua. Não podia criar e tomar conta dos seis filhos, e a família e próximos adoptaram os miúdos. Um foi tipógrafo, outro foi marinheiro, e ainda o conheci, assim como duas tias. Do filho de uma, da tia Alzira, que casara com um homem de dinheiro, cheguei a beneficiar das suas roupas usadas, sobretudo de um sobretudo que me ficava apertado, e de que me ufanava: era o único entre os rapazes do bairro onde então morava.

Isto para dizer que gosto muito do meu avô Júlio César, embora sem o ter conhecido. Um descarregador de carvão, hercúleo, que fez parar a marcha mortífera do elevador da calçada dos Cavaleiros, de que ninguém fala, acaso por ser quem foi. Descarregador de carvão.